João Romão VozesTurismo lento É verdade que vão emergindo novos conceitos de vida e de viagem associados à lentidão e ao usufruto tranquilo do tempo, normalmente ditos em inglês para acentuar o toque de modernidade, mas ainda assim a maior parte dos turistas tem pressas, pouco tempo disponível, muita coisa para ver e fazer numa visita inevitavelmente curta. Tal como o “slow living”, slow cooking”, slow city”, também o conceito de “slow travel” apela a um abrandamento do ritmo que acrescente prazer, sabor, qualidade àquilo que se faz. Fazer menos mas melhor, demorar mais a preparar e saborear os momentos, impondo uma certa lentidão no quotidiano. É difícil fazê-lo quando viajamos, sobretudo em cidades: há um ritmo próprio da urbanidade, sobretudo nas grandes metrópoles, que impõem longas e demoradas deslocações diárias para o trabalho, com a ruidosa azáfama dos transportes e dos congestionamentos vários a animar e a marcar a cadência de cada dia. É nesse contexto de relativa aceleração que temos que nos enquadrar mesmo enquanto visitantes, com os nossos planos do que há para conhecer no pouco tempo disponível, em sítios que conhecemos mal mas onde queremos ver e fazer o máximo, já que as despesas para ali estar foram feitas com antecipação. Se em ambientes rurais ou em áreas menos urbanizadas o conceito de “lentidão” é relativamente fácil de associar a uma certa tranquilidade no usufruto dos tempos de lazer – na realidade, essa ruralidade também implica uma certa escassez de alternativas de actividades que convida a que tudo se faça mais devagar – nas cidades, pelo contrário, há um permanente apelo à velocidade, ao movimento, à aceleração, que não só é induzido pelo ritmo quotidiano de quem lá vive mas também pelas nossas motivações de turistas com planos e agendas quase sempre mais preenchidos do que a realidade do tempo disponível nos permite. Esse frenesim é pouco compatível com a preferência por formas não-motorizadas de transporte – os transportes suaves, que vão hoje fazendo o seu caminho até uma aceitação mais ou menos generalizada, também em centros urbanos. Andar a pé, de bicicleta ou de patinete começa a ser hoje uma opção facilmente disponível em muitas cidades, quer para quem lá vive, quer para quem visita. São formas de mobilidade com menor (ou nulo) impacto ecológico e também menores impactos sobre o espaço urbano, quer em termos de poluição do ambiente, quer em termos de ocupação de um espaço público cujo planeamento foi nas últimas décadas largamente influenciado pela necessidade de acomodar a garantir a circulação de um número massivo e sempre crescente de automóveis. Para quem conhece mal as cidades e procura breves mas relevantes descobertas numa visita curta, estas formas de transporte, que obrigam também a uma autonomia máxima de cada pessoa na identificação dos percursos e previsão da sua duração, podem ser vistas como um obstáculo ao usufruto dos atractivos do território. Mas esta opção também pode ser vista como uma oportunidade para se marcar melhor o ritmo da visita, para aumentar a flexibilidade das opções e a liberdade dos caminhos a seguir. Diferentes turistas terão certamente diferentes preferências e essa foi a razão pela qual procurei estudar o assunto na cidade de Barcelona, onde a autarquia local – não por acaso governada por uma formação chamada Em Comum – disponibiliza gratuitamente toda a informação e dados estatísticos recolhidos com financiamento público local. Nesse estudo (em parceria com a investigadora chinesa Yahua Bi e recentemente publicado no jornal “Sustainability”) identificámos uma dupla clivagem geracional – uma que se vai diluindo e tenderá a desaparecer em breve e outra cuja evolução futura está por conhecer. A primeira tem a ver com a utilização de ferramentas digitais na obtenção de informação para preparação da viagem e decorrentes aquisições de serviços: se numa primeira fase esta era uma opção assumida sobretudo pela população mais jovem, hoje está generalizada a quase todas a gente. Na realidade, os resultados que obtivemos sugerem que apenas as pessoas em situação de reforma não recorrem de forma generalizada à internet e outras tecnologias da informação e comunicação para a preparação das suas viagens. A segunda clivagem tem a ver com as opções de transporte: apenas na faixa etária mais jovem (abaixo dos 24 anos) se observa uma preferência generalizada pelas formas não motorizadas de transporte. Na realidade, é também a população mais jovem (mas neste caso abaixo dos 34 anos) a que tem maior propensão a utilizar transportes públicos. Se estes comportamentos característicos de uma geração que convive mais directamente com os previsíveis impactos das alterações climáticas em curso corresponde a uma resposta cívica e política a estes problemas ou se se trata apenas de uma questão económica (transportes públicos e/ou não motorizados são mais baratos do que os taxis) é uma questão que o tempo se encarregará de esclarecer. Em todo o caso, as tendências são hoje claramente identificáveis – tal como é clara, já agora, a maior propensão dos turistas de negócios para a utilização de transportes individuais (automóveis), independentemente da idade. O nosso estudo permitiu ainda identificar outras formas de conservadorismo com manifestos impactos negativos sobre o ambiente: independentemente das respectivas idades, turistas com viagens organizadas por empresas ou outras organizações promotoras de deslocações em grupo (como excursões de estudantes ou empresas) são também menos propensos a utilizar formas não motorizadas de transporte. Se há sinais de que a população – sobretudo a mais jovem – começa a mudar hábitos para se adequar às exigências ambientais contemporâneas, também não deixam de se confirmar os sinais de que no universo dos negócios as prioridades continuam a ser outras, lentas na mudança e uma mudança que parece inevitável e inadiável se ainda queremos preservar a vida no planeta.
João Romão VozesUpopoy ou o coro dos indígenas Quase ano e meio decorreu desde a minha última viagem de avião e não por acaso no mesmo trajecto em que agora retomo o transporte aéreo: já a pandemia de covid-19 se propagava intensamente pelo Japão, no início de Abril de 2020, quando tive que viajar de Hiroshima a Sapporo para consumar mudanças: abrir a porta à companhia de transportes, encerrar contratos, acertar contas, dar uma última vista à cidade de longos e intensos invernos onde tinha estado durante quase cinco anos, para me deslocar para o sul, para a quente Hiroshima, de longos e chuvosos verões. Lembro-me da escala em Tóquio, em Haneda, um dos mais movimentados aeroportos domésticos do mundo, subitamente deserto e silencioso, com os sinais evidentes da imobilidade que havia de assinalar as nossas vidas nos tempos vindouros. Quiseram as coincidências que voltasse a viajar de avião com o mesmo destino, outra vez Sapporo, num tardio outono mas ainda sem neve, que apenas se avistava ao longe, nas mais altas das majestosas montanhas de Hokkaido. Depois de reencontrar um aeroporto pleno de passageiros, quase todos em voos domésticos, ainda assim, foi tempo de rever amizades, retomar projectos suspensos pela pandemia, explorar novos rumos e também redescobrir a cidade, agora com a ajuda do novo olhar da minha filha, por acaso feita em Sapporo e nascida em Hiroshima há pouco mais de um ano, uma vida em pandemia permanente, sempre alerta às novidades mais relevantes, que são quase todas. A viagem incluiu visita ao recém inaugurado Museu Nacional Ainu, na vila de Shiraoi. Fizemo-nos ao caminho a partir da estação ferroviária de Sapporo, em pleno centro da cidade, atravessámos subúrbios de alta densidade populacional e funcional organização com a tradicional eficiência logística japonesa, que nem a neve nem o frio conseguem afectar significativamente. Passámos por Kita-Hiroshima, a “Hiroshima do Norte”, local onde foi concentrando população vinda de Hiroshima, a original, a sul, num percurso inverso ao que me calhou fazer. Afastamo-nos da urbanidade em direcção a uma natureza cada vez mais densa, as árvores por vezes muito próximas das carruagens exibem diversidade de cores outonais, vários tons de vermelho, do mais laranja ao mais castanho, a interromper a ainda predominante presença do verde, quase moldura para os tons da estação actual. Aproximamo-nos do aeroporto de Nova Chitose e logo a seguir do porto marítimo de Tomakomai, com as suas plataformas logísticas, as maiores da ilha, a garantir a conexão e as transações de mercadorias com o resto do Japão e do mundo. Foi numa linha que percorre um tranquilo percurso junto ao mar, outra vez com uma omnipresente natureza a convocar espíritos ancestrais e anteriores à urbanidade, que chegámos à vila de Shiraoi, subitamente notória no país ao alojar o primeiro museu nacional dedicado aos Ainu, a comunidade indígena que ocupava a ilha de Hokkaido antes da chegada dos Japoneses – e que só neste milénio viu reconhecidos alguns dos direitos habitualmente reconhecidos a populações indígenas: passaram a ser legalmente valorizados aspectos imateriais como a cultura ou a língua, mas não houve lugar a compensações relacionadas com aspectos materiais – como os terrenos – como aconteceu na generalidade dos países com comunidades indígenas mais ou menos violentamente despojadas dos seus territórios e modos de vida. A construção deste museu – na realidade um magnífico parque ao ar livre com diversas instalações para acolher actividades culturais diversas inspiradas nas tradições Ainu – constitui um dos elementos mais notórios para uma tardia e insuficiente reparação da dívida histórica a uma comunidade indígena que foi forçada a um processo acelerado de assimilação cultural, económica e demográfica quando a população japonesa se instalou em Hokkaido no final do século XXI. Com manifesta vocação turística, o museu está preparado para receber visitantes em larga escala – objectivo que por enquanto suspenso devido às restrições ou proibições inerentes à pandemia de covid-19. Há acesso fácil de comboio, enormes parques de estacionamento para automóveis e autocarros, centros de informação e zonas de repouso adequadas a diferentes tipos de visitante, incluindo estudantes de várias idades ou pessoas com mobilidade reduzida. O museu em si mesmo traz pouca novidade, no entanto. Para quem tenha visitado antes pequenos museus relacionados com a cultura Ainu, poucas ou nenhumas são as surpresas que se podem encontrar entre os objectos expostos, sobretudo relacionados com o quotidiano das comunidades. Há, no entanto, uma maior preocupação em fornecer informação que contextualize as exposições, quer em japonês, quer em inglês, já que a língua Ainu é apenas falada e não se escreve. Há também uma biblioteca com o material publicado sobre o tema (sobretudo em japonês) e a habitual loja de recordações. Magníficos são os restaurantes – ou pelo menos o das carnes grelhadas, onde se servem estupendas refeições alegadamente inspiradas na tradição Ainu. O parque chama-se Upopoy, que na língua Ainu designa a actividade de “cantar em grupo”, essa tradição coral que anima cantares populares pelo mundo fora. É um coro desequilibrado, no entanto, já que a população Ainu continua a ser pouco visível neste espaço: não se nota a sua presença e se há membros desta comunidade será entre os monitores dos diversos workshops oferecidos nas diferentes instalações ou nos espectáculos de música, dança ou artes performativas baseadas na palavra a que se pode assistir num teatro relativamente pequeno mas com um palco que se abre numa majestosa vista sobre o lago em torno do qual se edificou o parque. Ainda que todas as pessoas a intervir nos espectáculos adoptem uma “alcunha-Ainu” (como parecia ser tradição da comunidade), nenhuma delas foi apresentada como tendo origens indígenas. Na realidade, este é um processo de “não-inclusão” há muito tempo visível nas actividades do turismo da região, que utilizam a originalidade da tradição Ainu enquanto atractivo turístico mas sem envolver a comunidade indígena nos negócios. Neste coro que é um parque teve a minha filha – com os seus parcos 16 meses de existência – a sua primeira oportunidade para assistir a espectáculos em auditório, que os tempos de covid não estão para esses ajuntamentos. Primeiro foram danças e cantares e mais tarde filmes de curta metragem alusivos à história e cultura Ainu, duas sessões de meia hora em que se manteve tranquila e atenta. Era tudo muito bom, portanto.
João Romão VozesFísica política No princípio era política, a economia: ainda antes de Adam Smith e David Ricardo, fundadores da ciência económica que haviam de oferecer ao mundo bases teóricas para as políticas liberais dos séculos vindouros, já os estudos exploratórios de fisiocratas franceses, como Quesnay, exploravam as ligações íntimas e óbvias entre a análise dos processos económicos, das suas condicionantes e consequências sociais, da importância e necessidade da sua regulação e legislação – enfim, do caráter inseparável da economia e da política no contexto do capitalismo na altura emergente. O pensamento posterior de Karl Marx viria a trazer à economia política uma dimensão crítica e revolucionária até então desconhecida e só possível pela integração sistemática das abordagens económica, social e política – um processo que mais tarde se viria a definir como “multidisciplinar”. Nem sempre havia de ser assim, no entanto. Na verdade, a dimensão política da análise económica não havia de se perder e ainda hoje os critérios de regulação ou desregulação das economias e de afectação e mobilização de recursos continuam a ocupar lugar central nos programas de intervenção política nos mais diversos níveis territoriais de decisão sobre o futuro das comunidades – seja o das autarquias locais, o das regiões, o dos países, ou mesmo o dos blocos internacionais, que normalmente combinam uma certa conjugação de interesses económicos e políticos comuns. O que se perdeu foi esse esforço original de integração “multidisciplinar” e de se analisarem os aspectos económicos, sociais e políticos de uma forma sistematicamente integrada. Ainda que os critérios económicos ganhassem cada vez mais peso na formulação de políticas, a intensificação da formalização matemática associada aos estudos económicos foi transformando este campo do conhecimento, tornando-o cada vez um terreno de sofisticação de cálculo e formalização de modelos quantitativos, e desligando-o progressivamente de outras abordagens da sociedade. Gradualmente, deixou de se falar em “economia política” e passou a falar-se apenas de “economia”, ainda que os aspectos económicos continuassem a ser centrais na formulação de políticas. Esse carácter “multidisciplinar” da economia política levou também a que outras disciplinas assumissem designação semelhante. Na realidade, enquanto a designação “economia” substituía a “economia política”, emergia entretanto a “sociologia política”, durante o século 20, procurando integrar na análise sociológica a dimensão política e as questões de poder. Também no campo da economia emergiam novas correntes, como a “regulacionista” ou a “institucionalista”, que procuravam combinar os desenvolvimentos de elevada precisão matemática da economia com aspectos de decisão política. Em todo o caso, no século 20 são correntes relativamente minoritárias (ainda que ocasionalmente influentes) as que procuram integrar os conflitos políticos na análise da economia e da sociedade, enquanto no século 19 a economia política constituía o eixo fundamental (e único, até certa altura) deste campo do conhecimento científico. Nunca esta dimensão política que se foi aplicando a diversas “ciências sociais” se aplicou às chamadas “ciências naturais”. “Biologia política” ou “química política” nunca foram designações utilizadas. Em todo o caso, talvez fosse tempo de começar a pensar no desenvolvimento de uma certa “física política”, tendo em conta o estado lastimoso em que o nosso modelo de desenvolvimento económico, altamente predatório, injusto e destrutivo vai deixando o planeta: nada se perde, tudo se transforma, mas as transformações em curso ameaçam claramente as possibilidades de vida humana na Terra. É um tempo histórico em que talvez a física possa ajudar mais do que a economia na formulação de políticas de governo. Na realidade, os Prémios Nobel da Física recentemente atribuídos apontam para a urgência dessa dimensão política. Giorgio Parisi foi galardoado com metade do prémio pelos seus trabalhos, iniciados ainda nos anos 1980, no estudo dos processes de regulação de sistemas complexos aparentemente desorganizados, ou caóticos, como possam parecer as sociedades humanas ou a diversidade de ecossistemas do planeta. A outra metade do prémio teve destinatários envolvidos no estudo de problemas directamente associados a um sistema complexo específico, o clima: Syukuro Manabe desenvolve, desde os já remotos anos 1960, modelos explicativos do impacto das emissões de dióxido de carbono na subida de temperaturas na superfície terrestre, assunto que está hoje no centro das preocupações políticas da juventude do planeta, ainda que parte significativa da humanidade continue a negligenciar o problema; e Klaus Hasselmann tem vindo a desenvolver e aperfeiçoar modelos estatísticos que permitem identificar os padrões de longo prazo na evolução do clima na Terra, independentemente da evolução mais ou menos irregular, errática ou caótica do estado do tempo em cada momento – contributo que poderá ajudar parte significativa da população do planeta a dar ao problema climático a importância e a urgência que ele na realidade tem. Se essa importância tem sido mais ou menos reconhecida pelos poderes instituídos, já o mesmo não se poderá dizer da urgência. Apesar da assinatura em 1994 de um tratado internacional promovido pela ONU para enfrentar as alterações climáticas, pouco significativas têm sido as medidas entretanto assumidas. Apesar do famoso “Acordo de Paris”, assinado em 2015 por 195 países durante a Conferência das Alterações Climáticas (“GOP 2015”), desde então não têm deixado de se acumular os avisos da comunidade científica sobre a contínua degradação dos ecossistemas e das condições de vida na terra decorrentes, não só da acção humana, como da incapacidade de a transformar. Dentro de poucas semanas haverá nova Conferência (“GOP 2021”), desta vez em Glasgow. A atribuição deste Prémio Nobel da Física vem evidenciar a urgência do problema mas ainda não é certo que estejamos perante a emergência de uma qualquer “Física política”. Na realidade, vamos ter líderes habitualmente motivados por critérios económicos para a definição de políticas que há muito dispensaram até o suporte da economia política.
