João Romão h | Artes, Letras e IdeiasManga pró menino e prá menina [dropcap]C[/dropcap]omo aficcionado de longa data de banda desenhada, até com vagas incursões pela escrita de argumentos, cedo me fascinou a manga japonesa, desde as robóticas e futuristas aventuras que me animaram a infância e o início da adolescência até às ficções urbanas que iam tardiamente chegando a Portugal, como a magnífica série Akira, originalmente editada no Japão nos anos 1980 mas que só nos 90 seria publicada em Portugal, motivando expectantes visitas às livrarias na esperança de ter chegado mais um volume, com calendário mais ou menos irregular, durante uns dois anos. Jamais suspeitaria na altura que décadas depois iria viver no Japão e ainda menos que a minha simpatia por este fantástico género literário havia de diminuir muito bruscamente depois de cá estar. Na realidade, o alerta foi-me dado num simpático e bem regado almoço lisboeta com o autor de banda desenhada com quem trabalhei esporadicamente, que me chamou a atenção para a particularidade da representação do corpo feminino na manga: quase invariavelmente, e independentemente do conteúdo de cada história, as personagens femininas são sexualizadas ao extremo e representadas por traços comuns à generalidade dos autores, com olhos muito grandes e voluptuosos volumes torácicos, por assim dizer. Quando cheguei ao Japão não foi difícil constatar que o público de manga é muito maioritariamente masculino: as revistas vendem-se nas lojas de produtos essenciais convenientemente distribuídas por todos os bairros de todas as cidades e vêem-se muito regularmente rapazes japoneses a consultar e a comprar as edições recém-chegadas, sendo muito raro ver raparigas nessa diligente procura pelas últimas novidades. Não foi difícil concluir, depois de meia-dúzia de conversas, que os ideais de beleza transmitidos pela representação do corpo feminino na manga alimentam uma generalizada frustração. É verdade que em todo o lado os padrões de beleza física tendem a promover a idealização de corpos raramente existentes na realidade quotidiana (há “Barbies” e “Kens” em todo o lado), mas no caso da manga essa representação leva o ideal de beleza feminina a um extremo quase oposto ao dos traços morfológicos dominantes nas mulheres japonesas. Dessa preguiça que se traduz em repetir generalizadamente o mesmo padrão resulta com frequência uma permanente insatisfação: nem os rapazes encontram as raparigas com que se habituaram a sonhar, nem as raparigas se acham suficientemente dignas do interesse masculino (de outras particularidades das relações amorosas e familiares no Japão contemporâneo falarei um destes dias). Em todo o caso, num mercado tão massificado há também espaço para alternativas. Na realidade, desde os anos 1970 foi-se desenvolvendo um sub-género (shoujo-manga) especificamente orientado para raparigas, cuja evolução está relativamente bem documentada em estudos e ensaios recentes. Parece consensual que as a representação das mulheres evoluiu da vinculação aos seus papéis sociais tradicionais para a sua discussão e questionamento em abordagens mais recentes, incluindo naturalmente aspetos relacionados com a sexualidade. Também a representação anatómica evoluiu, desde os iniciais lacinhos, uniformes escolares e predominância do cor-de-rosa, até uma evidente mistura de traços masculinos e femininos ou interessantes explorações sobre os limites do binarismo de género, questionando uma cultura dominante hegemonicamente masculina. Ainda assim, mesmo se o volume torácico diminui significativamente nas personagens femininas da shoujo-manga, já os olhos sobredimensionados continuam a ser um traço característico generalizado. Também parece consensual que a shoujo-manga tem muito reduzida popularidade entre o público masculino, ainda que os temas não sejam necessariamente “femininos” – na realidade, os temas abordados são bastante variados e as reflexões que possam suscitar sobre a sociedade contemporânea são passíveis de ter interesse para qualquer pessoa (já agora: talvez não fosse inoportuna uma publicação deste género em português). Mas esta clara divisão de géneros literários e respectivas audiências não deixa também de ser reveladora da persistência de uma profunda divisão entre os papéis dos homens e das mulheres na sociedade japonesa contemporânea. Não será só no Japão, evidentemente: na realidade, os movimentos feministas que foram assumindo protagonismo nos continentes europeu e americano nos últimos 50 anos não tiveram a mesma dimensão e impacto na Ásia. Mas não deixa de ser surpreendente observar tão abismal disparidade entre os papéis sociais de homens e mulheres numa sociedade tão rica, tecnologicamente desenvolvida e com tão altos níveis de educação como a japonesa. Voltarei ao assunto no futuro mas adianto que apenas 30% das mulheres em idade activa trabalham no Japão.
