Eventos MancheteFilipa Queiroz, realizadora de “Boat People”: “Uma mensagem de esperança, coragem e gratidão” Hoje Macau - 4 Mai 2016 “Boat People” dá nome ao filme que será exibido a 10 de Maio, pelas 19h30, dentro da programação do Festival Internacional de Cinema e Vídeo. A história dos refugiados vietnamitas que a região acolheu, numa produção de Lina Ferreira, com realização de Filipa Queiroz. Entre histórias mais ou menos escondidas, a realizadora fala do seu percurso entre o jornalismo e o cinema e das vidas que por cá passaram fugazmente por entre guerras e esperanças [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]documentário, no seu caso que também é jornalista, pode ser tido como outra forma de fazer jornalismo? Na minha vida, apareceu primeiro o documentário. Até fui para o Audiovisual na universidade por causa do documentário e de alguns registos televisivos nomeadamente ligados ao National Geographic ou canais como o “História”. Foi isso que primeiro me atraiu, porque, na verdade ia fazer rádio, que não tinha nada a ver. Por outro lado desde que me conheço que também gosto de jornalismo, mas já era apaixonada pelo género documental. Entretanto comecei a trabalhar no jornalismo, estagiei em televisão e continuei a trabalhar nessa área, mas o documentário sempre esteve na minha mira e continua a estar. Posso dizer até que gostava de acabar a fazer mais documentários do que propriamente jornalismo diário. É uma maneira de aprofundar temas, de fazer o verdadeiro jornalismo, a investigação, descobrir histórias através das próprias histórias, o que é uma coisa que o jornalismo diário não nos permite. Também tem os seus encantos mas não nos permite. Considera que há um imediatismo no jornalismo que não há no documentário? O documentário também pode ser construído no imediato, mas ganha toda uma dimensão cinematográfica que é diferente. Pode-se potenciar a questão da imagem, pode-se elaborar, condimentar de outras maneiras. Daí o deslumbre, para mim. Como surgiu o primeiro trabalho nesta área? Já tinha feito uma pequena experiência em Portugal. Foi uma pequena curta num festival para amadores em Braga, onde estudei. Depois, aqui, surgiu a oportunidade de fazer “Era uma vez em Ká Ho”. Esse sim, foi efectivamente o primeiro documentário em que participei. Dessa vez tivemos o subsídio do Centro Cultural, o que permitiu que fosse feito de outra forma. Acho que é importante haver este tipo de eventos para puxar pelas pessoas. Se calhar, se isso não tivesse acontecido, não teria pensado tão cedo em fazer um documentário, ainda tão verde. Só tenho dez anos de jornalismo, o que não é nada por aí além. Se não fosse realmente o desafio do Centro Cultural… Acabou por correr bem. O Hélder Beja foi o realizador e eu acabei por fazer de tudo um pouco. Gosto de trabalhar na parte da filmagem, do argumento, da fotografia. Foi uma primeira experiência que correu muito bem. Eu, pelo menos, gosto imenso daquele trabalho. Não que ache que seja genial, mas pela experiência e pelo contacto com aquelas pessoas. Em Ká Ho falamos da comunidade leprosa em Macau, um tema não muito abordado… Foi um trabalho com a comunidade de leprosos a viver em Macau, num isolamento total. Foi graças ao nosso interesse por esta história que a viemos a descobrir e até a desenvolver algumas amizades. Continuei a ter contacto com um dos protagonistas, visto o outro já ter falecido. Mas a protagonista que até é a mais visível, no que respeita à doença, viveu cerca de 80 anos ali encarcerada, completamente isolada da família. Voltei a visitá-la com a Stephanie que foi a nossa tradutora (sem ela seria impossível) e ela fica muito contente. Falámos um pouco, levamos uns doces. Só isso já vale a pena. O sucesso com o público, se tiver, tanto melhor. Na altura teve. Para mim foi muito importante ouvir pessoas de Macau, principalmente mais velhas, e não tinha a mínima ideia de que isto existia aqui. Foi um sentimento de missão cumprida. Esta foi a minha primeira experiência realmente. Depois veio a segunda: o desafio