João Romão VozesTurismos futuros Entre as actividades económicas mais afectadas pela pandemia global do covid-19 estão certamente as relacionadas com o turismo, por definição associadas à mobilidade de pessoas, a deslocações para zonas diferentes da “residência habitual” à qual temos maior ou menor vínculo. Um pouco por todo o mundo, as características da doença e das suas formas de propagação impuseram severas e inevitáveis restrições aos movimentos de pessoas, a forma possível de proteger as comunidades. Os fluxos internacionais, em particular, foram largamente afectados por estas limitações decorrentes de uma doença que se propaga internacionalmente mas que é tratada a partir de serviços de saúde nacionais. Esta pandemia ocorreu num tempo histórico concreto: é uma altura em que se acumulam evidências sobre a degradação ecológica do planeta e se antecipam mais seriamente limitações à possibilidade de vida humana na Terra. Não é só o esgotamento de recursos naturais não renováveis, cientificamente demonstrados pelo menos desde a publicação pelo “Clube de Roma” do relatório “Limites do crescimento”, em 1972: são também os impactos dessa sobre-exploração (e as decorrentes emissões de dióxido de carbono ou outros gases tóxicos na atmosfera) sobre a destruição de ecossistemas variados e consequentes profundas alterações em curso que se vão observando e medindo no clima em que temos que viver. Esta é também uma altura em que se manifestam sinais cada mais relevantes da concentração da riqueza global, a contrariar a tendência para uma maior justiça social que foi caracterizando o século 20, sobretudo a seguir à segunda guerra mundial, com a relativa hegemonia ideológica de correntes sociais-democratas em grande parte do planeta, as inerentes políticas de reforma dos sistemas económicos e a emergência de diferentes formas de regulação dos movimentos de capitais e dos mercados de trabalho, limitações à duração das jornadas laborais, direito ao lazer, obrigatoriedade de salários mínimos e períodos de férias pagas, ou outros direitos até então desconhecidos nas economias de livre mercado – e que hoje vão eventualmente desaparecendo, em nome de uma certa “flexibilidade” que também representa novas formas de informalidade, ilegalidade ou abuso, por acaso não tão raras na prestação de serviços relacionados com o turismo. Estas reconfigurações contemporâneas dos sistemas económicos são também facilitadas por desenvolvimentos tecnológicos ligados à transmissão e processamento da informação, à digitalização das economias e dos quotidianos, que também transforma modos de lazer, formas de consumir e, naturalmente, de viajar. Além de facilidade com que hoje se conhecem antecipadamente destinos de viagem e possíveis consumos, também se facilita a partilha em diferentes plataformas de socialização digital das “experiências” que se viveram – um processo de digitalização e mediatização da viagem que vai da inspiração à reflexão, passando pelo consumo e pela experiência, como referem os estudiosos da matéria. De igual forma – e talvez sobretudo – esta digitalização também trouxe ao turismo uma nova oportunidade, a de se viajar sem se deixar de trabalhar, a de abandonar fisicamente o lugar habitual de trabalho e de residência mas ainda assim permanecer disponível e em contacto permanente, instantâneo e tendencialmente gratuito, com inusitada facilidade de comunicação e transmissão de dados. Nem o lazer nem o turismo correspondem hoje necessariamente a momentos em que se interromperam as rotinas habituais – e em particular as decorrentes de tarefas profissionais. Outra característica particularmente relevante para assinalar o contexto em que emerge a pandemia de covid-19 é a importância sem precedentes históricos que o turismo assumiu nas economias e sociedades, uma certa democratização em grande parte do planeta (também em resultado das conquistas sociais que a classe trabalhadora foi acumulando ao longo do século 20), que se foi traduzindo na emergência de novos produtos, serviços e mercados de massas, numa mercantilização crescente dos momentos de lazer, das paisagens, dos espaços naturais, do património cultural ou até dos espaços públicos dos destinos turísticos melhor sucedidos – e que deixaram de se situar em áreas relativamente inóspitas e isoladas para passarem a ocupar também os centros das cidades de todo o mundo. Esta massificação seria ainda acompanhada por novas oportunidades mercantis potenciadas pela digitalização: a transformação do parque residencial urbano em alojamento turístico, em nome de uma suposta partilha de recursos e de uma plena integração do turista na comunidade que visita, mas que afinal induz um processo sistemático de exclusão, de expulsão de residentes permanentes dos bairros centrais das cidades para passar a alojar turistas, numa rotação permanente e acelerada que transforma (ou destrói) os tais modos de vida tidos como “típicos”, “autênticos” ou “únicos” que justificavam a atractividade turística. Além do manifesto impacto ambiental, o turismo de massas contemporâneo veio acelerar os processos de gentrificação em curso nos centros urbanos na sua transição contemporânea de uma economia centrada nas grandes unidades fabris de produção repetitiva e automatizada para uma outra, orientada para as pequenas unidades de produção, mais criativas e flexíveis na abordagem a processos produtivos cada vez mais orientados para a personalização e a individualização dos consumos, incluindo os relacionados com as cada vez maiores indústrias do entretenimento, do lazer e do turismo. É esta massificação de experiências supostamente individuais e personalizadas – mas que na realidade assentam na mesma brutal extração em larga escala de recursos naturais, culturais, humanos e paisagísticos que são de todos – que começamos a presenciar nos primeiros sinais de um certo regresso ao “velho normal” da economia e dos fluxos turísticos anteriores à pandemia de covid-19. É dessa extração sistemática e violenta que vivem os sistemas económicos contemporâneos, por muito que se anunciem inovadoras formas de criatividade, “sustentabilidade” ou “resiliência”: à falta de alternativas que disputem esta hegemonia do neo-liberalismo dominante, é a esta exploração desenfreada dos recursos de um planeta em auto-destruição que vamos voltar rapidamente.
João Romão VozesA quinta vaga São já quase dois anos de convívio com o covid-19 no Japão, começa a haver sinais de abrandamento da quinta vaga e está para breve a chegada do terceiro chefe de governo desde o início da pandemia. O primeiro a abandonar foi Shinzo Abe, após sete anos e oito meses como primeiro-ministro, o período mais longo na história do Japão. Evocou problemas de saúde – tal como tinha feito em mandato anterior, terminado em 2007 – mas já se acumulavam suspeitas de favorecimentos diversos em negócios do estado, além de manifestos sinais de insucesso das profundas reformas na política económica que implementou – a pomposamente chamada “Abenomics”, de fracos resultados, afinal. Desta vez foi Yoshihide Suga, o anterior ministro do governo de Abe que o havia de substituir no cargo, a demitir-sai após um ano deste exercício, assumindo a responsabilidade pelo descontrole que se vive hoje no país em relação à pandemia. Os primeiros casos verificaram-se em Janeiro de 2020, os números de infecções sempre estiveram longe das calamidades que se viveram noutras paragens, mas foram-se sucedendo novas “vagas” de infecções, cada vez maiores. Os temores que se foram expressando em relação ao perigo das Olimpíadas afinal não se justificaram (foram pouquíssimos os casos associados aos Jogos) mas ainda assim o Japão vive hoje o seu pior período de convivência com o vírus, com grande parte do país num estado de emergência que foi oficialmente prolongado à data em que escrevo (quinta feira, 9 de Setembro). A primeira vaga de infecções, iniciada em final de Janeiro de 2020, teria o seu ponto máximo em meados de Abril, com uma média semanal inferior a 550 novos casos por dia, valor que hoje parece insignificante para uma população de 126 milhões de pessoas (menos de meio caso por 100 mil habitantes, portanto). Parece pouco mas na altura impunha receios, sobretudo pela desconhecimento do que estava por vir e de como lidar com um problema que nessa primavera chegava à Europa e à América, depois de um inverno exclusivamente asiático. A segunda “vaga” havia de chegar no Verão e de ter o seu ponto culminante durante a primeira metade do Agosto, com a média semanal de novos casos a chegar ao valor máximo de 1.380, já mais de 1 caso por cada 100.000 habitantes, mas com grandes variações regionais e uma larga concentração nas grandes áreas metropolitanas de Tóquio e Osaka (além da ilha de Hokkaido, que se destacou desde o início e ainda hoje é zona particularmente problemática). A viver em Sapporo, foi aí que comecei o meu contacto com a pandemia desde o seu início em terras japonesas, mas neste verão já estava na tranquilidade de Hiroshima, até então praticamente imune ao vírus. Outras duas vagas haviam de se seguir, com durações e dimensões semelhantes e números máximos de novos casos francamente superiores: no início de Janeiro de 2021 atingiu-se uma média de 6.445 casos por semana (mais de 5 por cada 100 mil habitantes) e em meados de Maio chegou-se a um número bastante semelhante (6.460). Em ambas as situações, a cidade de Hiroshima, onde continuo a viver, já não era o paraíso de isolamento que tinha sido até então e tiveram que se intensificar as medidas restritivas. Havia de se iniciar entretanto um tardio processo de vacinação, com uma inusitada demora na aprovação pelas autoridades sanitárias do país das mesmas vacinas que já se utilizam massivamente em grande parte do mundo. E é já com cerca de metade da população vacinada que se vive uma quinta vaga de propagação da epidemia, já numa clara tendência de descida, mas que atingiu no final de Agosto uma média semanal de novos casos superior a 23 mil (mais de 18 por 100 mil habitantes). Ainda assim, o estado de emergência que tinha sido decretado até 12 de Setembro em quase todo o país foi hoje prolongado até ao fim do mês e o primeiro-ministro que estava no poder durante este período de descontrolo máximo apresentou esta semana a demissão. Na realidade, os números que se vivem hoje no Japão (média semanal de 10,7 novos casos diários) não são sequer próximos dos que se registam nos mesmos dias no reino Unido (56,7) ou nos Estados Unidos (45,5), são inferiores aos que se registam em Portugal (15,7) e semelhantes aos do estado espanhol (11,1). Sendo de longe os piores números que se registaram no país ao longo desta pandemia, o Japão em nenhum momento viveu sob medidas compulsivas de confinamento – para as quais, aliás, não há sequer cobertura legal. Há restrições severas aos horários de funcionamento de alguns estabelecimentos, limites à lotação de estabelecimentos públicos, recurso ao tele-trabalho ou apelos à não-mobilidade entre regiões. Nunca houve limitações à mobilidade entre municípios e mesmo em relação à mobilidade entre regiões o controle é quase inexistente. Há um apelo generalizado ao bom-senso e à auto-disciplina, que em geral foi resultando mas que agora começa a dar sinais de alguma ineficácia. São quase dois anos nisto, afinal. Felizmente a vacinação progride agora aceleradamente e espera-se que a partir de Novembro comece a haver mais abertura em relação às viagens internacionais, para as quais continua a haver uma quarentena obrigatória de duas semanas quando se entra no país. Talvez possa então fazer planos para visitar familiares e amizades em Portugal. Já é tempo.
João Romão VozesFutebol pós-pandemia A pandemia que continuamos a atravessar por todo o mundo também redefiniu o rectângulo de jogo para a prática do futebol, pelo menos o profissional, ou o de mais alto nível, o que ocupa a atenção de todo o planeta, mais coisa menos coisa: deixou de ser relvado o tapete verde que concentra a atenção das massas e passou a ser feito de “leds”, eventualmente orgânicos, ou de outras maravilhas da tecnologia, dessas que nos trazem a casa o espectáculo total, com ainda mais brilho que o original, mais opções de personalização, temporizações, repetições e outras opções que nos permitem desfrutar do show de bola no conforto do sofá, role o esférico onde for, que há transmissões para todos os gostos e a assistência se faz cada vez mais em vídeo. Esta redefinição das quatro linhas que passaram a estar nas salas de cada pessoa em vez das aglomerações em estádios também contribuíram para redefinir poderes, ou pelo menos para reforçar tendências de concentração de poder que já se vinham desenhando, com a hegemonia da liga inglesa a tornar-se ainda maior, mesmo que tenhamos sempre Paris, gloriosa excepção que assinala aliás singular presença histórica entre os mais reputados clubes de futebol do planeta, onde a presença francesa foi tradicionalmente escassa. E continua a ser: na realidade, é a Inglaterra que se vai tornando (ou recuperando) o centro desta redefinição do futebol enquanto espectáculo que se deslocou dos estádios de cada cidade para as televisões de todo o planeta. Foi relativamente lenta mas implacável esta deslocação: ainda há dez anos era a Liga espanhola que dominava as atenções do planeta, os astros maiores de todo mundo, as conquistas de medalhas e troféus. É território onde tradicionalmente se joga tarde, já de noite o esférico parece rolar melhor, e de dia há sestas para fazer, vermutes para tomar, ou outros afazeres de força maior, consoante a região. Essa escolha tem outras implicações, naturalmente: a essas horas já o público asiático dorme profundamente, esses potenciais milhares de milhões de pessoas que vivem o futebol europeu com proximidade e intensidade mesmo que vivam na Índia, na Indonésia, na Tailândia, na China ou no Japão. Esse público dedicado, fanático como outros, frequentemente com menor poder de compra mas sempre contado em muitos milhões de pessoas, seria decisivo para transferir da liga espanhola para a inglesa o poder maior do futebol global, que em Inglaterra se joga mais cedo e se adaptam com zelo e dedicação os horários e calendários para facilitar a vida a fregueses distantes, com os seus dispositivos digitais e ecrãs de tamanho diverso espalhados por todo o mundo: jogada à tarde, a liga inglesa pode ser acompanhada em directo nas noites asiáticas e nas manhãs das Américas, o verdadeiro espectáculo global, acompanhado ao vivo e em simultâneo em todo o planeta. Assim se vendem assinaturas e subscrições de canais de televisão, mas também camisolas e outras mercadorias promocionais, fontes diversificadas e massivas de rendimentos. É assim também que se atraem os grandes investidores, o capital global que se vai acumulando para lá das esferas produtivas e que alimenta negócios diversos, mais ou menos obscuros, incluindo o da bola: chegam a Inglaterra vindos dos Estados Unidos (Manchester United, Liverpool ou Arsenal, só para citar os maiores), dos Emirados Árabes Unidos (Manchester City), da Rússia (Chelsea), da Tailândia (Leicester), do Egipto (Aston Villa) ou da China (Southampton e a tão portuguesa equipa do Wolverhampton). As finanças do planeta mobilizam-se para promover a liga e os clubes ingleses num espectáculo que afinal chega em directo a cada casa ou a cada café do planeta. O resultado deste jogo das finanças globais também se nota nos lances de bola parada, com os jogadores em férias mas em negócios, quando se trata das transferências, potenciais ou efectivas contratações e rescisões, empréstimos e cedências, que ocupam páginas imensas na imprensa mundial e animam universos digitais variados mesmo quando não se joga. Foi mais uma vez em direcção a Inglaterra que se deslocou a maior parte das estrelas do universo futebolístico, para os clubes onde as receitas vêm sobretudo do negócio televisivo global e que por isso foram menos vulneráveis às quebras drásticas nas vendas de bilhetes para os estádios que a pandemia de covid-19 provocou. Há a excepção parisiense, evidentemente, feita de uma situação financeira excepcional, em que as receitas publicitárias do clube são desproporcionais em relação às dos restantes competidores na liga francesa. Não deixa de ser sintomático, aliás, que tenham vindo das ligas espanhola e italiana os mais intensos apelos e iniciativas para a criação de uma “super-liga” europeia de futebol. Na realidade, é apenas uma reacção tardia e desesperada à formidável derrota que foram sofrendo nos últimos anos quando não souberam ou não quiseram adaptar as formas e os tempos de jogo a essa nova abordagem ao futebol que, sem o retirar dos estádios (pelo menos antes e depois do covid-19), o colocou sobretudo nas televisões ou outras plataformas de entretenimento digital.