João Romão VozesParcimónia e outros exageros [dropcap]S[/dropcap]uaves e discretos movimentos corporais, baixos tons de voz, risos e sorrisos contidos, raros contactos visuais e ainda mais raros contactos físicos, vestuário de cores sóbrias que contrasta com a generalizada exuberância da vizinhança asiática: há uma parcimónia sistemática e omnipresente nos quotidianos, profundamente enraizada na cultura japonesa. Não é apenas a provável barreira linguística que dificulta a comunicação com quem vem de fora: há também uma permanente protecção em relação ao exterior que também – ou sobretudo – se aplica em qualquer outra relação social, independentemente da origem dos intervenientes e também entre a própria população nipónica. Como me dizia uma amiga (japonesa), o Japão é uma ilha e cada pessoa é uma ilha em si mesma. Em boa verdade, é preciso também dizer que a parcimónia se dissolve no álcool com relativas facilidade e eficácia: quer seja o tradicional sake, a universal cerveja ou o mais exótico vinho a animar os repastos, não é difícil observar a metamorfose que gradualmente vai transformando a generalizada parcimónia quotidiana em ruidosas celebrações de gestos amplos, olhares descontraídos, vozes ruidosas e sonoras gargalhadas, eventualmente excessivas e inevitavelmente surpreendentes para quem tem pouca familiaridade com estas drásticas transformações. De resto, as tradicionais tascas japonesas – isakaya – são o palco mais peculiar pare se observarem estas graduais transições entre o comedimento e o excesso. A comida é, de resto, território de excelência para a manifestação extrema da parcimónia nipónica. Pratos pequenos, poucos condimentos, receitas simples com poucos ingredientes e alta precisão, pequenas doses já preparadas e cortadas em comedidas porções que podem ser levadas integralmente à boca, dispensando facas e outros utensílios metálicos, e uma regra essencial: comer até o estômago estar 80% cheio, o essencial para manter uma nutrição adequada ao funcionamento do corpo e para evitar excessos pouco saudáveis. A obesidade é relativamente rara, em comparação com qualquer outro país que tenha visitado, e a longevidade está nos mais altos níveis do planeta. E há também o respeito sistemático pela limitação dos recursos: raramente há sobras, os pratos estão vazios no final da refeição e não há desperdícios. Esta frugalidade também se reflete na surpresa com que agora enfrento as primeiras doses em restaurantes em Portugal, com quantidades de carne ou peixe que seriam suficientes para meia dúzia de refeições japonesas. E com os inerentes desperdícios, para os quais olhamos como sinal de generosidade, abundância e fartura. Ainda assim, é também na alimentação que se releva um dos aspectos menos parcimoniosos do quotidiano japonês: a utilização desenfreada de plásticos, num país onde se cozinha relativamente pouco em casa e onde em cada quarteirão há uma loja, da especialidade ou de conveniência generalizada, onde se pode comprar comida feita e rápida, quente ou fria, adequada à curta pausa laboral da hora do almoço ou a uma rápida recuperação calórica no regresso a casa depois da habitual longa jornada de trabalho. Levando a higiene a extremos insuspeitos, são diferentes embalagens de plástico, enfiadas em pequenos sacos de plástico, por sua vez acomodados em sacos de plástico maiores, aos quais se juntam outros adereços, como os guardanapos húmidos embrulhados em plástico, a garrafa de plástico com água ou chá, as eventuais palhinhas, enfim, uma parafernália plástica proporcional à obsessão com a higiene e a limpeza. Verdade seja dita, ganhar-se-á nos cuidados de saúde individuais algo que se perde nos cuidados colectivos com o meio ambiente, que o plástico não desaparece por grande que seja o esforço de reciclagem. Não é só a questão alimentar: em todo o comércio se revela esta aparentemente desproporcionada preocupação com a embalagem, a protecção contra a possível contaminação, o isolamento higiénico sistemático. E para tudo há plásticos, de vários tipos. Não pode ser uma surpresa que o Japão, país de frugalidade e parcimónia, seja o segundo país do mundo onde o consumo de plástico por habitante é mais alto (ainda há os Estados Unidos). E se a limpeza e a higiene da urbanidade contemporâneas ficam exemplarmente asseguradas, já os ecossistemas parecem severamente atacados e os mares da costa japonesa são os que apresentam maiores níveis de contaminação por micro-plásticos no mundo. Talvez alguma parcimónia neste campo – não só no Japão, certamente – ajudasse a proteger um bocadinho este planeta tão mal tratado pelas sociedades industriais e pós-industriais.