de 48h em Macau, promovido pelo Centro Cultural e que foi engraçado tendo valido um pequeno prémio. Estas coisas ajudam-nos a acreditar que, se calhar, fazemos alguma coisa de jeito. “Boat People” aborda os refugiados do Vietname. Actualmente os refugiados são tema constante. Neste caso, a temática foi coincidência, ou apanhou “boleia” das notícias do ocidente? Desta vez, tinha realmente uma ideia do que queria fazer. Essa questão é realmente interessante até porque em Macau muitas histórias estão postas debaixo dos buracos, nos recantos empoeirados do Governo, etc. Há muitas histórias que não são contadas. Mas foi uma história gira. Até porque foi o documentário que veio ter comigo e não eu a ir ter com o documentário. A ideia de fazer algo sobre refugiados em Macau já existia e partia da Lina Ferreira, minha colega e produtora deste filme. Ambas gostaríamos de fazer uma história à parte do nosso trabalho na TDM. Ela tinha muito interesse nos refugiados de Xangai. Como tínhamos lido alguns artigos, ela tinha tido conhecimento de um doutoramento sobre isso, [sobre] as pessoas que estiveram em Xangai [sendo que] muitas teriam vindo para Macau e outras até mesmo para Portugal. Andámos atrás disso. Ela perguntou-me se achava que poderia dar alguma coisa e achei que sim. Sou a parte mais visual do documentário. E precisamente por isso disse logo à Lina que isso seria muito complicado porque precisávamos das pessoas e dos locais, o que seria um grande problema. Não só as pessoas como também os locais desapareceram. Ir buscar histórias que já “morreram” acarretará dificuldades específicas. No vosso caso, quais foram? Essa ideia estava em banho-maria porque realmente não conseguíamos encontrar ninguém vivo, ou que nos quisesse contar a história ou que nos pudesse acompanhar a Xangai. De repente, por mera coincidência, um rapaz do Canadá contactou-me. Andava à procura e tropeçou no nosso documentário sobre Ká Ho. Gostou imenso e mandou-me um email. Apresentou-se, agradeceu o trabalho, disse que estava uma história muito muito interessante e depois contou a história dele. A história dele é de uma pessoa refugiada de Macau que, mais do que isso, iria regressar a Macau 30 anos depois de ter deixado o território e gostava de conhecer gente de cá. Perguntou-me se eu estaria disponível. É uma “win win situation aqui”: através de mim ele conheceria pessoas daqui e se quisesse registar o momento também eu ficaria a ganhar com isso. Foi quando disse “Lina temos a nossa história”. Mas depois foi tudo em tempo recorde. Ele falou connosco em Setembro e em Outubro já cá estava. Ele e a pessoa que o acompanha, que agora prefiro não revelar porque isso é a parte gira para se descobrir no filme. Essas duas pessoas vieram cá, estivemos com elas durante nove dias, andámos pela cidade. Foi tudo de improviso. Não tinha muitos meios, contei com a ajuda preciosa do Pedro Lemos com a câmara e do meu marido a fazer o som, o Francesco. E trabalhámos nisto de uma forma inicialmente muito rudimentar, mas foi sobretudo uma coisa feita com muito amor e muito interesse e improviso. Uma experiência fantástica que agora já me parece muito distante mas que resultou também numa bela amizade. Ficámos muito próximos. E como é que, a partir de um só relato, as histórias se foram desenvolvendo? Tínhamos inicialmente só esta história. Depois percebemos que a história era muito mais interessante do que parecia à superfície. Eram refugiados. O tema está na ordem do dia, sim. Mas de facto não foi o ponto de partida. É impossível fugir a isso e é uma questão à qual somos sensíveis. Até porque somos emigrantes, pessoas que se movem no mundo por impulsos e necessidades diferentes. As outras personagens surgiram para contar melhor a história. Mesmo assim não está totalmente contada. Acho que ficou espaço para muito mais. Nós é que simplesmente tínhamos uma “deadline” e poucos recursos. Queríamos fazer uma coisa completamente independente e não tínhamos apoios. Depois conseguimos ir buscar outras pessoas. Uma que na altura trabalhou