João Romão VozesEstado Olímpico Foram quatro medalhas – quatro – as que assinalaram a mais brilhante participação nuns Jogos Olímpicos jamais registada na História de Portugal, como observaram, ufanas e impantes, as autoridades competentes. Ou talvez não tão competentes como isso: na realidade, foram raros os países da Europa a conseguir piores resultados em Tóquio 2020, ou 21, que no caso vai dar ao mesmo: São Marino só conseguiu três, Finlândia, Estónia, Letónia e Kosovo ficaram pelas duas (mas os dois primeiros casos são de excepção em relação aos resultados do passado), enquanto Lituânia, Moldávia e Macedónia só trouxeram do Japão uma medalha cada um. Já a Holanda, só para dar o exemplo de um país que nem sequer é exactamente uma potência do desporto mundial, tem menos de metade do tamanho de Portugal e menos do dobro da população (17 milhões de pessoas), conquistou nove vezes mais medalhas (36). Não serão os atletas os responsáveis por estes fracos resultados: Pichardo, Mamona, Fonseca ou Pimenta – e as respectivas equipas técnicas, naturalmente – mostraram que é possível preparar, competir, disputar as vitórias uma a uma, conquistar provas de exigência máxima. O mesmo também se aplica, aliás, a quem não trouxe medalhas mas construiu durante anos o percurso para lá chegar, a superação das provas de qualificação, a persistência, a capacidade para conseguir um lugar nesses palcos que durante dias concentram os holofotes e os olhares de grande parte da população do planeta. Não foi nas suas provas, no salto mais ou menos conseguido, no lançamento mais ou menos perfeito, na aceleração mais ou menos perfeita, no golo que se marcou, deixou de marcar ou sofreu, que esteve o problema: o problema está onde sempre esteve e a história também nos mostra isso. Na realidade, talvez a mera contagem de medalhas seja uma medida pouco justa do esforço que se vai fazendo para participar em competições desportivas – ou, de maneira mais abrangente – da qualidade das políticas desportivas que se implementam. Certamente que o tamanho conta e que países mais populosos têm mais chances de encontrar super-talentos que os representem, independentemente do que falta fazer, antes e depois: a captação, a organização, o treino, o enquadramento na sociedade, antes, durante e depois dos períodos em que desportistas das mais variadas modalidades se dedicam a práticas de “alto rendimento” ou de “alta competição”. Para medir a qualidade, a eficácia ou o sucesso dessas práticas, relativizar o número de medalhas pela população de cada país oferecerá certamente uma comparação mais precisa do que representam as políticas desportivas nacionais – ou pelo menos de como se manifestam na obtenção de resultados. E é aí que se demonstra categoricamente o desastre histórico que temos permanentemente vivido – e continuamos a viver – em Portugal. Mesmo contando só com os Jogos Olímpicos de Verão, que os de Inverno são em geral pouco propícios a uma prática regular no sul da Europa, os resultados de Portugal são uma lástima. O mesmo país que enche avenidas com celebrações eufóricas para vitórias futeboleiras, exibe pelo mundo permanentes figuras tristes, que a história acaba por revelar implacavelmente. Com base em várias compilações publicadas, é possível verificar que Portugal conquistou até hoje uma medalha olímpica por cada 440 mil habitantes (actuais) do país. Deixando de fora países com menos de um milhão de habitantes (cuja posição nestas tabelas é demasiado sensível a mais uma ou menos uma medalha) atrás de nós, na Europa, só encontramos a Moldávia, a Sérvia, o Montenegro, o Kosovo e a Macedónia, São todos países que resultaram da divisão da Jugoslávia e da União Soviética e que por isso participaram em muito poucas edições dos Jogos. Caso se considerasse a média de medalhas conquistadas em cada participação olímpica, Portugal ocuparia um destacado último lugar. E a participação deste ano em Tóquio, orgulhosamente apresentada como a melhor da nossa história, não destoa de tudo o que se fez antes. Estes dados mostram outros aspectos da geo-política desportiva internacional. Continuando a deixar de lado os países com menor população (menos de um milhão de habitantes), encontramos nos dez primeiros lugares da tabela classificativa das medalhas olímpicas por habitante a Finlândia, a Suécia, a Hungria, a Dinamarca, a Noruega, a Bulgária, a Jamaica, a Nova Zelândia, a Estónia, a Alemanha Oriental (ainda!) e a Suíça. Em geral, são países que conquistaram a maior parte das medalhas durante o período em que tiveram um estado socialista, ou de países que reconhecidamente promoveram estados de bem-estar dos mais avançados do planeta. E se no primeiro caso até podemos dizer que os resultados desportivos foram regularmente utilizados como formas de promoção política e ideológica dos regimes então dominantes, já no segundo caso o mesmo não se aplica: não há grandes sinais de que governos da Finlândia, Suécia, Dinamarca, Noruega, Nova Zelândia ou Suíça evoquem os respectivos sucessos desportivos para fazer qualquer tipo de auto-promoção internacional. Outro exemplo, aliás, das diferenças nos resultados desportivos entre um Estado altamente interventivo e um estado de orientação liberal pode encontrar-se ao comparar a China com a Índia: embora a população chinesa seja apenas 5 por cento maior que a indiana, a China conquistou em Tóquio 88 medalhas, 12 vezes mais do que as 7 conquistadas pela Índia. É visível que os resultados das Olimpíadas não se dão muito bem com as mais radicais economias de mercado: mesmo os poderosos Estados Unidos, líderes absolutos e inequívocos na conquista de medalhas olímpicas, aparecem na 39.ª posição quando se calcula o número de medalhas por habitante (atrás de grande parte dos países do leste da Europa mas também da Grécia, da Bélgica ou de Cuba). O que os Jogos Olímpicos nos vão lembrando, implacavelmente, é essa ausência de uma política desportiva que integre a prática desportiva enquanto componente básica da educação e da formação integral de cada pessoa com as práticas orientadas para a competição e o “alto rendimento”. No caso português, faz-se pouco, num e noutro campo. E de quatro em quatro anos (ou cinco, como nos calhou desta vez), celebrarmos essas misérias profundas da sociedade que conseguimos até agora construir. Fazer de conta que as quatro medalhas que vieram de Tóquio constituem qualquer coisa de notável é dar mais um passo para aprofundar essa miséria.
João Romão VozesCitius, Altius, Fortius – Veritas Têm sido os Jogos das atletas: à falta de público nas bancadas, da habitual ostentação de impantes patrocinadores, da procura de visibilidade mediática para dirigentes desportivos e políticos com mais ou menos propósito e dependentes de posicionamentos geo-políticos diversos, estas Olimpíadas têm tido pouco mais do que o exercício dos jogos em si mesmo, a competição desportiva reduzida à sua essência, atletas a disputar vitórias e medalhas perante câmaras que hão-de dar visibilidade a uma solidão improvável para as Olimpíadas. Não é que tenham faltado motivos para, por exemplo, se reacenderem velhas Guerras Frias, mas mesmo a compulsiva exclusão da Rússia havia de ser sabiamente compensada e drasticamente atenuada pela participação da enigmática ROC, sigla inicialmente incompreensível para espectadores com menos dedicação à causa, mas hoje já familiar a quem acompanhe os Jogos, mesmo com alguma reserva e distância. Foi aliás num desses momentos mais propícios à frieza da guerras geopolíticas antigas que a História foi registando em Olimpíadas diversas que as atletas decidiram afinal oferecer um exemplo magnífico e anacrónico de desportivismo, respeito por rivais, solidariedade entre quem dedica esforço máximo e quase toda a vida a dar o melhor de si para se aperfeiçoar no exercício desportivo, na celebração do jogo: a formidável equipa de ginástica dos Estados Unidos tinha perdido a sua melhor atleta em plena competição, teve que disputar a final colectiva com essa inevitável desvantagem, acabaria por ver interrompida uma hegemonia planetária de quase 30 anos, agora conquistada pela Rússia, aliás a ROC, a maior herdeira da magnífica tradição soviética que nas últimas décadas foi sistematicamente derrotada pelas rivais da América do Norte, essas que no momento da derrota atravessam ténues fronteiras implícitas nos territórios do pavilhão, para beijarem e abraçarem as novas campeãs olímpicas, transformando subitamente guerras frias em amizades quentes. Disso certamente pouco se falará, que os tempos mediáticos são mais propícios à exaltação do sangue que possa correr em cada arena competitiva, à glória de quem ganha e à miséria de quem perde, com pouco ou nenhum espaço para eventuais e anacrónicas fraternidades entre quem joga o jogo que tem a jogar e sabe da efemeridade de cada resultado. Foi nessa prova que se assistiu a um dos mais dramáticos momentos dos Jogos até agora: a desistência da ginasta norte-americana Simone Biles, super-favorita a conquistar todas as medalhas em disputa, individuais e por equipas, em qualquer dos aparelhos. Era também candidata a igualar ou melhorar históricos recordes de medalhas conquistadas por ginastas em Olimpíadas anteriores e tinha sobre si todos os olhares de quem aprecia a modalidade. Falharia rotundamente, no entanto, em até em sentido literal: que o corpo faça pirueta e meia quando estava preparado, treinado e programado para duas piruetas e meia é suficiente para confundir e desestabilizar um cérebro que ali e naquele momento opera em concentração máxima, quando cada centésimo de segundo é decisivo para a performance que dura alguns minutos, poucos mas que oferecem corolário inevitável a anos de esforço, preparação, mentalização, criatividade, inteligência, superação a cada dia, todos os dias. É essa a vida de qualquer ginasta e nem vale a pena entrar nos detalhes do percurso particular que levou Simone Biles até Tóquio, que também inclui um ambiente familiar violento e casos de abuso sexual por parte de um médico da equipa de ginástica dos Estados Unidos. Afinal, no tapete é só ela e os seus demónios, assume a super-ginasta, um prodígio atlético, que afinal assume tranquilamente a sua fraqueza perante o mundo, a sua verdade, a importância de preservar a saúde mental neste planeta em que o lema olímpico “mais rápido, mais alto, mais forte” parece ter sido abusivamente adaptado para servir de mote a uma sociedade despojada de solidariedade comunitária e obcecada com vertiginosos processos competitivos onde, na realidade, acabamos sempre por perder qualquer coisa. Simone Biles não foi, no entanto, a única super-estrela do firmamento desportivo a sair sem a espera glória mas com inesperada humildade desta peculiar edição dos Jogos, marcada por esse triste isolamento e distanciamento social que a convivência possível com a pandemia de covid-19 implica. Também Naomi Osaka, tenista de excelência, a jogar no Japão e pelo Japão, o seu país de nacionalidade mas onde nem sempre viveu e onde os filhos de pessoas japonesas com pessoas estrangeiras, como ela, são carinhosamente tratadas por “metade”, acabaria por ter uma participação em competição muito abaixo do que os seus pergaminhos nos rankings internacionais poderiam fazer prever. Neste caso, as fraquezas até já se tinham revelado antes dos Jogos: jogar é bom mas enfrentar a avidez da imprensa é um acto de violência para o qual se assume impreparada, recusando até participar em torneios do chamado “Grand Slam”, naturalmente com muito generosos prémios, para não ter que enfrentar despropositados interrogatórios de jornalistas a seguir ao esforço do jogo. Tal como Simone Biles, Naomi Osaka, quer pôr a integridade possível da sua saúde mental à frente da insanidade competitiva das sociedades contemporâneas e da respectiva implacável mediatização permanente. Ficamos com a generosidade da verdade destas fraquezas humanas para agradecer a estas super-atletas.
João Romão VozesAinu Comunidades indígenas é tema que pouco nos ocorrerá quando pensamos no Japão, ilha distante e relativamente isolada, com notoriedades internacionais várias, desde filosofias e saberes ancestrais até modernos desenvolvimentos tecnológicos, mas a que remotamente associamos a presença de minorias étnicas indígenas, que afinal existem, no seu longo e sistemático silêncio desde que se procedeu a um processo massivo e forçado de assimilação e “integração” na sociedade japonesa, no final do século XIX. As comunidades Ainu viviam sobretudo na região de Hokkaido, uma ilha no norte do Japão, e num conjunto de outras ilhas, ainda hoje objecto de disputas internacionais com a Rússia, num trajecto marítimo que conduz à costa oriental russa. Com uma língua própria, não escrita, que se foi transmitindo oralmente, esta comunidade antecipou muito largamente a chegada de habitantes japoneses a Hokkaido, o que só aconteceria no final do século 19, para edificar a cidade de Sapporo e iniciar a ocupação da ilha. A hostilidade foi grande desde o primeiro momento, incluindo também o universo académico, com grande centralidade, política e geográfica, na nova cidade de Sapporo. Ainda hoje o vasto campus da Universidade de Hokkaido fica situado em pleno centro urbano e já era um dos elementos centrais na planta e no conceito original desta nova cidade construída numa área quase inabitada do planeta. E é esse “quase” que assinala as relevantes diferenças: se não é original colocar uma universidade (neste caso uma escola de estudos agrícolas, na sua formulação original) no centro da urbe, já a presença de comunidades indígenas anteriores à chegada da população dominante no país foi uma novidade na evolução histórica da sociedade japonesa que ainda hoje coloca problemas por resolver. A relação da população do Japão com as comunidades indígenas Ainu foi desde o início de imposição e assimilação: com o importante suporte ideológico de um professor vindo dos Estados Unidos para liderar a fundação da Universidade de Hokkaido (ainda hoje omnipresente na estatuária da cidade de Sapporo), as comunidades Ainu – e os territórios que ocupavam – foram juridicamente integradas na sociedade japonesa, quer em termos das suas identidades como pessoas, quer no que respeita aos seus nulos direitos de propriedade sobre o solo, ao contrário do viria a suceder noutros países com comunidades em situação semelhante. Na realidade estas comunidades foram obrigadas a relocalizar-se e a sua língua foi proibida. Mais de um século passaria até haver um parco reconhecimento das comunidades Ainu, em 1997, relacionado com alguns aspectos culturais específicos, incluindo a língua, mas sem qualquer direito à posse de terras ou compensação pela imposição forçada de normas sociais estranhas à população. Na realidade, só quando Hokkaido acolheu magna reunião do denominado “G8” (em 2008, um anos depois da publicação da declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas), o governo japonês viria a reconhecer os Ainu como população indígena a viver em território japonês. Essa reconhecimento só viria a assumir plena força de lei em 2019, definindo-se a comunidade Ainu como uma minoria étnica no país. A lentidão, injustiça e mesmo violência com que os processos administrativos impuseram a assimilação das comunidades ao longo de mais de um século tiveram naturalmente impacto nos modos de vida de cada uma das pessoas que lhes pertencia – e que eram inevitavelmente tratadas como de segunda categoria no próprio país onde sempre tinham habitado. Esse estigma fez com que, até aos dias de hoje, as pessoas de etnia Ainu evitassem assumir publicamente as suas origens. Também a nível universitário a relação conflictual havia de ser prolongada – e ainda hoje não resolvida. Na realidade, o meu único contacto directo com membros da comunidade Ainu deu-se há quase 10 anos, quando trabalhava temporariamente num projecto na Universidade de Hokkaido. Em frente ao portão principal do campus, um pequeno grupo de pessoas Ainu reivindicava a devolução dos cadáveres que, com fins científicos, tinham sido expropriados aos seus antepassados durante a primeira metade do século 20 e que nunca tinham sido devolvidos. Um problemas de difícil solução hoje, portanto, e que continua a assinalar a tensão duradoura entre a academia e as comunidades indígenas de Hokkaido. Na realidade, ainda que a Universidade tenha inaugurado em 2005 um centro de estudos dedicado às comunidades Ainu e indígenas, só agora ali trabalha uma investigadora de origem Ainu. A assinalar a sua entrada no centro, Mai Ishihara dá uma entrevista à página de internet da Universidade onde, entre outras coisas, descreve a forma como toda a vida omitiu as suas origens, que na realidade só lhe foram reveladas pela família quando já tinha 12 anos. Mesmo já adulta e a trabalhar na Universidade, a investigadora explica as dificuldades e hesitações que teve para assumir publicamente as suas origens ancestrais na sociedade japonesa contemporânea. E no entanto, as comunidades Ainu que ainda hoje são vistas de forma preconceituosa e estigmatizadas como categoria social inferior, acabam por ser usadas como atracção turística na região de Hokkaido, onde visitei vários museus dedicados às suas tradições culturais e até uma “aldeia Ainu”, onde supostamente se realizariam performances artísticas da comunidade e se venderia o seu artesanato(o que afinal não foi propriamente o caso). Na realidade, nem nos museus, nem na dita aldeia voltei a ter oportunidade de contactar pessoas Ainu. Talvez esta integração num centro universitário de uma investigadora que assume a sua origem Ainu constitua um tardio mas relevante passo no sentido do reconhecimento de pleno direito desta comunidade. Talvez o museu nacional Ainu que abriu no ano passado em Hokkaido constitua outro passo importante. Mas até agora a tradição cultural Ainu tem servido mais para promover o turismo de Hokkaido do que para reconhecer os direitos de uma população historicamente oprimida, segregada e auto-silenciada.