João Romão h | Artes, Letras e IdeiasPalavras perdidas [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]om limitado conhecimento da gastronomia japonesa e dos restaurantes locais, foi num restaurante de sushi que jantei na primeira noite que passei no Japão. Sentado ao balcão, fui escolhendo as peças que o chefe preparava, até que chegou o inevitável momento em que me perguntou de onde vinha. Disse-lhe que era português e a resposta foi imediata e surpreendente: Ah, Francisco Xavier! Habituado como estava, nos vários países por onde fui antes passando, a só ver reconhecidas figuras do universo futebolístico nacional – ou eventualmente Saramago e Pessoa, em contextos mais específicos – não pude evitar a surpresa de tal referência histórica, em conversa informal com o chefe que ia proporcionando deliciosas iguarias. Viria depois a perceber que é comum no Japão este conhecimento do jesuíta português que em 1549 desembarcou em Kagoshima (perto de Nagasaki) para se tornar o primeiro padre cristão em território japonês. Tive mais tarde a oportunidade de visitar Nagasaki, hoje a cidade da paz, que os acasos climatéricos fizeram com que fosse bombardeada quando já a II Guerra Mundial parecia irremediavelmente perdida pelo exército japonês. Era Fukuoka o alvo da segunda bomba atómica que explodiu no Japão e foi o nevoeiro que cobria a cidade e prejudicava a visibilidade que levou à opção pelo plano alternativo, provocando a destruição de Nagasaki. Além dos impressionantes memoriais deste momento atroz na História da Humanidade, a cidade guarda ainda outras memórias, como a dos 26 mártires cristãos, entretanto feitos santos, mortos após a ilegalização do cristianismo, durante a perseguição aos cristãos recentemente mostrada no cinema com a adaptação por Martin Scorcese do magnífico romance “Silêncio”, escrito pelo japonês Shusako Endo. Apesar da proibição, o culto cristão havia de permanecer clandestinamente em pequenas povoações próximas de Nagasaki, o que é hoje assinalado em diversas igrejas e monumentos. A importância religiosa de Nagasaki está naturalmente ligada ao porto, onde chegaram os mercadores portugueses, o primeiro povo europeu a pisar as terras do Sol Nascente. Ainda que tenha sido Fukuda a acolher as primeiras embarcações, o porto de Nagasaki viria a abrir em 1571 e a tornar-se desde então um ponto privilegiado para o comércio com a Europa. Hoje assinalado como um importante elemento histórico da cidade (e atração turística), o porto de Dejima (uma ilha artificial) foi construído em 1634 para acolher as mercadorias e os mercadores portugueses, incluindo as necessárias infraestruturas e também residências para comerciantes e comandantes dos navios. Não duraria muito, no entanto, esse privilégio atribuído a Portugal: com a intensificação da perseguição religiosa, os mercadores portugueses seriam banidos e a partir de 1639 o porto seria usado apenas por embarcações chinesas e holandesas, passando a Holanda a ter o privilégio do comércio com a Europa. Hoje, o porto de Dejima, reconstruído em parceria com uma Universidade holandesa, é um monumento nacional que recria uma aldeia dos Países Baixos, com a sua típica arquitectura e objectos decorativos. Outro ilustre português – Wenceslau de Moraes, cônsul no Japão durante mais de vinte anos desde o final do século XIX e que haveria de aí morrer em 1929 – adianta uma explicação para a preferência dos japoneses para o comércio com a Holanda. Conhecedor da língua japonesa, Moraes dedicou grande parte da sua vida ao estudo da história do país e, segundo conta no seu “Relance da História do Japão”, um encontro entre um “shogun” (a figura nomeada pelo imperador japonês para administrar o país) e um mercador castelhano terá sido decisivo. Perguntado sobre a dimensão do reino de Castela, o mercador terá descrito as terras conquistadas na América Latina, levando o “shogun” a questionar como era possível a um só rei ter conquistado tão vastos territórios. Terá o mercador respondido que primeiro eram enviados os padres e só depois os exércitos, o que leva Moraes a especular que essa terá sido a principal razão para que no Japão se substituíssem os mercadores portugueses pelos holandeses, mais virados para o intercâmbio comercial do que para a exportação de religiões. Hoje é notória a presença holandesa em Nagasaki, com o porto de Dejima, lojas e restaurantes de nome holandês e até a reprodução de uma mini-cidade holandesa como parque temático para turistas nos arredores da cidade. Já a presença histórica portuguesa é muito pouco visível nas cidades do Japão, apesar das discretas estátuas que homenageiam Francisco Xavier – na povoação de Hirado, onde terá feito várias missas – e Wenceslau de Moraes – em Tokushima, onde está sepultado com a esposa e a sobrinha, ambas japonesas. Sobram as palavras, que foram ficando, com mais ou menos felizes adaptações: botan (botão), kapitan (capitão), kappa (capa, que corresponde ao que é mais comum hoje designar como gabardina), koppu (copo) ombu (ombro), pan (pão) ou tabaku (tabaco) seguem de perto a fonética e o significado corrente em português; já Bidoru designa vitral, e não vidro, “tempura” designa as frituras de peixe e vegatais, inspirando-se nas têmporas, dias de jejum em que os cristãos não comiam carne, enquanto o popular doce que sabem ser de origem portuguesa e que no Japão é designado como “kasutera” corresponde ao que em Portugal chamamos pão-de-ló, para grande desgosto da população japonesa, que esperava estar a usar uma palavra genuinamente portuguesa. Pela minha parte, fico pelos confeitos, também comuns às línguas portuguesa e japonesa, para dar o tom a esta confeitaria.