na polícia marítima e que assistia à chegada dos vietnamitas a Macau e que na altura trabalhava com o padre Lancelote e o padre Ruiz, que eram as pessoas que recebiam cá os refugiados. Fomos também buscar dois jornalistas que, mais do que historiadores, são pessoas que estiveram no terreno. Fomos à procura de outros elementos para compor o ramalhete. Mas muito fica ainda por dizer. Enquanto histórias também escondidas, que entraves ou “escavações” tiveram que fazer? Curiosamente o Governo foi muito acessível. Sabemos que as coisas às vezes não são muito claras, mas neste caso tivemos que contactar o Governo para algumas situações. Foi a Lina que o fez e recordo que ela disse que tinham sido muito prestáveis. Filmámos, por exemplo, dentro dos Serviços de Identificação e tivemos algumas explicações da parte deles. Mas por exemplo no Centro de Formação Juvenil Dom Bosco, que era o antigo campo de refugiados aqui, não nos deixaram entrar. Desconfiaram muito quando só queríamos saber o que tinha acontecido com as pessoas que viveram lá. Ficámos à porta. Essa foi a maior dificuldade. E a barreira cultural que é inevitável porque as pessoas não falam da mesma maneira. Foi por isso também que recorremos a outros entrevistados. As pessoas chinesas não desenvolviam algumas questões. Os protagonistas falavam bastante mas as outras pessoas que tentamos procurar – existe também uma enfermeira que na altura trabalhou no campo – não dão detalhes, não são descritivos, não dão datas ou nomes. Era tudo um bocadinho complicado. Essa barreira existiu e ou se contorna se se tiver mesmo muito tempo para ganhar confiança ou então tenta-se de outras formas. Foram essas essencialmente as nossas barreiras. Entretanto do nosso bolso também conseguimos melhorar o filme. Procurámos a ajuda de técnicos profissionais que em Macau já se encontra muito. Macau já desenvolveu muito pessoal especializado. Faz cinema em Macau. Como vê a situação da industria na região? Qual o estado do cinema aqui? Acho que está óptimo. Da parte da comunidade chinesa ainda acho que é um pouco monotemático. Costumo assistir a vários filmes e vou a festivais e anda tudo muito à volta do mesmo tipo de temas – o amor, o drama. Por acaso até é curioso porque isso vai ao encontro da tradição portuguesa que também é muito dramática. O cinema em Macau tem muito de fado. Acho que até é uma herança que nem eles, jovens que estão a fazer cinema, têm noção. Mas o momento actual do cinema em Macau é óptimo, não só por causa dos apoios que o Governo tem, de facto, dado com estas iniciativas e festivais, não só para os filmes serem feitos como na recuperação de espaços. Por exemplo, a Cinemateca Paixão. Acho que o Capitol também deveria ser recuperado. Macau já teve muitos cinemas e tem uma história de cinema incrível, mais como cenário para o cinema e não a ser Macau a fazê-lo. Acho que está no bom caminho. Público também tem. Já vi filas no Cineteatro como nunca vi em Portugal, exceptuando as grandes estreias. “Boat People” não é uma mensagem de tragédia, é um filme de esperança? Sim, é uma mensagem de esperança, de coragem e de gratidão. As pessoas que aqui vieram não vieram só visitar Macau, vieram agradecer. Sobretudo gratidão. Senti isso e elas também o disseram. Isto ainda não o tinha dito antes. Mas sim, existe não só a coragem de ter apanhado o barco para vir parar a Macau, ficar aqui uns anos sem saber o que lhes iria acontecer e depois serem enviados para um outro país que não conheciam de lado nenhum e terem uma vida nova outra vez. Uma das personagens lamenta muito o facto de ter saudades de algo que já não existe, as lembranças que tinha de Macau, dos lugares que tinha conhecido, que já não existem. É quase estar a procura de uma memória, de uma identidade que se perdeu. Por exemplo um elemento muito importante na altura e que já faleceu [foi] o padre Lancelote e eles queriam muito estar com ele também. Estiveram através de outras pessoas. Mais uma vez o papel do jornalista vem a tona, no deixar os relatos. Sem isso não há nada.