João Romão VozesOs Jogos da Vergonha Tempos houve em que se faziam tréguas entre os povos para se disputarem os Jogos Olímpicos, mas isso foi na Grécia Antiga. Ao longo do século XX os Jogos foram progressivamente perdendo esse espírito olímpico segundo o qual “mais rápido, mais alto, mais forte” é um ideal de superação de limites em que se enfrentam adversários circunstanciais e não inimigos políticos ou da pátria. Na realidade, os Jogos tornaram-se mesmo um prolongamento da Guerra Fria, dentro e fora dos estádios, quer nas contagens de medalhas de cada um dos lados da Cortina de Ferro, quer na mobilização para os boicotes que haviam de assinalar tentativas de manifestar hegemonias na política global. Caído o Muro, os Jogos perderam, pelo menos provisoriamente, esse sentido de disputa das hegemonias políticas e económicas planetárias, para se integrarem no devido espírito da ideologia dominante. Aliás, tornaram-se mesmo um dos mais perfeitos exemplos do que se pode definir como a organização neo-liberal do capitalismo tardio, decrépito e degradante que nos calhou viver: gigantescas parcerias público-privadas suportadas por ostentações de vãs glórias e desígnios nacionais promovidas por governos em permanente auto-promoção mediática, promovendo investimentos de grandes empresas transnacionais, altamente protegidas de qualquer tipo de concorrência, em mega-projectos de “renovação urbana” que tendem a mercantilizar cada vez os espaços públicos e a alimentar cada vez maior especulação imobiliária para promover novos processos de gentrificação e expulsão de populações indesejadas dos espaços que as modas determinam com os mais apetecíveis das cidades. O desporto – como os parques verdes urbanos, as ciclovias ou os dispositivos “inteligentes” que monitoram e vigiam a vida urbana – oferecem o branqueamento necessário a estas mega-operações que reforçam poderes económicos já dominantes, inevitavelmente financiados pelas instituições que dominam a economia global. Em Fevereiro escrevi aqui sobre os Jogos, numa crónica com o título “O vírus olímpico”, em que descrevia o Japão como um país onde o espírito original de superação pela prática do desporto e de respeito por oponentes se mantém vivo de uma forma que não encontrei noutros lugares. Será eventualmente o país olímpico, por excelência, mas nem por isso os Jogos deixam de constituir uma mega-operação de promoção nacional e de renovação urbana alimentada por projetos megalómanos de novas construções para habitação, serviços, comércios ou renovados sistemas de transportes. Contava-se também que a promoção internacional associada aos Jogos contribuísse para atrair população estrangeira, não só turistas, mas também novos residentes, ligados a novos negócios internacionais que quisessem assumir Tóquio como uma nova centralidade para os negócios na Ásia. Essa promoção, escrevia eu em Fevereiro, estava já irremediavelmente perdida, com o adiamento dos Jogos e a sua previsível realização num formato modesto, protegido, acanhado, definitivamente afastado da habitual opulência olímpica. A duas semanas do início dos Jogos Olímpicos, o que se sente no Japão é uma vergonha profunda. Não há qualquer sinal dos Jogos nos espaços públicos. Nenhuma manifestação de orgulho nacional por organizar o maior evento desportivo do planeta. Nenhuma marca patrocinadora a usar os Jogos para se promover a ganhar notoriedade. Há Jogos mas parece não haver, não é assunto de que se fale, a não ser o mínimo: as restrições à chegada de visitantes internacionais, algumas alterações nos feriados para ainda assim evitar eventuais congestionamentos nos momentos de abertura e encerramento, enfim, pouco mais do que informação formal e burocrática. Nenhuma festa, nenhuma celebração, nenhuma promoção. O motivo é a desconfiança generalizada. O governo preferia certamente não fazer os Jogos nesta altura mas não pode tomar essa decisão unilateralmente, a não ser pagando gigantesca indemnização ao Comité Olímpico Internacional. Há eleições em Outubro e o resultado eleitoral do actual partido no governo dependerá em grande medida do impacto que os Jogos possam ter na propagação da pandemia de covid-19. Na realidade, houve outros erros anteriores que foram objecto de crítica severa, sobretudo quando se decidiu subsidiar o turismo interno para reanimar economicamente o sector e afinal se alimentou um crescimento da propagação do vírus. Depois foram os atrasos no processo de vacinação, com uma demora dificilmente compreensível na aprovação das vacinas, que só seriam aprovadas no Japão quando Europa ou Estados Unidos tinham já grande parte da população vacinada. O governo, impedido de cancelar os Jogos e inibido de os adiar, tenta proteger o evento o mais possível, fazê-lo em pequenino mas com televisão para mostrar ao mundo que afinal o Japão conseguiu lidar com o vírus e organizar o maior mega-evento desportivo do planeta. A população parece altamente crítica, ainda que as manifestações públicas de protesto sejam escassas, como é habitual. As marcas patrocinadoras, conhecedoras da desconfiança generalizada, tentam vincular-se o menos possível aos Jogos. Em vez do orgulho nacional pela organização de tão magnífico evento, vive-se com alguma vergonha a obrigação de o ter que realizar nestas circunstâncias.
João Romão VozesNovas rotas dos Impérios Está a fazer dois anos: foi a 28 de Junho de 2019 que aqui publiquei “Muros e estradas”, uma crónica em que comparava o abnegado esforço do então presidente dos Estados Unidos da América para a construção de muros que protegessem o seu país de potenciais invasões de imigrantes, com a iniciativa que a China designou como a “nova rota da seda”, a reactivação dos caminhos que ligam o extremo oriente asiático à Europa, desta vez através de um programa de investimentos promovidos pelo estado chinês e destinados a reforçar as infraestruturas e capacidade produtiva de países com recursos mais escassos, não só na Ásia mas também em África, que as rotas de hoje têm maior amplitude e flexibilidade geográfica – também à medida das ambições de quem pode adaptar-se às circunstâncias ou disputar em várias frentes territoriais as competições desenfreadas que a globalização capitalista vai promovendo. Na altura olhava-se desde os Estados Unidos e da Europa com manifesta desconfiança e animosidade para esta iniciativa chinesa, percebida como uma tentativa de aumentar a influência económica, cultural e política do país com o pretexto do apoio ao desenvolvimento – enfim, o discurso habitual sobre os perigos e consequências do imperialismo, das pouco democráticas implicações da expansão da hegemonia política por via da dominação económica. A curiosidade, desta vez, é que o discurso sobre estes perigos vinha precisamente do governo de um dos países mais desenvolvidos do mundo – os Estados Unidos, com toda a sua longa tradição e pergaminhos no assunto em questão – com o diligente e dedicado apoio de governos e instituições europeias. Na minha crónica de há anos comparava então a nova “Rota da Seda” promovida pelo governo chinês com o que ficou conhecido como o “Plano Marshall”, financiado sobretudo pelos Estados Unidos, que apoiou programas de larguíssima escala para a reconstrução de infra-estruturas e capacidade produtiva após a II Guerra Mundial. Foi um plano altamente apreciado, não só por quem o promoveu, mas também pelos países que receberam os investimentos – e até pela generalidade dos analistas e estudiosos de políticas económica nas décadas que se seguiram, à esquerda e à direita do espectro ideológico. Foi um plano que claramente beneficiou os países que receberam os investimentos e que tiveram oportunidade de promover um ciclo longo de acelerada e intensa recuperação económica, que levaria até a que se viessem a questionar os limites destes acelerados processos de desenvolvimento, com a inerente delapidação de recursos e degradação ambiental, já no final dos anos 1960. Na altura, evidentemente, o plano também contribuiu – e muito largamente – para se afirmar no planeta uma hegemonia económica, cultural e política dos Estados Unidos que até então se desconhecia. Havia Hollywood, o jazz e viria o rock’n’roll, que dificilmente teriam a expansão global que tiveram se não fosse o ambiente de generalizada expansão económica, aumento do consumo, florescimento de novas actividades e interesses culturais, abertura de horizontes e perspectivas mais cosmopolitas, pelo menos para quem não vivesse sob a tenebrosa sombra de regimes ditatoriais, pobres e broncos, como o que assombrou o povo português por quase meio século. A consolidação dos EUA na hegemonia política do planeta é largamente tributária da sua liderança económica no período do pós-II Guerra e isso muito se deve a este portentoso programa internacional de investimentos. Dois anos volvidos sobre a tal crónica que aqui publiquei, muda então o cenário: há um novo governo nos Estados Unidos e uma outra percepção sobre as novas rotas da seda – que são, na realidade, novas rotas da finança: não basta olhar com desconfiança e discurso crítico para o papel que a China está a assumir ou a reforçar no apoio ao desenvolvimento económico da regiões mais desfavorecidas do planeta: se se quer disputar o inerente reforço da influência económica, cultural e política, não há outra alternativa senão fazer o mesmo. Nasce agora então novo plano, apresentado esta semana pelo presidente dos Estados Unidos aos seus parceiros líderes das potências económicas planetárias, o chamado G7, um dos símbolos máximos do imperialismo económico do planeta, disposto agora a mobilizar 40 mil milhões de dólares para apoiar investimentos na América Latina, Caraíbas, África e Indo-Pacífico. Posicionam-se então os impérios para nova disputa sobre a economia do planeta e a inerente hegemonia política. A China retomou a velha Rota da Seda para propor uma modernização acelerada de países menos desenvolvidos. Os Estados Unidos aproveitam a crise provocada pela pandemia de covid-19 para oferecer apoios à recuperação económica. Em ambos os casos, mobilizam-se os recursos da sobre-acumulação de capital que vai engordando bilionários avarentos, alimentando processos globais de especulação imobiliária ou financeira e criando sucessivas novas oportunidades para branqueamento de capitais variados. Pelo menos parte do que estes respeitáveis larápios vai acumulando retornará à esfera da produção. Já não é mau de todo.
João Romão VozesBenefícios económicos e pegadas ecológicas O turismo de negócios é normalmente visto como um dos segmentos mais interessantes para qualquer destino turístico: são normalmente pessoas com gastos bem acima da média, que ficam por pouco tempo mas geram maiores benefícios económicos, quer porque os seus rendimentos pessoais não os obrigam a grandes restrições e até lhes permitem eventuais extravagâncias, quer porque, na maior parte dos casos, as despesas são larga ou totalmente cobertas pelas organizações que representam. São turistas com pouco tempo mas com acelerado consumo, o que frequentemente envolve restaurantes de gabarito e até permite mobilizar um conjunto de serviços com relativa sofisticação para oferecer programas de visita de curta duração e alta qualidade e conforto para quem tem oportunidade mas pouco tempo para explorar alguns dos encantos de um território pouco ou nada conhecido. Essa desproporção entre a o dinheiro e o tempo disponíveis tem outra consequência, no entanto: são viajantes sem tempo a perder, em correrias sucessivas para cumprir as tarefas profissionais, seja uma reunião para concretizar uma parceria estratégica para o desenvolvimento de novas áreas internacionais de negócio, uma feira de promoção turística, uma operação imobiliária, um encontro com jovens criadores, o patrocínio de um festival de verão ou a apresentação de uma comunicação numa conferência. Há sempre pouco tempo para as tarefas e ainda menos para explorar novos destinos ou as últimas novidades em territórios já conhecidos. Tudo corre com uma urgência que requer rapidez e flexibilidade, aparentemente tidas como incompatíveis com a programação colectiva dos transportes públicos e a inerente rigidez relativa de ritmos e horários. Foi essa a principal conclusão de um estudo ainda fresco, publicado esta semana no Journal of Transport Geography, em que explorámos potenciais relações entre as características sócio-demográficas dos turistas, as suas motivações para a visita, as respectivas opções de transporte e a satisfação que tiveram ou não com a experiência turística. O estudo foi conduzido em Barcelona, cidade com um vasto e bem organizado sistema de transportes público, que garante acessibilidade relativamente fácil a todas as zonas urbanas – ou pelo menos às zonas normalmente frequentadas pelos turistas, incluindo os que viajam por motivos profissionais. Informação abundante, de fácil identificação e interpretação, disponível em várias línguas, ajuda a ultrapassar as possíveis barreiras de comunicação frequentemente associadas à dificuldade de utilização de transportes públicos por turistas. Nestas circunstâncias – em que se dispõe de uma satisfatória rede de transportes públicos sem significativos problemas de linguagem e comunicação – observámos que as diferentes características dos turistas (idade, sexo ou nível de educação, entre outras variáveis) pouco influenciam a escolha dos modos de transporte (ainda que os turistas mais jovens tendam a preferir transportes colectivos, até por restrições financeiras). No entanto, o factor que se revelou mais determinante nessa escolha foi o motivo da viagem, com os turistas motivados pelo lazer ou pela visita a familiares e amigos a revelar clara preferência por transportes públicos, em contraste com a preferência por transporte individual (taxis, sobretudo) revelada pelos visitantes cuja presença em Barcelona se deve a motivos profissionais. Na realidade, o estudo mostrou ainda que também os turistas com motivação profissional tendem a preferir transportes colectivos quando a visita se torna mais longa e é combinada com lazer ou visitas a familiares e amigos. Também se demonstra com clareza que a utilização de transportes públicos, não só não diminui a satisfação com a visita, como é um dos factores que mais contribui para uma apreciação global positiva da cidade de Barcelona. A questão dos transportes é, evidentemente, um aspecto central no futuro do turismo, tendo em conta o respectivo impacto nas emissões de CO2 e inerentes implicações sobre as alterações climáticas em curso. Em estudo recente publicado pela Organização Mundial de Turismo e pelo Forum Internacional de Transportes, estimava-se em 5% o contributo do turismo para o total de emissões de CO2 provocadas por acção humana. Para essas emissões contribuem sobretudo o transporte aéreo (40%) e o transporte por automóvel (32%), sendo de apenas 3% o contributo de todas as outras formas de transporte (incluindo comboios, barcos ou autocarros). Se a redução drástica do turismo internacional e do transporte aéreo parecem a única alternativa razoável para tentar compatibilizar o futuro do turismo com uma resposta efectiva às alterações climáticas, a substituição do transporte em automóvel por transportes colectivos parece ter semelhante importância e urgência nos processos de mobilidade no interior de cada destino turístico. O obstáculo a esta transformação, sugere o nosso estudo, são os atarefados e apressados turistas com afazeres profissionais, o único grupo com preferência inequívoca pelo táxi. São turistas que pelo seu poder de compra proporcionam maior impacto económico, mas que também deixam nas paisagens marca mais pesada da sua pegada ecológica, com acumulação intensiva de emissões de CO2 relacionadas com aviões, primeiro, e automóveis privados, depois. Está por conseguir, mais uma vez, melhor equilíbrio nesta relação entre benefício económico impactos sobre o ambiente. Não deixa de ser relevante, já agora, que neste grupo de turistas nos encontremos também nós, investigadores mais ou menos preocupados com estas questões, quando participamos nas conferências e congressos de que não gostamos de abdicar. Concluo com uma curiosidade relevante: porque motivo um investigador japonês radicado no Japão e uma investigadora chinesa a trabalhar na Coreia se dedicam a estudar a cidade de Barcelona? É uma razão prática, sobretudo: em Barcelona é entendido que toda a informação obtida com financiamento público deve estar acessível ao público. Assim sendo, estão online e com acesso livre todos os dados recolhidos nos inquéritos regulares que a Câmara de Barcelona faz a turistas e residentes. É verdade que há poucas cidades onde um estudo destes possa ser feito – com quantidade significativa de turistas e uma rede de transportes públicos eficaz e sem grandes barreiras de comunicação – mas esta é a única que disponibiliza gratuitamente os dados necessários a um estudo deste género.
João Romão VozesTrês meses que abalaram o mundo O catastrófico balanço dos impactos da pandemia de covid-19 no planeta estará sempre por completar mas uma boa síntese provisória é apresentada em relatório recentemente publicado por um painel independente criado pela Organização Mundial de Saúde (OMS): 148 milhões de pessoas infectadas e mais de 3 milhões de mortes, incluindo pelo menos 17.000 profissionais de saúde, com prejuízos económicos globais na ordem dos 10 triliões de dólares em 2021 e 22 triliões entre 2020 e 2025, naquele que é o maior choque na economia mundial desde a segunda guerra mundial. No momento mais crítico da pandemia, 90% das crianças do planeta não puderam ir à escola, multiplicaram por 5 os casos de violência doméstica e entre 120 milhões de pessoas ficaram em situação de pobreza extrema. Este dramático retrato também serve para revelar a dimensão da irresponsabilidade das respostas políticas aos sinais da emergência da pandemia – e da urgência dessas respostas. O mesmo relatório afirma que durante os três meses que decorreram entre o aparecimento dos primeiros casos em Wuhan e a generalização global da pandemia houve informação partilhada e pareceres técnicos de alto nível em variadas instituições que teriam sido mais que suficientes para despoletar respostas urgentes e sólidas para antecipar e prevenir os problemas que haviam de chegar em breve. Pelo contrário, apesar da quantidade, clareza e credibilidade das informações que se foram acumulando durante três meses, o mundo acabou por reagir como se tratasse de uma surpresa (“rigorosamente nada foi antecipado, preparado ou planeado nos 3 ou 4 meses que passaram entre a identificação do vírus na China e a sua chegada à Europa”, escrevia eu na crónica “Um ano em covid”, aqui publicada em 22 de Janeiro de 2021). São certamente mais sérias e credíveis que as minhas, as observações deste painel independente para a preparação e resposta às pandemias que a OMS criou com o objetivo de recolher o máximo de evidências técnicas e científicas para enfrentar possíveis casos semelhantes no futuro. O painel inclui especialistas com reconhecimento em várias áreas com relevo para o estudo das pandemias e está a analisar com o detalhe possível (que não é pouco) a propagação da doença e respectivas respostas, com vista a fazer do covid-19 “a última pandemia”. Independentemente da qualidade, celeridade e clareza dos trabalhos que vier a produzir, não será tarefa fácil, tendo em conta a irresponsabilidade generalizada com que se lidou com o problema na maior parte do mundo. Não se sabendo se esta vai ou não ser a última pandemia, certo é que não se trata da primeira: uma pandemia associada a síndromes respiratórios (SARS) já tinha afectado o mundo há quase 20 anos, durante 6 meses de 2003, com mais 8000 casos e quase 800 mortes em 29 países. Pela primeira vez se tornou evidente a possibilidade de transmissão rápida e fácil de doenças, mesmo na ausência de sintomas. Depois deste caso houve outras propagações internacionais com repercussões significativas, como as associadas ao vírus H1N1 (em 2009) ou aos vírus Ébola e Zika (entre 2014 e 2016). O estudo que suporta esta crónica identifica pelo menos 16 relatórios e 11 painéis e comissões de alto nível que desde 2009 apresentaram detalhadas recomendações para melhorar a preparação dos sistemas de saúde para enfrentar situações semelhantes de pandemia. Apesar disto, a chegada do covid-19 encontrou sistemas de saúde completamente desprevenidos, impreparados e frequentemente com severas limitações financeiras. O resultado foi inviabilizar as medidas preventivas que teriam tido custos muitíssimo menores que as que tiveram que se assumir quando a pandemia ocorreu – e continuarão a ter que ser assumidas no futuro. Ao contrário do que se tem frequentemente afirmado, a identificação do vírus pelas entidades de saúde da China até foi relativamente rápida: em Dezembro de 2019 apareceu um pequeno grupo de pacientes com problemas respiratórios severos, em diferentes hospitais da cidade de Wuhan, que não reagiu como esperado a tratamento para uma aparente pneumonia. No início de Janeiro já se tinha identificado um padrão comum para estes problemas, o que levaria à rápida identificação da sua origem, do vírus causador e até ao confinamento total da população ainda em 23 de Janeiro de 2020. A 30 de Janeiro, a Organização Mundial de Saúde declarava uma “situação de emergência internacional de saúde pública” relacionada com o vírus, incluindo recomendações detalhadas sobre como conter a sua propagação, como lidar com as infecções ou como tratar e isolar os casos que se viessem a identificar. Nesse final de Janeiro, já o vírus tinha sido identificado em 19 países, também não houve uma resposta generalizada pelos diversos serviços nacionais de saúde à já mais que previsível difusão global da pandemia. O problema havia de se generalizar em Março de 2020, 3 meses depois da sua origem em Wuhan, perante total impreparação, ausência de planeamento, escassez do mais elementar equipamento de prevenção, falta de meios e infra-estruturas para isolamento e tratamento de pessoas infectadas, ausência de planos e mecanismos para identificar e monitorizar contactos e possíveis focus de infecção, regras possíveis para reduzir os contactos e aumentar a chamada “distância social”. Foram três meses de negligência que abalaram o mundo tal como o conhecemos: tudo podia ter sido de outra forma, mais tranquila, com menos dor, menos mortes e menos custos económicos e sociais. Na realidade, por mais dramáticos que sejam, os problemas não se limitam às infecções por covid-19, sabemos hoje bem: a enorme pressão sobre profissionais e serviços de saúde levou também a negligenciar, degradar ou mesmo interromper a prestação de outros cuidados, subitamente menos urgentes e menos críticos, mas nem por isso menos problemáticos para quem os sofre. Hoje vivemos tempos já diferentes, com algum horizonte de que o problema se ultrapasse relativamente depressa, graças à imunidade que a vacinação em larga escala possa proporcionar. Mas o acesso às vacinas constitui outro problema político e económico, lembra também o tal relatório do painel independente: enquanto alguns dos países mais desenvolvidos do mundo (Austrália, Nova Zelândia, Canadá, Estados Unidos, Reino Unido e União Europeia) dispõem a curto prazo de vacinas suficientes para 200% da sua população, os países asiáticos, africanos ou da América Latina continuam bastante longe de um nível de imunidade suficiente para garantir a segurança comunitária. Aliás, não deixa de ser curioso que tenha sido a Ásia o primeiro continente a reagir e a conter a propagação do vírus, mas que possa ser o último a reabrir as fronteiras ao tráfego e ao turismo internacionais.