João Romão VozesUm regresso e um ponto de ponto de partida [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]arto do sul ocidental da Europa e regresso ao norte oriental da Ásia onde tenho vivido nos últimos anos, com a notícia de ter escapado a terramoto de imponente magnitude, que deixou a cidade às escuras durante dias, com muito restritos serviços de transporte terrestre e aéreo, limitações no abastecimento de alimentos frescos e brusca necessidade de drásticas poupanças energéticas. Durante dias subiram-se degraus de escadarias de prédios com elevadores desligados, comprou-se pouco em lojas mal iluminadas, andou-se a pé e aumentaram as bicicletas em movimento pelas ruas, encerraram serviços, a cidade viveu uma obscura quase-paralisia que por acaso não testemunhei. Não sendo raros os terramotos em território Japonês, estes ocorrem normalmente muito mais a sul, onde a confluência de 4 placas tectónicas coloca em permanente risco sísmico a zona central da costa leste do país, deixando a ilha onde vivo, Hokkaido, relativamente protegida mas nem por isso imune. Chego passados mais de dez dias sobre o imponente abalo e já são quase nulos os impactos sobre a vida quotidiana: a minha casa estava em ordem e nem sequer houve objectos caídos das estantes, não há danos na cidade, os transportes funcionam normalmente, os serviços reabriram, os supermercados voltaram à normalidade do abastecimento alimentar, a iluminação pública e dos espaços comerciais retomou a intensidade e os néons, ecrãs de vídeo e outra parafernália sonora e luminosa que animam o entretenimento nocturno do bairro de Susukino retomaram o seu sistemático ruído. Nota-se ainda assim uma súbita transformação: o centro de Sapporo, que nos últimos anos se foi tornando cada vez mais um espaço de convergência para passeios, afazeres e entretenimento da população local e de uma crescente multidão oriunda de diversos países asiáticos, com acrescido poder de compra e maior disponibilidade para também usufruir dos prazeres do turismo e da descoberta de novos lugares, está subitamente despovoado: quase um milhão de visitantes (uns 5% do total de turistas esperados este ano) cancelaram as suas viagens após a notícia do terramoto, deixado a cidade outra vez entregue aos seus residentes e expondo com cristalina clareza a volatilidade – e eventualmente a limitada racionalidade – dos fluxos turísticos globais. Lembrei-me de Lisboa e do Algarve, onde tinha passado as últimas duas semanas. No Setembro algarvio ainda as praias e os espaços públicos tinham a sua lotação bastante preenchida por turistas mas já as estatísticas mostravam que tinham sido menos os visitantes este ano, com a relativa pacificação nos territórios do Sul do Mediterrâneo a revelar a vulnerabilidade das economias dependentes dos erráticos movimentos turísticos. Em Lisboa, pelo contrário, o centro da cidade parece ter-se tornado parque temático permanente para visitantes ocasionais e quase não se ouve falar português entre as multidões que passeiam pelas ruas da Baixa, aparentemente indiferentes ao facto de viajarem para ver e conviver com outros turistas, cada vez mais à margem de uma população local tendencialmente afastada para zonas periféricas da cidade. Não é como turista que faço esta viagem de regresso desde as terras de longos estios no sul da Europa para lugares de longos Invernos no norte do Japão, mas não deixo de observar como o turismo, a sua massificação ou as súbitas oscilações nos seus movimentos, transformam drasticamente a vida nas cidades contemporâneas, um pouco por todo o mundo, num processo que seguramente irá acelerar enquanto as economias do sul da Ásia continuarem a crescer e a fortalecer novas classes médias com o rendimento suficiente e a curiosidade necessária para participar nestes fluxos de descoberta de novos lugares. Este é, em todo o caso, assunto que me manterá entretido durante mais uns anos, no meu ofício quotidiano de investigador da economia turismo. E este regresso à Ásia é, também, um ponto de partida: para um contacto que espero regular e entretido com os leitores do Hoje Macau.