Bola ao centro

Anunciada com pompa e inevitável soberba, a superliga do futebol europeu parece ter morrido antes de nascer: um torneio onde o pedigree iria definir o acesso, com alegados precedentes históricos a determinar direitos futuros e participação garantida para os membros fundadores, auto-consagrados como os mais prestigiados do planeta futebolístico, já detentores das maiores riquezas mas à procura de uma apropriação ainda maior dos benefícios globais que o espetáculo da bola vai gerando, entre bilhetes para os estádios, direitos televisivos, mercadorias promocionais, subscrição de canais digitais ou outras formas de rentabilizar marcas de notório sucesso e visibilidade.

Não é nova, evidentemente, esta tentativa de transformar em rendas garantidas benefícios que teriam que ser disputados em arenas – ou mercados – com alguma concorrência, ainda que altamente desequilibrada: esta é, na realidade, uma característica marcante do capitalismo tardio que nos tocou viver, já com escassos recursos e mercados por explorar e oportunidades de lucro insuficientes para a avidez dos mais agiotas do planeta. Escasseiam também progressos tecnológicos susceptíveis de transformar empresas em figuras singulares e inimitáveis, criadoras dos seus próprios monopólios, e por isso dos seus rendimentos rentistas, apesar de tudo conseguidos à custa de inteligência e criatividade. Podemos olhar para o primeiro caso – o do esgotamento das oportunidades de exploração intensiva de recursos, como Marx antecipou: a inevitável tendência para a descida da taxa de lucro que havia de matar o capitalismo. Ou podemos olhar para a segunda hipótese, a do esgotamento das possibilidades de inovação, tal como Shumpeter definiu: a burocratização de uma economia que apenas se reproduz, incapaz de gerar novas rupturas e desequilíbrios criativos.

Olhemos por um ou por outro prisma, as consequências são semelhantes: é notória nas últimas duas décadas a concentração do capital em enormes empresas transnacionais, com sucessivas fusões e aquisições, mais ou menos hostis, nos mais diversos sectores de actividade, concentrando o poder económico e político em cada vez menos entidades ou pessoas e naturalmente diminuindo a tal concorrência que devia ser apanágio dos mercados livres das economias contemporâneas. Outro exemplo é o da privatização sucessiva de serviços públicos ou de sectores estratégicos das economias, incluindo transportes, energia, educação, saúde, habitação, enfim a mercantilização de tudo o que é essencial à vida humana. Transformando a prestação de serviços públicos em monopólios privados parasitários criam-se novos rendimentos rentistas que dispensam a concorrência e consolidam a concentração da riqueza de quem já a tem à custa da vulnerabilidade e das necessidades básicas da maioria da população.

Um exemplo flagrante desta violência económica, social e política é o das vacinas que supostamente irão neutralizar a maior pandemia que jamais afectou a humanidade: com patentes que privaram os benefícios da sua comercialização, resolvem um problema de saúde enriquecendo ainda mais um reduzido número de empresas com ampla hegemonia no mercado global de saúde, neste caso a operar em quase-monopólio, com uma procura global francamente superior à capacidade de oferta e um poder quase absoluto para decidir preços e margens de lucros: cá estamos para pagar o que for preciso, por interpostos governos, para que nos livrem do terrível vírus. Tem sido assim com o resto da saúde, naturalmente: já é pequeno o papel do estado na apropriação do conhecimento e no controle dos processos de produção, ainda que continue a ser um agente essencial à educação, formação, investigação e desenvolvimento científico, neste como noutros sectores essenciais à vida humana.

A criação da tal superliga de futebol europeu inscreve-se com facilidade nesta lógica predatória de aceleração e intensificação dos processos de dominação e controle de mercados: um torneio que dispensa boa parte da competição, como outros monopólios dispensam a concorrência económica: até poderia haver umas vagas para quem tivesse méritos devidamente comprovados, mas estariam reservados para a eternidade os lugares ocupados pelos clubes fundadores, essa auto-denominada aristocracia do futebol europeu, com direitos históricos adquiridos por inerência que ultrapassam quaisquer outras veleidades da meritocracia – e da tal competição, que supostamente seria o essencial destes torneios alegadamente desportivos. De resto, na agenda dos agiotas estava também a limitação dos salários e do valor das transferências dos jogadores, aproveitando os super-poderes patronais que a ausência de concorrência consagra na sua plenitude.

Não correu bem, no entanto: levantaram-se muitas vozes com determinação suficiente para neutralizar o processo, pelo menos por enquanto: grandes clubes da Alemanha e da França não acederam ao convite, clubes médios com legítimas aspirações à elite protestaram desde o primeiro momento, praticamente todas as instituições reguladoras do futebol europeu, e mesmo os adeptos de alguns clubes supostamente beneficiados vieram rapidamente para a rua gritar. O recuo dos clubes ingleses parece ter neutralizado esta intentona monopolística, a que se seguiram também clubes ingleses e espanhóis. Se a concentração do poder futebolístico continuar, será por outras vias, que não a da imposição administrativa de torneios exclusivos e fechados à competição.

De resto, não é a primeira vez que no futebol se nota uma rejeição das tendências contemporâneas do capitalismo tardio que infelizmente não se observa noutros domínios das nossas economias e sociedades: já há alguns anos, também foram grandes os entraves à liberdade de transferência de jogadores, quando já a globalização dos mercados e a liberdade de circulação de pessoas e capitais se expandiam pelo planeta em sucessivos acordos comerciais, económicos e políticos. Na altura, um jogador chamado Bosman havia de se tornar ponta de lança de progressos legislativos que haviam de trazer ao futebol os processos de liberalização condizentes com os do resto da economia. Veremos num futuro próximo em que resultam estas intenções de criação de uma superliga de privilegiados. Não se nota grande coisa noutros domínios da economia, da sociedade ou da política, mas quando toca ao futebol, ainda se levantam as vozes contra o liberalismo vigente. Antes isso. Bola ao centro!

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