João Romão VozesFuturos que tresandam a passado Há ironias assim: instalou-se no planeta a pandemia de covid-19 pouco tempo depois de ter sido convidado a contribuir com um capítulo para um livro sobre turismo em áreas protegidas do Mediterrâneo na era do “overtourism” (“Mediterranean Protected Areas in the Era of Overtourism”, publicado pela Springer, para quem possa interessar). Ainda não tinha sequer começado quando fui confrontado com esse paradoxo de me propor escrever sobre “demasiado turismo” quando a actividade turística estava bloqueada (ou quase). A solução para o aparente imbróglio havia de ser simples: na realidade, as consequências problemáticas do “turismo a mais” ou do “turismo a menos” têm a mesma origem: o excesso de turismo nas economias locais e regionais. Na origem do convite estava um projecto relativamente longo a que dediquei alguns anos de investigação e que incluiu, entre outros tópicos mais ou menos relacionados, uma análise da relação entre os recursos naturais das regiões europeias e a sua dinâmica turística, quer em termos do número de visitantes, quer em termos do valor acrescentado gerado para as economias locais. Muito frequentemente a procura turística e a riqueza gerada nos destinos estão longe de ser a mesma coisa. Logo na recolha de informação tive a primeira surpresa, quando compilei os dados sobre a percentagem do território de cada região classificada como zona protegida no âmbito da rede europeia “Natura 2000”, que define regras e critérios comuns para todas as regiões da UE. Apercebi-me então da magnífica liderança das regiões mediterrâneas, sendo relativamente frequente encontrar mais de um terço do território sob a alegada protecção desta forma de classificação e certificação ambiental. Entre as mais de 200 regiões que observei, as que tinham mais de um quarto da sua área inscrita na Rede Natura eram quase todas portuguesas, espanholas, francesas, italianas ou gregas. Não tenho conhecimentos suficientes de biologia para afirmar se esta diferença se deve a efectivas diferenças na biodiversidade e na importância dos recursos naturais de cada região, se é o resultado do excesso de zelo legislativo que é frequentemente reconhecido nesta zona do Sul da Europa e que nos faz ser (re)conhecidos como “os bons alunos” da União Europeia, os pobrezinhos mas honrados europeus que traduzem com mais abnegação do que os legisladores as leis e normativas, mas que pouco ou nenhum poder temos para influenciar. Não me surpreenderia que assim fosse, mas nem era esse o meu assunto nem eu sou pessoa habilitada para o estudar com a seriedade que o tema merece. Também não é meu assunto avaliar se essa generosa integração de territórios na Rede Natura (entre um quarto e um terço, em geral, mas chegando a ultrapassar os 40%) contribui para uma certa forma de ordenar o território ainda muito enraizada em Portugal: um ordenamento que em grande medida não se faz pela afirmação de uma estratégia de utilização de espaços e recursos, mas pela sua negação e proibição: quer a reserva ecológica, quer a reserva agrícola existentes no nosso ordenamento territorial, para lhe chamar alguma coisa, têm funcionado mais como formas de limitar a expansão urbana e os processos de construção, do que como formas de planear, proteger e valorizar a natureza ou as práticas agrícolas. Um dos resultados é ter um território ordenado e regulamentado por excepções, abertas em nome de superiores interesses nacionais e outras figuras jurídicas de relevo, após longos e penosos processos jurídicos e administrativos, para que se possa eventualmente vir a permitir que se desenvolvam novas áreas habitacionais, de serviços ou turísticas em áreas onde supostamente se protegeria a agricultura ou a natureza. Um país excepcional, portanto, é o que resulta deste regime onde as excepções, claro está, só são possíveis para quem possa pagar os serviços de consultoria a assessoria necessários à navegação pelas turvíssimas águas dos nossos ordenamentos territorial e jurídico. E também um pasto muito fértil para os bois e os borregos das redes nacionais de corrupção. Nada disto vinha ao caso do tal projecto de investigação a que aludia, mais concentrado noutros e certamente mais singelos problemas, mas que ajudou a revelar que estes territórios de alto valor ecológico para a magnífica União Europeia, são também aéreas de intensa procura turística, destinos de viagem massificados e aparentemente inconciliáveis com a suposta vulnerabilidade dos ecossistemas que justificam tamanho zelo administrativo pela burocracia do país e da UE. Um zelo tonto e inconsequente, sabemos bem: afinal as nossas preciosidades ecológicas servem para que se instalem as multidões de nortes vários das Europas, gente com sede de sol, mar e cerveja, e que afinal gasta pouco – e essas foram também contas que fui fazendo quando estudei o assunto: apesar da evidente ligação directa entre territórios de alvo valor ecológico e pressão turística massificada, estas são também regiões onde o turismo gera pouco valor acrescentado: pouca riqueza se cria em comparação com o turismo que se faz noutras partes da Europa – e parte dela nem sequer fica no país, regressando a grandes empresas internacionais em circuitos mais ou menos lícitos e mais ou menos expostos à tributação e outras formalidades administrativas que paraísos diversos permitem iludir. Esse turismo a mais, que perturba quem vive nos destinos de férias, transforma valores culturais em mercadorias baratas de consumo imediato e destrói ecossistemas, é um problema para a Europa mediterrânica. A sua súbita interrupção, obrigando ao encerramento de empresas, lançando no desemprego milhares de pessoas e abrindo novos horizontes de incerteza é outro problema. Em todo o caso, os problemas relacionados com o “turismo a mais” ou com o “turismo a menos” são causas com a mesma origem estrutural: a excessiva dependência das estruturas económicas regionais de um sector turístico massificado, de exploração máxima do trabalho e dos recursos, de baixos preços e baixos salários. Uma estrutura económica pouco diversificada, onde normalmente faltam a inovação, o conhecimento ou a tecnologia. Se a pandemia de covid-19 obrigar a uma reorganização do turismo contemporâneo, mais adequada às preocupações com o esgotamento de recursos e das alterações climáticas, com mais restrições e menos abertura à mobilidade internacional, é o mercado que vai fazer essa regulação. E como se vai vendo nas poucas experiências internacionais de reabertura dos serviços turísticos, são os segmentos mais altos dos mercados turísticos (com empresas financeiramente mais preparadas para lidar com crises e consumidores com maior poder de compra) que estão a dar sinais mais claros de resiliência neste contexto de crise generalizada. Talvez seja o prenúncio de um regresso ao passado, em que o turismo internacional era privilégio de classe ainda mais pronunciado e o turismo doméstico a opção possível para os mais pobres. Não será boa notícia para o turismo no mediterrâneo, tal como o temos vindo a conhecer.
João Romão VozesBola ao centro Anunciada com pompa e inevitável soberba, a superliga do futebol europeu parece ter morrido antes de nascer: um torneio onde o pedigree iria definir o acesso, com alegados precedentes históricos a determinar direitos futuros e participação garantida para os membros fundadores, auto-consagrados como os mais prestigiados do planeta futebolístico, já detentores das maiores riquezas mas à procura de uma apropriação ainda maior dos benefícios globais que o espetáculo da bola vai gerando, entre bilhetes para os estádios, direitos televisivos, mercadorias promocionais, subscrição de canais digitais ou outras formas de rentabilizar marcas de notório sucesso e visibilidade. Não é nova, evidentemente, esta tentativa de transformar em rendas garantidas benefícios que teriam que ser disputados em arenas – ou mercados – com alguma concorrência, ainda que altamente desequilibrada: esta é, na realidade, uma característica marcante do capitalismo tardio que nos tocou viver, já com escassos recursos e mercados por explorar e oportunidades de lucro insuficientes para a avidez dos mais agiotas do planeta. Escasseiam também progressos tecnológicos susceptíveis de transformar empresas em figuras singulares e inimitáveis, criadoras dos seus próprios monopólios, e por isso dos seus rendimentos rentistas, apesar de tudo conseguidos à custa de inteligência e criatividade. Podemos olhar para o primeiro caso – o do esgotamento das oportunidades de exploração intensiva de recursos, como Marx antecipou: a inevitável tendência para a descida da taxa de lucro que havia de matar o capitalismo. Ou podemos olhar para a segunda hipótese, a do esgotamento das possibilidades de inovação, tal como Shumpeter definiu: a burocratização de uma economia que apenas se reproduz, incapaz de gerar novas rupturas e desequilíbrios criativos. Olhemos por um ou por outro prisma, as consequências são semelhantes: é notória nas últimas duas décadas a concentração do capital em enormes empresas transnacionais, com sucessivas fusões e aquisições, mais ou menos hostis, nos mais diversos sectores de actividade, concentrando o poder económico e político em cada vez menos entidades ou pessoas e naturalmente diminuindo a tal concorrência que devia ser apanágio dos mercados livres das economias contemporâneas. Outro exemplo é o da privatização sucessiva de serviços públicos ou de sectores estratégicos das economias, incluindo transportes, energia, educação, saúde, habitação, enfim a mercantilização de tudo o que é essencial à vida humana. Transformando a prestação de serviços públicos em monopólios privados parasitários criam-se novos rendimentos rentistas que dispensam a concorrência e consolidam a concentração da riqueza de quem já a tem à custa da vulnerabilidade e das necessidades básicas da maioria da população. Um exemplo flagrante desta violência económica, social e política é o das vacinas que supostamente irão neutralizar a maior pandemia que jamais afectou a humanidade: com patentes que privaram os benefícios da sua comercialização, resolvem um problema de saúde enriquecendo ainda mais um reduzido número de empresas com ampla hegemonia no mercado global de saúde, neste caso a operar em quase-monopólio, com uma procura global francamente superior à capacidade de oferta e um poder quase absoluto para decidir preços e margens de lucros: cá estamos para pagar o que for preciso, por interpostos governos, para que nos livrem do terrível vírus. Tem sido assim com o resto da saúde, naturalmente: já é pequeno o papel do estado na apropriação do conhecimento e no controle dos processos de produção, ainda que continue a ser um agente essencial à educação, formação, investigação e desenvolvimento científico, neste como noutros sectores essenciais à vida humana. A criação da tal superliga de futebol europeu inscreve-se com facilidade nesta lógica predatória de aceleração e intensificação dos processos de dominação e controle de mercados: um torneio que dispensa boa parte da competição, como outros monopólios dispensam a concorrência económica: até poderia haver umas vagas para quem tivesse méritos devidamente comprovados, mas estariam reservados para a eternidade os lugares ocupados pelos clubes fundadores, essa auto-denominada aristocracia do futebol europeu, com direitos históricos adquiridos por inerência que ultrapassam quaisquer outras veleidades da meritocracia – e da tal competição, que supostamente seria o essencial destes torneios alegadamente desportivos. De resto, na agenda dos agiotas estava também a limitação dos salários e do valor das transferências dos jogadores, aproveitando os super-poderes patronais que a ausência de concorrência consagra na sua plenitude. Não correu bem, no entanto: levantaram-se muitas vozes com determinação suficiente para neutralizar o processo, pelo menos por enquanto: grandes clubes da Alemanha e da França não acederam ao convite, clubes médios com legítimas aspirações à elite protestaram desde o primeiro momento, praticamente todas as instituições reguladoras do futebol europeu, e mesmo os adeptos de alguns clubes supostamente beneficiados vieram rapidamente para a rua gritar. O recuo dos clubes ingleses parece ter neutralizado esta intentona monopolística, a que se seguiram também clubes ingleses e espanhóis. Se a concentração do poder futebolístico continuar, será por outras vias, que não a da imposição administrativa de torneios exclusivos e fechados à competição. De resto, não é a primeira vez que no futebol se nota uma rejeição das tendências contemporâneas do capitalismo tardio que infelizmente não se observa noutros domínios das nossas economias e sociedades: já há alguns anos, também foram grandes os entraves à liberdade de transferência de jogadores, quando já a globalização dos mercados e a liberdade de circulação de pessoas e capitais se expandiam pelo planeta em sucessivos acordos comerciais, económicos e políticos. Na altura, um jogador chamado Bosman havia de se tornar ponta de lança de progressos legislativos que haviam de trazer ao futebol os processos de liberalização condizentes com os do resto da economia. Veremos num futuro próximo em que resultam estas intenções de criação de uma superliga de privilegiados. Não se nota grande coisa noutros domínios da economia, da sociedade ou da política, mas quando toca ao futebol, ainda se levantam as vozes contra o liberalismo vigente. Antes isso. Bola ao centro!
João Romão VozesTurismo responsável Reabrem os nossos universos às possibilidades do convívio quando passou já mais de um ano sobre a chegada à Europa do vírus que havia de impor sobre os quotidianos e as economias restrições e transformações sem precedentes nas nossas existências. O calor, entretanto, começa a apertar, aproxima-se o estio e as vontades de ar livre e beira-mar, antecipam-se possibilidades de regresso aos prazeres de longos dias de sol na praia e outros espaços ao ar livre ou de longas noites de diversão ao fresco, exploram-se oportunidades para a reanimação das indústrias do lazer e do entretenimento, que a pandemia deixou francamente atordoadas ou definitivamente aniquiladas, conforme os casos. Com inequívoca clareza, a indústria do turismo na Europa demonstrou no ano passado a sua capacidade de persuasão: com o inestimável apoio de diversas instituições internacionais e de reputados especialistas dos universos político, empresarial e académico, entre sistemáticos apelos a práticas renovadas de “turismo responsável”, as fronteiras internacionais abriram-se à circulação de turistas ávidos de prazeres estivais para gáudio ainda maior de empresários e trabalhadores dos sectores relacionados, a viver em crise permanente desde que o covid-19 se instalou entre nós. Não são só os empresários e trabalhadores do turismo dos países mais dependentes de formas sazonais de ultra-exploração de recursos territoriais: na realidade, as maiores empresas do planeta a operar em actividades directamente relacionadas com o turismo têm origem nos países mais desenvolvidos do mundo: é alemão o maior operador turístico do planeta, com a sua poderosa frota de aviões e milhares de hotéis a operar com marcas diferentes para diferentes tipos de clientes; são norte-americanas as maiores cadeias de hotéis, com a breve intromissão de um grupo francês entre os cinco maiores do mundo; são também norte-americanas as maiores empresas de aviação, ainda que nas entre as cinco maiores se encontrem também uma alemã e uma franco-holandesa; têm a sua base nos Estados Unidos quatro das cinco maiores empresas relacionadas com prestação de serviços turísticos, com a exceção a registar-se na Holanda. É bom também lembrar que não foi o poder das economias do sul da Europa nem o decorrente peso político a determinar essa apressada reabertura de fronteiras ao turismo internacional: foi também (ou sobretudo) a importância do sector para essas grandes empresas das economias mais ricas, que não deixaram de promover – com intensas diplomacias e acelerados compromissos governamentais – a tal abertura “responsável” do turismo. Hoje sabemos com clareza que o turismo internacional foi, de facto, “responsável”: na realidade, foi directamente responsável pela tragédia que se seguiu ao verão, com o nível de propagação do vírus a atingir níveis incomparáveis com os que se tinham registado no início da pandemia – e que já eram suficientemente trágicos – para se concretizar uma das maiores mortandades jamais registadas na Europa em tempo de paz. Essa responsabilidade do turismo na propagação da epidemia começa agora a ser devidamente comprovada em circuitos científicos. Em artigo recentemente publicado numa das mais prestigiadas revistas académicas da área do turismo (Journal of Travel Reserach), um grupo de investigadores de diferentes países identifica, em breve mas clarividente e rigoroso artigo, a relação de causalidade entre a intensidade do turismo praticado (quer em termos de saída, quer em termos de entrada de turistas) e a propagação da epidemia de covid-19 (quer em termos do número de casos de infecções, quer do número de mortes). Analisando mais de 90 países, o modelo estatístico utilizado detecta a relação directa entre a actividade turística, o número de pessoas infectadas e as mortes por covid-19 registadas em cada país. Naturalmente, o estudo considera ainda a possibilidade de outras variáveis contribuírem para explicar os problemas em questão (número de infecções e mortes por covid-19 em cada país) mas são raras aquelas para as quais se detecta uma causalidade que se possa considerar estatisticamente válida (ou significante, na gíria técnica). Por exemplo, a idade da população e os meios à disposição nos serviços de saúde (medidos em termos de número enfermeiros ou de camas disponíveis em hospitais) não têm qualquer relação estatisticamente verificável com o número de infeções detectado. No entanto, o número de camas disponíveis em hospitais é identificado como uma causa relevante para a diminuição do número de mortes. Mais interessante é a observação sobre o dinheiro gasto directamente pelas pessoas em despesas de saúde (despesas não cobertas por esquemas de seguro, público ou privado). Neste caso, o estudo identifica relações positivas, quer com a propagação da doença, quer com o número de óbitos: quanto mais as pessoas têm que cobrir despesas médicas do seu próprio bolso, mais fácil a difusão da pandemia – e a consequente mortalidade. Mais do que a estrutura etária da população ou os recursos disponíveis nos serviços de saúde, o carácter privado dos custos a suportar com os tratamentos é que aparece como determinante na propagação da doença. Em todo o caso, o turismo internacional revela-se como a causalidade mais determinante – e é também o aspecto sobre o qual se podem tomar medidas com impacto mais imediato. Há outro Verão que se aproxima e com ele as apetências dos prazeres estivais, da recuperação dos negócios e das oportunidades de emprego. Uma nova esperança para quem vive do turismo, sejam os trabalhadores precários e sazonais, os pequenos empresários locais ou as grandes empresas transnacionais. Todos voltarão a pressionar para que que o turismo internacional reabra de forma “responsável”. Mas, como se tem visto na Ásia, a única solução “responsável” é o encerramento ao tráfego internacional. Por mais uns tempos, o turismo doméstico, mais passível de ser identificado e tratado por sistemas de saúde de carácter nacional em caso de propagação de infecções, é a única solução “responsável” (ainda que modesta) para a actividade turística.
João Romão VozesSakura Pouco sobrou das nossas rotinas habituais com a pandemia deste tempo histórico que nos calhou viver: actos aparentemente banais como ir ao supermercado, tomar um café, cumprimentar pessoas, conversar ou trabalhar assumiram de súbito formas radicalmente diferentes, desconhecidas, sistematicamente obrigadas a uma contenção que jamais tínhamos experimentado e que julgávamos impossível e irrealista fora dos cenários da ficção científica. Actos menos previsíveis, mais propensos a que se deixe correr o acaso, como viajar, passear sem destino muito definido, abrir o espaço necessário ao encontro com pessoas que não conhecemos ou deixar fluir os instintos e as seduções ficaram subitamente fora do campo das normais possibilidades quotidianas. Teremos sempre a natureza e os seus ciclos, no entanto, para nos lembrar que nem tudo se transformou e que há ainda sinais de uma certa estabilidade, de uma resiliente permanência, que nos asseguram algum horizonte de esperança para o que nos falta viver. Onde estou, são as flores brancas a brotar subitamente das cerejeiras que assinalam na sua brusca erupção a continuidade da vida e dos seus ciclos num planeta assolado, aprisionado e entorpecido. Apesar de tudo, a beleza destas flores irrompe implacável na cidade e nos campos a assinalar mais um ciclo, um recomeço, enfim, a sagração de mais uma primavera, que desta vez se segue a um inverso particularmente frio nos afectos e solitário nas vivências. Este sinal da emergência de um novo ciclo é efusivamente celebrado no Japão, com os rituais associados à “sakura”, de ancestral tradição na cultura do país. Este tributo à natureza inclui deslocações a locais com privilegiadas vistas para as flores, com abundante informação disponível sobre os lugares com melhores vistas, os dias mais privilegiados, que a temporada é curta, ou até as decorrentes informações de trânsito e outras necessidades turísticas. O país tem ainda uma particular configuração geográfica, com a ilha de Okinawa, a sul, já próximo do Trópico de Câncer, e a ilha de Hokkaido, a norte, em frente a Vladivostok, separadas por cerca de 20 graus de latitude, o que impõe ritmos específicos para cada região: em Okinawa a “sakura” acontece logo em Janeiro, como as algarvias amendoeiras em flor, mas em Hokkaido as flores das cerejeiras só mostram o seu branco esplendor em Junho, já no início do Verão. Em todo o caso, a cidade onde vivo tem uma “sakura” primaveril por excelência e estou a vivê-la nesta época precisa. É uma cidade onde confluem vários rios, em cujas margens se foram implementando passeios pedonais ajardinados, devidamente suportados por ciclovias, bancos que convidam ao descanso e à conversa ou parques infantis que promovem o convívio familiar e o entretenimento da criançada. Estão agora devidamente ornamentados de branco todos estes percursos ribeirinhos, ainda mais magníficos do que habitualmente. Na realidade, foi assim que encontrei a cidade quando cá cheguei, faz exactamente um ano. A “sakura” estava instalada para me receber, acolhedora e magnífica, a oferecer algum conforto numa situação de inusitada incerteza: vinha para começar nova actividade profissional, numa cidade onde só tinha estado durante um dia e meio, para a entrevista de emprego, que desconhecia completamente e onde não tinha qualquer amizade. Viviam-se tempos de grande intensidade pandémica, sobretudo na cidade de onde vinha, mas também naquela onde me começava a instalar. Com as limitações inevitáveis para deslocações e contactos, os preparativos foram mínimos e os cuidados máximos, com uma companheira grávida e tudo por organizar num universo desconhecido. Instalámo-nos num apartamento escolhido sem visitar num bairro que não conhecíamos, a “sakura” tornou a cidade mais acolhedora nesses dias, o novo trabalho complicou-se significativamente na medida da aceleração da propagação local do covid-19, com as inerentes implicações sobre métodos lectivos à distância, menos familiares e muito mais trabalhosos, e a nossa filha acabaria por chegar poucos meses depois, já sem “sakura”, mas com o verão a rebentar. Foi um ano difícil, portanto, e formidável, sobretudo, mas também imprevisível a cada momento: haverá mais ou menos restrições à mobilidade na próxima semana? Voltaremos a aulas em sala e terei finalmente oportunidade de conhecer as minhas alunas? Como se vive no nosso bairro? Será também assim sem covid? E a vida na cidade, como será depois da pandemia? A todas as incertezas, imprevisibilidades e maravilhas por descobrir na pequena criatura que se juntou a nós, tivemos outras incertezas em quase todos os domínios da nossa existência durante este último e inusitado ano. E, no entanto, ela cá está outra vez, a “sakura”, a assinalar a passagem regular dos ciclos, a persistência, a presença da natureza e da terra. Lembra-me que passou um ano e que tudo o que podia ter corrido mal afinal correu bem. E que há outro ciclo a começar: um novo ano lectivo, agora em salas de aula, mas com as desconfianças necessárias, uma cidade que vamos conhecendo aos poucos, uma miúda que nos enche os mundos para lá dos nossos limitados horizontes. Cá estaremos para mais uma volta. A “sakura” também estará, isso é certo, por pouco previsíveis que continuem a ser os dias.
João Romão VozesHistória por contar Não faz parte das minhas leituras técnicas necessárias e habituais mas chamou-me a atenção – num momento em que estas discussões têm ganho tanta visibilidade pública – a publicação de um artigo científico, na área da história, com uma análise detalhada da produção de café com base em trabalho escravo durante o século 18, com a decorrente identificação da importância dessa actividade para a centralidade da Holanda nas cadeias globais de produção que caracterizam as economias contemporâneas. Não é assunto, a escravatura que caracterizou o período colonial que se seguiu à Idade Média, sobre o qual encontre com muita frequência produção científica, pelo que segui a pista aberta pela autora – conhecida dos meus tempos na belíssima Amesterdão – que divulgou o trabalho numa popular “rede social” dos universos digitais em que nos movemos. A pista que segui tinha vários elementos de interesse: desde logo a revista onde o artigo era publicado, com o título “Slavery & Abolition”, editada desde 1980 e propriedade de uma das mais reputadas corporações do multimilionário negócio das publicações académicas. Não se trata então de uma publicação obscura e marginal, antes pelo contrário: é uma revista devidamente instituída nos meios académicos internacionais e com bastante razoáveis pergaminhos históricos. Outro elemento de notório interesse foi o volume especial da revista em que o artigo era publicado, exclusivamente dedicado ao papel da Europa nas redes globais de escravatura e o seu impacto no desenvolvimento económico do continente entre 1500 e 1850: desde o início dos chamados “Descobrimentos” até à consolidação da Revolução Industrial, só possível graças à acumulação gerada pelos fluxos comerciais globais que a antecederam e que viria a abrir caminho à hegemonia da Europa na economia global. O interesse do tema e a relativa profusão de trabalhos de investigação publicados internacionalmente contrasta com a escassa atenção que ainda hoje á dada pela sociedade portuguesa a um assunto que, se não constitui tabu absoluto, é certamente remetido para uma certa marginalidade para a qual se olha com desconfiança. Não deixa de ser curioso que neste volume especial haja um artigo produzido por uma investigadora portuguesa, mas que trabalha numa instituição holandesa. De resto, percorrendo as publicações dos últimos 40 anos na tal revista “Slavery & Abolition”, são muito poucos os trabalhos com origem em universidades portuguesas, apesar da manifesta importância histórica que o colonialismo português teve na criação, consolidação e exploração de redes de escravatura. São certamente muitos os documentos, temas e perspectivas possíveis para olhar para o assunto a partir da experiência histórica portuguesa. O mesmo se passa nos Países Baixos, aliás: com um papel extremamente activo nas navegações e no comércio internacional do período que se seguiu à Idade Média, também foram protagonistas centrais da exploração de trabalho escravo. Mas, apesar de tudo, há na sociedade actual uma abordagem mais frontal e transparente do que isso representou e das implicações que teve – quer dos manifestos benefícios que a Holanda conseguiu, quer do papel subalterno e dependente que as economias dos países colonizados foram assumindo na chamada “divisão internacional do trabalho” ou nos processos de especialização no quadro da economia global contemporânea. Essa frontalidade também se reflecte na museologia, outro tema recorrente e permanente adiado na sociedade e na opinião pública em Portugal: devem os museus de História reflectir aspectos como a escravatura quando documentam e mostram o chamado período dos “Descobrimentos”? Parece haver sempre um generalizado consenso, mais ou menos interrompido por manifestações esporádicas de desacordo, em relação a uma suposta necessidade de preservar uma certa boa imagem do país, atirando para baixo do tapete as poeiras que possam conspurcar a gloriosa aura da nação, fechando as janelas a olhares críticos sobre a história e parte das suas consequências sobre a contemporaneidade – a exploração que se mantém em modos diferentes e pós-coloniais alicerçada em posições de controle e dependência ou o racismo sistemático e estrutural que ciclicamente se torna mais evidente, quando as crises e a falta de emprego apertam. Também nisso encontrei uma diferença nos meus tempos de vida na Holanda, em que ocasionalmente visitava o Museu dos Trópicos, designação eventualmente pouco feliz para o belo edifício que em tempos foi o “Museu das Colónias”. O nome e os conteúdos programáticos do museu viriam a ser alterados, passando à actual designação, ainda que o termo “trópicos” não tenha um sentido geográfico demasiado estrito. Na realidade, o museu está aberto a diferentes formas de arte popular não europeias. Na última vez que o visitei, tinha duas belas exposições temporárias: uma sobre a moda em África e outra sobre a cultura da manga no Japão. Já a exposição permanente sobre o papel da Holanda nos circuitos globais da escravatura entre os séculos 15 e 19 continuava, informativa, detalhada, inalterada e inquestionada, no mesmo sítio onde sempre a vi. É verdade que nem a produção científica nem o museu resolvem os problemas actuais de dependência económica, exploração sistémica e sistemática, ou racismo omnipresente e estrutural. Na realidade, movimentos políticos abertamente racistas e neo-fascistas até emergiram no século 21 holandês bastante antes do que aconteceu em Portugal. Mas há apesar de tudo, uma liberdade diferente para se falar destes assuntos nos espaços públicos, que se traduz, também, em decisões políticas com impacto óbvio no quotidiano. Por exemplo, na imprensa holandesa é proibido referir a nacionalidade das pessoas quando se noticiam crimes. Não se trata de um apelo à cidadania nem de ética profissional, mais ou menos reflectida numa qualquer carreira profissional: é uma lei que tem que ser cumprida para se protegerem as comunidades dos estigmas que este tipo de notícia pode criar. Não resolve tudo, certamente, mas desconfio que em Portugal não se consegue sequer discutir a criação de uma lei deste género.
João Romão VozesJovens suicidas É problema relativamente antigo na sociedade japonesa, o do elevado número de suicídios, e são certamente complexas as suas causas: um sistema educativo altamente competitivo na infância e adolescência, longas jornadas de trabalho na idade adulta, uma vida social em relativo isolamento e um certo estigma em relações às perturbações psicológicas e mentais que inibe o seu acompanhamento e tratamento estão entre as razões geralmente aprontadas para a sua persistência. Uma das consequências é também a monitorização detalhada, sendo o Japão dos países que dispõe de dados mais precisos, regulares e atualizados sobre o fenómeno. Isso permite saber que, apesar de os valores se manterem altos, o número de suicídios tem vindo a descer sistematicamente e sem interrupções ao longo dos últimos 10 anos. Até 2020, quando os impactos económico, social e psicológico do covid-19 implicaram uma inversão dessa tendência: o número de suicídios voltou a aumentar a partir de Julho de 2020 e com muito maior incidência na população jovem feminina. Os números disponíveis indicam 20919 suicídios no Japão em 2020, claramente abaixo dos quase 35000 que se tinham registado em 2003 e que tinham levado à criação de programas de prevenção e à monitorização sistemática do fenómeno. Desde então os números tinham diminuído, sem interrupções entre 2009 e 2019. A partir de Julho do ano passado a situação alterou-se e 2020 acabou por fechar com 13943 suicídios entre os homens (1% mais do que em 2019) e 6976 suicídios de mulheres (15% mais do que no ano anterior). Só no mês de Outubro suicidaram-se 851 mulheres, um acréscimo de 85% em relação ao mesmo mês de 2020. Aliás, o número total de mortes por suicídio nesse mês (2153) foi superior ao número de mortes por covid-19 até esse momento (2087). É também de salientar a coincidência de se tratar de um ano em que o número total de mortes no país diminuiu em relação ao ano anterior, o que aconteceu pela primeira vez em 11 anos. Uma das justificações adiantadas para este fenómeno é o de se terem adoptado cuidados gerais de saúde mais rigorosos devido ao covid-19 que contribuíram também para prevenir outras doenças – do corpo, não da mente. Os dados também revelam que os casos de suicídio não aumentaram durante a primeira fase da pandemia, com a primeira vaga de infecções, que no Japão tinha começado ainda em Janeiro. Foi na segunda vaga, no Verão – com um volume de casos mais significativo e medidas de contenção mais restritivas e com maiores impactos económicos e sociais – que se começou a consolidar uma subida anormal do número de suicídios no país. Explicações adiantadas para o problema focam-se no impacto do encerramento forçado de estabelecimentos comerciais e de restauração, com níveis de emprego feminino proporcionalmente mais altos que os da indústria ou outros serviços. Em consequência, quase dois terços dos empregos perdidos em 2020 em resultado da pandemia eram ocupados por mulheres. Apesar de a população feminina ter uma participação no mercado de trabalho francamente inferior à dos homens, a perda de postos de trabalho de mulheres reflecte a precariedade generalizada da sua situação laboral, uma vez que cerca de dois terços ocupa postos de trabalho a tempo parcial. Resta então saber qual será o impacto da terceira vaga, que agora parece estar finalmente a terminar, mas que atingiu valores muito mais altos nos níveis de infecções e implicou restrições ainda mais severas. Na realidade, os números parecem apontar para uma tendência semelhante também na Coreia do Sul: durante quase todo o ano de 2020 (até 10 de Dezembro) 564 pessoas tinham morrido de covid-19, enquanto o número de suicídios por mês era mais do dobro, pelo menos entre Janeiro e Setembro (último mês com dados disponíveis). Em particular, o número de suicídios em mulheres de 20 a 30 anos de idade aumentou 40% em relação ao ano anterior. As explicações adiantadas por comentadores na imprensa são semelhantes às do caso japonês: incapacidade de suportar os custos de vida para quem ocupa os lugares mais vulneráveis à pandemia no mercado de trabalho actual (pessoas com contratos de curta duração ou trabalho informal, geralmente a tempo parcial, nos sectores do comércio a retalho e restauração mais orientados para o turismo). Este sofrimento solitário imposto por sucessivos confinamentos tem evidentes consequências sobre a saúde mental que se juntam aos problemas sociais e económicos que este tipo de recessão inevitavelmente implica. Mas o caminho está longe de estar percorrido, não só porque a pandemia não está controlada, mas também porque os seus devastadores impactos económicos e sociais ainda vão perdurar. O capitalismo contemporâneo não lida bem com este confinamento que representa também um encerramento generalizado dos mercados, cuja abertura permanente permite a competição sistemática em que vivemos e alimenta o eventual crescimento das economias. Os estados emagrecidos que temos hoje não estão preparados para substituir esta dinâmica em caso de emergência. E é essa emergência que vai persistir, não só no Japão ou na Coreia do Sul, mas também em todos os outros países onde a pandemia tem impactos significativos, com mais ou menos intensa monitorização dos suicídios e suas causas, ou das implicações sociais e individuais desta doença.
João Romão VozesO vírus olímpico Primeiro por manifesta influência familiar e depois por opção, a prática desportiva foi desde cedo importante na minha existência, apesar das minhas limitadas habilidades. A ginástica ocupou grande parte da minha infância e depois passei a desportos colectivos e com bola, tendo aderido à grande família do andebol português, onde permaneci por uns 10 anos, só depois de ter comprovado a minha manifesta incompetência para a prática do desporto-rei. Passei para o pavilhão em vez dos ar livre e a usar as mãos em vez dos pés, mas na realidade o jogo até era semelhante. Eram tempos em que acompanhava com regularidade os Jogos Olímpicos, na altura relativamente fáceis de entender: que modalidades se praticavam ou não, que atletas podiam ou não participar, enfim, até a Guerra Fria que se jogava naqueles dias – e os inerentes boicotes políticos aos Jogos – eram coisas inteligíveis, mesmo para crianças ou adolescentes que seguissem o assunto com algum interesse e dedicação. Não viria a ser assim depois: hoje estou muito longe de perceber o que se passa nos Jogos Olímpicos, porque são aquelas as modalidades praticadas, porque estão outras de fora, que critérios estão definidos para a participação de atletas, agora que a divisão entre “amadores” e “profissionais” é tão dificilmente aplicável, porque há critérios diferentes segundo a modalidade, enfim, toda uma série de questões regulamentares que certamente condicionam a competição e os resultados mas que deixaram de ser facilmente inteligíveis, requerem um certo estudo para mim incompatível com a simplicidade das regras que historicamente tornaram globalmente tão populares tantos jogos desportivos. Deixei-me de Olimpíadas, portanto, e passei a seguir campeonatos nacionais e mundiais, competições simples e de regras claras que ainda consigo acompanhar com a minha limitada disponibilidade para o estudo de normas regulamentares que não me dizem directamente respeito. De resto, o romântico, generoso e inteligente princípio de que o que importa é participar há muito tinha sido erradicado do desporto em geral e do Olimpismo em particular. Foi no Japão que me reconciliei com os Jogos. Foi logo na primeira visita ao país, quatro meses no Verão de 2012. Com a diferença dos fusos horários, as competições em Londres podiam ser vistas em directo na noite japonesa e quase todos os cafés, bares ou restaurantes que tivessem televisão davam grande importância ao assunto. Não deixava de haver alguma motivação nacionalista a determinar o interesse nas modalidades que se acompanhavam, mas estava o Japão representado em tantas modalidades, com homens e mulheres, que era grande a diversidade de opções. Mesmo com as insuficiências e barreiras comunicacionais inerentes à língua, não foi difícil perceber o genuíno entusiasmo e apoio popular às equipas e atletas e também – muito mais importante – a aceitação generosa da possibilidade de derrota, quando muito manifesta num certo desinteresse pelo resto da prova depois da eliminação da participação japonesa, mas em nenhuma circunstância orientada para manifestações de ódio, xenofobia ou violência verbal contra adversários e equipas de arbitragem que vão caracterizando – aparentemente cada vez mais – as competições desportivas. Quando se jogaram os Jogos de 2016 já eu estava no Japão mais regularmente e voltei a acompanhar os Jogos, desta vez no continente americano e com horários mais difíceis, com muitas provas a disputar-se na minha manhã. Seriam Jogos de grande impacto político no Brasil, que queria transformar o relativo sucesso económico e social dos anos anteriores numa projecção internacional sem precedentes, a que estas competições globais aparecem hoje inevitavelmente associadas: foi também o Mundial de futebol de 2014, ambos vividos já no contexto dos impactos implacáveis da crise económica global que se seguiu à crise financeira de 2008. Com maior ou menos demagogia ou manipulação mediática, em vez de projecção internacional estes eventos contribuíram para intensificar a revolta e a oposição popular a um governo em dificuldades para lidar com o regresso da crise social e históricos problemas de corrupção. Os Jogo, enquanto super-evento mediático, contribuiriam então para o declínio da popularidade dão PT e a emergência deste novo poder que ainda vigora. Em 2020 teria oportunidade de acompanhar pela terceira vez os Jogos Olímpicos em território japonês, com a particularidade de ser Tóquio a cidade escolhida para os organizar, essa fabulosa metrópole com 37 milhões de pessoas em intenso movimento. Como é norma actual, também aqui os Jogos se assumiram como uma gigantesca intervenção de renovação urbana e promoção internacional, com investimentos de visível impacto ainda muito longe de se começar a competir. Os principais estádios e os edifícios da aldeia olímpica estavam prontos ainda no final de 2019, mais um significativo desenvolvimento na baía de Tóquio, um oásis de tranquilidade, amplas avenidas, espaços verdes e transportes com pouca gente, numa cidade intensa em que o normal é o contrário: multidões aceleradas em espaços relativamente exíguos, transportes cheios e infra-estruturas urbanas pesadas. As estações de comboios e transportes metropolitanos foram objecto de renovação profunda, passando a ter informação digital e multilíngue a facilitar a vida a pessoas como eu, e novas torres de escritórios, hotéis e centros comerciais, que por aqui as grandes estações são, na realidade, pequenas cidades – ou não tão pequenas, já que as maiores (como Shinjuku ou Shibuya) movimentam mais de 3 milhões de pessoas por dia. Foi com alguma supresa que assisti a esta gigantesca renovação. É verdade que se trata da maior área metropolitana do mundo, mas também é verdade que é das únicas em que a população está a decrescer, apesar do contexto global em que as pessoas continuam a concentrar-se cada vez mais nas grandes cidades. Esta excepção de Tóquio tem a ver com o envelhecimento populacional que caracteriza o Japão há várias décadas mas nem assim constituiu impedimento para que se investisse tanto em novos edifícios e infra-estruturas para diferentes tipos de uso, aproveitando-se, naturalmente, para melhorar os aspectos da ecologia urbana, dos modes de transporte e da ocupação dos espaços públicos. Como visitante, só posso agradecer. Em todo o caso, com ou sem realização dos Jogos este ano, o impacto desta operação parece inevitavelmente longe das intenções: todas as intervenções urbanas associadas a este evento – e também à Expo-2025, em Osaka – estão fortemente orientadas para a promoção internacional do país, não só do ponto de vista turístico, mas também do ponto de vista da localização de empresas e atração de população estrangeira jovem e qualificada, um papel que o Japão já teve mas no qual foi perdendo protagonismo em relação a Singapura, Hong Kong ou mesmo Seul, actualmente o mais importante ponto de ligação para os transportes aéreos entre a Ásia e o resto do mundo. Além do evidente impacto do covid-19, que na melhor das hipóteses permitirá a realização de umas mini-olimpíadas em 2021, o contexto actual parece ser de de-globalização, não só turística mas da generalidade da economia. Não parece ser o tempo dos grandes eventos de promoção internacional. Também não parece bom tempo para Jogos Olímpicos, agora ou num futuro próximo.
João Romão VozesUm ano em covid Comecei relativamente cedo, não tanto como quem vive em território chinês, mas quase: já se completou um ano desde que comecei a ter contacto próximo com os efeitos da presença do covid-19 nas nossas sociedades. Esse primeiro contacto foi logo bastante esclarecedor: estava eu em Sapporo, no Norte do Japão, e começava nessa altura a trabalhar à distância (mesmo sem vírus) num projecto de investigação com uma colega chinesa a viver em Busan, na Coreia do Sul. Em Dezembro já se tinham identificado na China os primeiros casos deste problema ainda difícil de definir e ainda mais de enfrentar, e nós estávamos ambos nas proximidades geográficas deste epicentro. No início de Janeiro, a minha colega foi visitar a família à China, com viagem marcada muito antes, e tornou-se na primeira pessoa minha conhecida a viver um confinamento: duas semanas sem poder sair de casa, todo o tempo que durou a viagem, desde que aterrou até que saiu de território chinês. Regressaria então à Coreia e tornava-se também na primeira pessoa que conheci a passar por uma quarentena: outras duas semanas fechada em casa, agora em território coreano. No total foi um mês, o que hoje parece um período de reclusão e isolamento relativamente curto banal, mas que na altura constituía radical novidade a irromper subitamente nos quotidianos das sociedades modernas, habituadas a outras liberdades e intensas mobilidades. Apercebi-me também cedo de que estar forçosamente confinado em casa não implica necessariamente ter mais disponibilidade para trabalhar: operam ao mesmo tempo outros mecanismos fisiológicos e psicológicos que de alguma forma neutralizam a aparente boa vontade dos relógios e dos calendários para nos oferecer tempo para trabalhar. Havia de perceber mais tarde que, um pouco por todo o lado, todos demorámos a transformar esta reclusão forçada em processos produtivos, fossem eles quais fossem. Nos finais de Janeiro o vírus chegaria à cidade onde eu vivia, Sapporo, a capital da região de Hokkaido, destino turístico de grande notoriedade no mercado chinês, que nesse mês organiza o seu maior evento, o Festival da Neve, com esculturas em gelo de grandes dimensões a ocupar o parque central da cidade. Foi um funcionário de apoio ao evento o primeiro a ser noticiado como infectado na cidade, numa altura em que a propagação se contava ainda em escassas unidades por semana e se sabia exactamente como as coisas se tinham passado. Ainda assim, a China era perto e a informação sobre o ambiente de terror que lá se vivia – com mais de mil milhões pessoas confinadas e enormes cidades transformadas em desertos – era suficiente para se começarem a antecipar respostas possíveis se e quando o vírus chegasse. Isso era no Japão, evidentemente, ou na Coreia, ou em Singapura, ou na generalidade dos países asiáticos. Na Europa e na América era tempo de contar anedotas xenófobas sobre a fraca qualidade do “vírus chinês”. Continua a pagar-se muito alto o preço desta arrogante negligência. Noutras cidades japonesas foram aparecendo casos isolados mas seria Hokkaido a ter o crescimento mais rápido dos contágios, levando o governo regional a decretar um “estado de emergência” para a região assim que se registaram quase 10 casos durante três dias consecutivos. Na altura eram cerca de 50 as pessoas infectadas mas já grandes os receios. Na nossa política de emergência doméstica, decretámos rapidamente um recolher quase obrigatório, só com as excepções inevitáveis por motivos profissionais, que a situação de gravidez que vivíamos nos pareceu requerer. Numa das poucas cidades em apareceram casos de infeções havia de realizar-se em Fevereiro uma conferência para a qual já tinha pago inscrição e viagem e que decidi cancelar. Tendo em conta o carácter que me pareceu excepcional da situação, ainda tentei ser reembolsado pelo pagamento da inscrição. Debalde, que a organização – por acaso posicionada no campo do “pensamento crítico” na área dos estudos turísticos – se remeteu escrupulosamente às datas regulamentares. Ainda enviei por email ligações para notícias sobre eventos já na altura cancelados em diferentes países, mesmo na distante Europa, mas o que recebi em resposta foi outro texto da imprensa, em que um comentador classificava como “histérica a xenófoba” a reacção de medo em relação à propagação do vírus. Por coincidência, havia de encontrar o nome do meu interlocutor em sérios e graves publicações e debates científicos relacionados com os efeitos da pandemia no turismo. O moderno charlatão não se passeia só pelas redes sociais. Depois de uma fase em que a situação parecia contida, uma segunda vaga de contágios havia de chegar ao Japão, numa altura em que felizmente tinha que mudar de cidade: Hokkaido voltava a estar na liderança das preocupações pandémicas, enquanto no meu novo destino (Hiroshima) muito poucas notícias havia do vírus. Em todo o caso, as regras de prudência e confinamento doméstico só interrompido por motivos inevitáveis e inadiáveis havia de se manter. O novo trabalho havia de começar, a propagação do vírus havia de se agravar, as aulas passariam subitamente a ser dadas online, a nossa filha chegaria com o solstício, e tudo foi correndo com relativa tranquilidade, nessa altura em que já na Europa se tinha demonstrado com evidência a incúria com que se lidou com o assunto, quer enquanto continente (ou enquanto União), quer por parte de cada um dos países: nem máscaras, nem ventiladores, nem planos para encerramento de voos (só em Abril e para reabrir no verão), nem estratégia para confinamentos gerais ou parciais em que se garantissem regras de tele-trabalho, abastecimentos domésticos de produtos essenciais ou transportes públicos em segurança para quem precisa. Rigorosamente nada foi antecipado, preparado ou planeado nos 3 ou 4 meses que passaram entre a identificação do vírus na China e a sua chegada à Europa. Recentemente vivi a terceira vaga, mais forte que as anteriores, e que desta vez atingiu mais fortemente a região de Hiroshima. Pela primeira vez, houve encerramento generalizado de restaurantes e comércio não essencial e apelos (não obrigatórios mas amplamente seguidos) a recolhimento doméstico. O programa de apoio ao turismo interno que tinha sido accionado foi suspenso. Mas aparentemente este confinamento que vivemos no Natal e Ano Novo (e continua a prolongar-se, enquanto recomendação, até ao início de Fevereiro) teve os seus resultados: numa cidade com mais de um milhão de habitantes, os casos diários de novas infecções voltaram a estar abaixo da dezena, quando tinham estado perto da centena durante quase dois meses. O momento é de relativa mas desconfiada tranquilidade: a vacinação generalizada ainda está longe e não se sabe se está a chegar uma nova vaga de infeções. Na Europa, entretanto, vive-se por esta altura o momento mais dramático e violento desta crise. Não havia mesmo necessidade nenhuma.
João Romão Vozes2020 ainda não acabou Com inusitada prudência e generalizada desconfiança se foi celebrando, mais ou menos silenciosa e tristemente, a entrada em 2021, o ano que se segue ao da pandemia global que por muito tempo ficará na memória de toda a gente como o que trouxe o coronavírus à nossa intimidade e que, em maior ou menor escala, nos roubou a proximidade dos relacionamentos, pessoais, profissionais ou circunstanciais, remetendo grande parte da nossa vida afectiva para etéreos universos digitais e impondo, para quem pode, processos de trabalho à distância, geradores de novas incertezas e ansiedades mas ainda assim largamente preferíveis ao risco da convivência em espaços públicos ou às tragédias pessoais e colectivas do desemprego. Em todo o caso, mesmo com o notável progresso que a ciência parece ter proporcionado com o desenvolvimento acelerado de vacinas aparentemente eficazes e seguras, nenhum dos problemas que o covid-19 trouxe às sociedades contemporâneas está sequer perto de ficar resolvido. Na realidade, novos problemas vão acumular-se: apesar da mudança do calendário, 2021 não só nos obrigará a viver com os mesmos impactos imediatos da omnipresença de um vírus altamente letal e contagioso, como nos trará ao quotidiano os primeiros sinais dos impactos de médio-prazo que esta pandemia nos obriga a viver. Ainda que se vislumbrem soluções médicas – inevitavelmente lentas – o novo ano será sobretudo tempo de juntar novos problemas às dificuldades que a pandemia nos trouxe e que vão persistir. Ainda que o vírus continue entre nós – e em força – algumas marcas do que será uma sociedade pós-covid começam já a ser evidentes: recessão económica generalizada, falências, desemprego, concentração de riqueza, aumento da pobreza, intensificação das desigualdades sociais e reforço dos desequilíbrios de poder do capital sobre o trabalho num contexto de enfraquecimento da capacidade de intervenção e regulação dos estados. Apesar da imensa profusão de estudos, relatórios técnicos e produção científica que vou acompanhando nos domínios que por motivos profissionais me são mais familiares – desenvolvimento regional, planeamento urbano e economia do turismo – nenhuma destas questões parece ser vista como uma preocupação central ou mesmo como uma característica razoavelmente relevante no processo de reorganização de processos produtivos e relações sociais que possa resultar da erradicação definitiva do infame vírus que tão abrupta e categoricamente colocou a economia global em inevitável quarentena e as comunidades planetárias em justificado pânico. Na maior parte dos casos, o que leio sobre o assunto em contributos de ciências sociais diversas ou em documentos de orientação política parece na realidade mais próximo da ficção do que da análise científica. Neste caso, diria mesmo, muito mais próximo da má ficção científica, a que se deixa fascinar cegamente pelo brilho de prometidos radiosos futuros nutridos por progressos extraordinários das tecnologias – no caso as digitais, naturalmente, com a sua parafernália de redes, sensores, conexões, interações, dados (“big data” e outras magníficas formulações), análises em tempo real, simulações, enfim toda uma parafernália de instrumentos que tornarão mais “inteligentes” (“smart”, na mais modesta expressão inglesa) as nossas cidades, economias e vidas quotidianas – mas que pouco se atrevem, afinal, a explorar as contradições, conflitos, exclusões ou tensões sociais e psicológicas que comunidades e pessoas estão a enfrentar com cada vez maior intensidade, como seria próprio da boa ficção científica. Tomo como exemplo recente relatório publicado pela OCDE (Organizações para a Cooperação de Desenvolvimento Económico), que graças aos seus portentosos recursos e experiência acumulada mobiliza quadros técnicos de indiscutível qualidade e sapiência para a produção de informadas e sólidas análises que em grande medida enquadram e definem o essencial das opções de política económica dos países mais desenvolvidos do planeta. Em estudo publicado nos finais de 2020 (OECD Regions and Cities at a Glance 2020) aborda-se também este futuro que se considera próximo para as sociedades pós-covid, enfatizando a importância dessas tecnologias digitais, as virtudes do tele-trabalho, a reorganização dos serviços de saúde, a aceleração da transição para uma economia pós-carbono ou a renovada atractividade de zonas rurais e pequenas áreas urbanas em tempos de alta conectividade digital e generalizada preocupação com a proximidade física. Como de costume, ficam de fora as questões de poder ou as assimétricas situações de vulnerabilidade que diferentes pessoas ou grupos sociais têm que enfrentar. Quando muito, referem-se assimetrias regionais na resiliência com que se reage a este devastador impacto. E no entanto há evidentes assimetrias dentro de cada região, de cada cidade, de cada comunidade. Aprofundaram-se com a generalização da pandemia e vão aprofundar-se à medida que avançamos por 2021. Estão ligadas, reforçam-se mutuamente e constituirão um ciclo que marcará durante mais tempo a economia da catástrofe que estamos já a viver. O ponto de partida é o do costume: uma recessão económica global, prolongada e generalizada, com os decorrentes encerramentos de empresas, evitáveis e inevitáveis, a marcar o ritmo dos despedimentos, da subida do desemprego e da desvalorização do trabalho, sempre proporcional ao aumento do desespero. Ao mesmo tempo, a contemporânea mobilidade de capitais permite reorganização quase instantânea, mobilização de recursos financeiros para os negócios mais adequados a cada circunstância – e também os há em tempos de pandemia ou outras crises, como temos visto abundantemente. Mais uma vez, crescem as fortunas multi-milionárias do planeta, acelerando e intensificando a concentração de riqueza e aprofundando desequilíbrios e desigualdades de classe. Este aprofundamento dá-se num contexto específico, em que os estados se vão encontrar particularmente vulneráveis, a ter que suportar custos imprevistos para a contenção dos impactos imediatos da pandemia (saúde, subsídios, apoios sociais, etc.) e a ver reduzidos os seus recursos (menores receitas fiscais como consequência da recessão económica). O resultado é mais do que económico e traduz-se em mais um passo significativo para a reconfiguração do poder a que temos assistido desde os anos 1980, em maior ou menor grau consoante as geografias mas com evidente tendência planetária: um sistemático desequilíbrio na relação entre o poder do capital (cada vez mais concentrado) e o valor do trabalho (cada vez mais isolado), num contexto de sistemático enfraquecimento da capacidade de intervenção e de regulação dos estados. Os anos pós-covid já começaram e parecem ir reforçar ainda mais estas tendências globais, mesmo antes da erradicação do vírus. A reconfiguração das cidades, sociedades e quotidianos vai ser feita gradual mas implacavelmente e de acordo com os interesses de quem vem acumulando e concentrando poder. São coisas que parecem interessar pouco na discussão pública, no entanto.
João Romão VozesCapital bronco Corre entre as inúmeras iniciativas da democracia peticionária em que vivemos uma “Carta aberta por um investimento urgente em Ciência em Portugal”, que subscrevi com mais 8000 pessoas, até à data. Os proponentes atiram à cabeça com os dramáticos números que evidenciam o problema: 92% de investigadores sem salário e 95% de equipas sem projectos, alvitrando propostas para o enfrentar: aumentar de imediato o pacote financeiro para financiamento de projectos, garantir a curto prazo pelo menos 15% de aprovação das candidaturas a bolsas e projectos de investigação (actualmente anda por metade ou menos) e a médio prazo um plano que garanta um investimento anual de 3% do PIB em ciência e tecnologia, uma ambição, aliás, enunciada desde os anos 1990 – há umas 3 décadas, portanto, ainda que continuemos nuns parcos e miseráveis 1,4%. Também nas áreas da cultura e das artes se alvitraram propostas, muitas e variadas, antes e durante a pandemia que vivemos actualmente. São igualmente actividades que vivem do trabalho intelectual e criativo e onde predominam a precariedade e a incerteza, a impossibilidade de se planearem trabalhos com a distância necessária e a estabilidade suficiente para que se desenvolvam ideias, consolidem equipas e redes de colaboração, promovam contactos regulares com os públicos interessados e por interessar. Também aqui há reivindicações orçamentais que se vão arrastando nos tempos: 1% para a cultura, que nem sequer é pedir muito. Nos tempos que correm, a ciência e a cultura têm aliás muito em comum com outras áreas menos criativas das políticas públicas nacionais: também na educação, na justiça, na habitação, na segurança, nas florestas, na saúde, estão por vislumbrar horizontes de esperança, ideias para uma transformação qualquer, caminhos possíveis para um futuro diferente. Não há nada, há um discurso triste e pobre, limitado à tentativa de ir resolvendo problemas antigos e novos que se vão criando, conformado ao triste fado das restrições orçamentais, que ano após ano vão servindo também como álibi para essa falta de perspectivas e soluções. Se é verdade, que a economia não dá grandes sinais de que possam ser muito diferentes os orçamentos públicos para os anos que aí vêm (na realidade, vão certamente diminuir), também é verdade que tem havido governos e governantes com muito mais criatividade e ideias do que outros. Retomo o foco na ciência, assunto que me diz directamente mais respeito, até porque boa parte da minha vida profissional se fez nestes caminhos e tenho no percurso um pleno de bolsas bastante improvável: uma bolsa de mestrado ainda no início dos anos 1990, quando o incipiente desenvolvimento científico do país ainda estava neste nível; voltei à academia no final dos anos 2000 e vim a obter uma bolsa de doutoramento; continuei a fazer investigação nos anos 2010, financiada por uma bolsa de pós-doutoramento. Parte bastante razoável destes trabalhos foi feita no estrangeiro e tive oportunidade de observar que a minha sorte (não há outra forma de definir o acaso de se ficar em 6º lugar num concurso e ter uma bolsa ou ficar em 7º e já não ter) era ainda assim de uma pobreza confrangedora se comparada com as condições de trabalho oferecidas como norma a investigadores noutras geografias. Por exemplo, na Holanda, onde passei grande parte do tempo em que fazia o doutoramento, qualquer investigador nesse nível era contratado pela Universidade com um salário que era o dobro do valor das bolsas em Portugal – um privilégio de uma minoria, já que na realidade a maior parte dos doutorados paga propinas e faz investigação nas horas livres dos seus empregos. Este problema é, ainda assim, pequeno em comparação com o que há-de vir. Os orçamentos públicos para financiar a investigação científica são curtos e não se vão alterar significativamente. A evolução demográfica não faz prever que o número de docentes universitários vá crescer significativamente. O sub-financiamento crónico e generalizado das universidades limita, não só a contratação de novos docentes, como as oportunidades de progressão na carreira: há pessoas a dirigir centros de investigação, mestrados ou doutoramentos que ficam décadas na categoria de “professores auxiliares” até, eventualmente, atingirem o nível de “associados” (já o de “catedrático” começa a parecer um título do passado, inacessível para quem começa hoje a investigar). Só para comparar brevemente, o meu primeiro contrato permanente numa universidade japonesa foi logo com o professor associado, posição que certamente não atingiria até à reforma se por acaso tivesse tido alguma oportunidade de continuar a minha vida profissional em Portugal. Não haverá lugar para muito mais ou para muito melhores oportunidades para trabalhar em investigação e no ensino superior públicos mas continuará a aumentar o número de pessoas a fazer doutoramentos: são cada vez mais as que concluem licenciaturas e mestrados com qualificações e vontade para o fazer e é total a disponibilidade das universidades para as acolher, enquanto “estudantes” de doutoramento, toda uma categoria desqualificadora do seu trabalho, definida logo à partida: não são investigadores profissionais a quem se deve um salário, como é norma em países onde se olha para a ciência e para o conhecimento como parte importante e significativa da riqueza do país: são pessoas a investir no seu próprio processo educativo e que por isso devem pagar generosas propinas. Uma ínfima minoria terá a sorte de conseguir uma bolsa com a qual terá uma vida vagamente remediada. Esta falta de horizontes para quem quer viver da ciência terá alguma relação com as políticas públicas que a determinam mas também – ou sobretudo – com as dinâmicas privadas da economia. Os recursos públicos a distribuir dependem sempre da capacidade de a economia gerar riqueza e o aumento dos orçamentos da ciência, da cultura, da habitação, da justiça, ou de qualquer outra urgência social e económica, dependerão sempre dos aumentos de produtividade, do reforço das capacidades tecnológicas, enfim, da possibilidade de se gerar mais valor com os recursos disponíveis. Não vai haver haver mudanças a curto prazo, portanto, que estes processos são lentos e os progressos, no nosso caso, quase inexistentes. Restaria a opção empresarial, solução relevante e óbvia noutras geografias, onde é frequente investigadores em doutoramento discutirem se preferem continuar as carreiras em universidades ou empresas. Em Portugal essa discussão não existe: as empresas não têm interesse nenhum nesta imprestável mão-de-obra, que no universo empresarial português só muito remotamente terá acesso a um posto de trabalho razoavelmente condizente com as suas qualificações. Há um dado que demonstra com evidência que nem a mão de obra altamente qualificada tem lugar na economia portuguesa, nem esta vai conseguir em breve gerar significativamente mais riqueza: em 1999, apenas 4% das exportações portuguesas era feita com produtos de alta intensidade tecnológica – um valor ridículo em comparação com os 20% registados para o conjunto dos 27 países que hoje constitui a União Europeia; passados 20 anos (2018), tudo continua mais ou menos na mesma – Portugal mantém os seus 4% e esse é o valor mais baixe entre os 27 países da UE, que agora tem ligeiramente menos (18%), face aos notáveis progressos da China. Produtos de alta intensidade tecnológica não requerem apenas máquinas sofisticadas: requerem também essa mão-de-obra altamente qualificada que a economia portuguesa sobranceiramente dispensa. Ou, na realidade, que o capital desperdiça: a economia é composta destes dois factores produtivos fundamentais, sem os quais não funciona – capital e trabalho. Nas últimas décadas, a classe trabalhadora em Portugal – com o suporte inevitável do Estado, aliás – fez um magnífico esforço de valorização e modernização, olhemos por onde olhemos os indicadores possíveis: além do crescimento contínuo e sistemático dos doutoramentos, tínhamos em 2019 20% da população com o ensino superior (7% em 2000) e 23% com o ensino secundário (11% em 2000). Quem trabalha, esteva à altura destas circunstâncias. O capital, onde está o poder de decisão sobre investimentos e processos produtivos, é que continua amarrado à sua histórica tacanhez. O mais bronco da União Europeia, sugerem os números.
João Romão VozesTurismo na economia (IV): a insustentável leveza do turista [dropcap]É[/dropcap] quase sempre com leveza que partimos em viagem: a oportunidade de fugir às rotinas laborais quotidianas, a mudança de contexto e de cenário, a ausência de horários rígidos e obrigações inadiáveis, a oportunidade de ver e descobrir coisas novas, tudo isso faz normalmente parte da bagagem de quem viaja em férias. Por mais que pese o conteúdo das malas, há em geral uma agradável leveza no espírito, que aliás também se aplica com frequência a quem viaja por motivos profissionais, mesmo que os horários sejam apertados e as oportunidades para a descoberta relativamente limitadas. Mas essa leveza contrasta, evidentemente, com o peso da presença de turistas nos mercados globais massificados que caracterizam o turismo e a mobilidade internacionais nas sociedades contemporâneas. Com esse lastro, ou essa pegada ecológica, cultural ou económica, encerro este ciclo de quatro crónicas dedicadas à economia do turismo, desta vez sob o signo da sustentabilidade, palavra de magnífico efeito decorativo e poucas implicações concretas, a não ser, eventualmente, no branqueamento de práticas e políticas que em (quase) tudo contradizem o conceito de desenvolvimento sustentado e/ou sustentável. Desde logo, o impacto ecológico do turismo internacional é enorme e inevitável: segundo estimativas da Organização Mundial de Turismo, antes de o covid-19 decretar o encerramento generalizado e global das rotas turísticas internacionais, o transporte de passageiros, sobretudo em aviões e automóveis, era responsável por 5% das emissões globais de CO2 relacionadas com o consumo e utilização de energia. Não é só transporte, no entanto: segundo estudos diversos, o consumo de água feito por cada turista é aproximadamente o dobro do que faria a mesma pessoa na sua residência habitual e o consumo de energia (em particular eléctrica) aumenta significativamente em proporção da quantidade de estrelas dos hotéis – mais serviços, mais conforto e eventualmente maiores benefícios económicos para os destinos também implicam um maior impacto ecológico, por mais símbolos de sustentabilidade que ostentem as empresas de transportes e hotelaria. Estas características das dinâmicas actuais do turismo que se foi generalizando e massificando por todo o planeta justificam o título categórico utilizado por Colin Michael Hall (o mais prolífero e citado investigador em turismo no mundo, segundo os dados disponibilizados pela google.schoolar) num capítulo escrito para o livro “Tourism in the Green Economy” publicado em 2015: “Economic greenwash – on the absurdity of tourism and growth”. De facto, o discurso centrado na sustentabilidade ambiental e na economia “verde” – com os inerentes processos de certificação e de utilização de prestigiantes símbolos e logotipos – tem servido mais para dissimular e encobrir generalizadas práticas predatórias do ambiente e dos recursos, materiais, imateriais e humanos dos territórios do que para promover uma reavaliação crítica e sistemática das formas de produzir e consumir nas economias actuais e no sector do turismo em particular. Não parece significativamente melhor o impacto das dinâmicas turísticas contemporâneas sobre os outros dois “pilares” do desenvolvimento sustentado, tal como definido pela ONU como padrão e referência para as políticas de desenvolvimento económico a desenvolver no planeta. Também os impactos económicos são profundamente assimétricos nos destinos turísticos, com os benefícios largamente concentrados num conjunto relativamente pequeno de empresas de transporte e alojamento, frequentemente transnacionais, como discuti em crónica anterior. Mais do que isso, a intensificação da dependência das economias locais e regionais em relação a uma actividade altamente vulnerável a ciclos económicos, políticos ou de saúde pública, com fraca incorporação tecnológica, mão-de-obra intensiva e relativamente pouco qualificada e reduzida capacidade de gerar valor acrescentado, acaba frequentemente por se traduzir a longo prazo num inevitável processo de decadência económica. Desastroso parece ser também o efeito do turismo sobre o terceiro “pilar” da sustentabilidade, a coesão social. Mesmo olhando para uma das zonas supostamente mais desenvolvidas do planeta, a Europa, um estudo que publiquei em 2017 no jornal académico Habitat International mostrava como as regiões europeias cuja estrutura de emprego é mais dependente do turismo são também as que apresentam maiores níveis de desemprego. Outros estudos mostram, por exemplo, que mesmo em regiões com aparente grande sucesso no turismo, como Barcelona, os salários no sector têm valores cerca de 50% abaixo da média da economia da região. Na realidade, o turismo actual tem um impacto ecológico significativo e, apesar de alegadas potencialidades tecnológicas e criativas mais ou menos identificadas, contribui muito pouco para o crescimento económico dos destinos e ainda menos para a respectiva coesão social. Vivemos tempos obscuros, em que as vistas estão turvas pela omnipresença do covid e as esperanças possíveis apontam para o aparecimento de uma vacina da qual entretanto desconfiamos. Também desconfiamos dos governos que de forma mais ou menos errática tiveram a triste sorte de ter que lidar com esta inusitada situação. Desconfiamos das empresas e seus porta-vozes mais ou menos informais que clamam por desregulamentações, liberdades de circulação de capitais e outras formas de liberalismo mas que correm aos pedidos de subsídio ao primeiro sinal de crise – e que afinal não inovam, não se adaptam e só despedem, ainda mais, as pessoas de que afinal pensam não precisar. Desconfiamos de todo o sector turístico, pujante no seu magnífico crescimento nas últimas décadas, a engordar sistematicamente grupos económicos vários e especuladores diversos – às vezes os mesmos, aliás – e que afinal estão agora na linha frente dos que aparecem de mão estendida, como na sopa dos pobres. Já não é gourmet, naturalmente. E também não é sustentável.