O deserto de Ariake

Voltei recentemente a Tóquio, mais de um ano depois da última visita. Começava 2020, despontavam os primeiros casos de covid-19, soavam os alarmes e impunham-se severas restrições na vizinha China mas ainda não se sabia o que estava para vir, nem por aqui, nem pelo resto do mundo. Entrava-se nos preparativos finais para os Jogos Olímpicos de Tóquio, em particular nas zonas de Odaiba e Ariake, na baía da cidade, uma área em plena renovação pós-industrial ou de terrenos recentemente conquistados ao mar, onde novas centralidades urbanas eventualmente irão emergir, com o necessário impulso olímpico. Aqui ficaram a aldeia olímpica que alojou participantes nos Jogos, o Parque Marítimo para desportos aquáticos, o parque dos desportos urbanos (como o skate), a Arena para o voleibol, o coliseu para o ténis ou o centro de ginástica que há de tornar-se centro de exposições.

Nesses inícios de 2020 – e até antes – grandes transformações eram já visíveis na cidade que havia de acolher participantes e entusiastas dos Jogos, uma esperada renovação suportada também pelo entusiasmo turístico aqui não tem parado de crescer na última década: renovadas estações de metro e comboio (que por aqui frequentemente incluem um ou mais centros comerciais), novas áreas envolventes e acessibilidades (cada vez mais facilitadoras da circulação a pé ou em bicicleta e das transições entre diferentes modos de transporte), mais informação em língua estrangeira (até então um pesadelo para turistas a ter que lidar em japonês com uma complexa rede de intrincadas linhas de transportes diversos numa cidade gigantesca) – e também novas torres de habitação e escritórios, serviços, restauração e hotéis vários, enfim, uma profunda reorganização e modernização da maior área metropolitana do mundo – que, ainda assim, está a perder população (e prevê-se que continue).

Costuma dizer-se que em Tóquio qualquer negócio funciona: os mais de 35 milhões de habitantes da metrópole garantem mercado para viabilizar todas os investimentos. Não parecia ser o caso, no entanto, nos meses que antecederam os Jogos Olímpicos. Em anterior visita à cidade, ainda em 2019, procurei na internet restaurante de bom peixe e arejadas vistas sobre a cidade. Encontrei um no alto de torre muito recentemente construída na zona de Shiodome, magnífico na sua moderníssima arquitectura interior e nas envolventes a proteger e promover o trânsito pedonal, sempre em conexão fácil com a rede de transportes públicos. Salão de tectos altos, paredes de vidro, amplas vistas sobre a noite de Tóquio, esmerado serviço e comida a fazer justiça à melhor tradição japonesa, país onde não é fácil encontrar onde se coma mal. O restaurante, manifestamente à espera de melhores tempos olímpicos, oferecia descontos de 60 por cento em relação aos preços alegadamente habituais, o que naturalmente facilitou bastante a visita.

No entanto, os Jogos haviam de ser adiados, primeiro, e condenados a uma versão limitada, um ano depois, sem espectadores que usufruíssem das novas maravilhas da cidade e com a imprensa obrigada a isolamento na aldeia olímpica, sem poder testemunhar e divulgar as transformações visíveis em várias zonas da metrópole. Foi numa delas, aliás, que me instalei para esta recente visita a Tóquio: em Ariake, coração dos Jogos, mesmo em frente ao Coliseu onde se disputaram as provas de ténis, com vista para as obras de desmantelamento do parque de desportos urbanos e próximo também do ex-centro-de-ginástica-futuro-centro-de-exposições.

Fiquei num hotel novíssimo, aberto há um ano, naquilo que seria mesmo a tempo da abertura dos Jogos Olímpicos. Edifício bonito, funcional e confortável, com serviço exemplar, ligação directa a um centro comercial e a um simpático jardim, e preços bastante moderados, incomparáveis com o que é habitual em Tóquio. Tudo nesta área tresanda a conforto e modernidade: duas linhas de monorail a fazer a ligação ao resto da cidade, amplas avenidas, largos passeios, omnipresentes ciclovias, abundantes espaços verdes – toda a arquitectura, nos edifícios e nas ruas, reflecte uma certa ideia de futuro, de leveza, de relação mais equilibrada com o ambiente. E, no entanto, tudo é deserto: mesmo em hora de ponta muito pouca gente utiliza os monorails, não há congestionamentos nas estações dos transportes públicos (e muito menos nas estradas, onde são raros os automóveis particulares), não circulam bicicletas nos quilómetros de ciclovias disponíveis.

Na realidade, não parece haver pessoas para estas micro-cidades do futuro que vão emergindo na grande metrópole de Tóquio. Os tais negócios que se espera que funcionem sempre permanecem em contínuo adiamento, sempre em saldos, para facilitar a vida a visitantes ocasionais, como eu, mas sem grande contributo para a qualidade de vida dos residentes, que não encontram nestas novas áreas de desenvolvimento recente razões que justifiquem a deslocação.

Não voltei ao tal magnifico restaurante de bom peixe e boas vistas mas pode ver-se na respectiva página na internet que os tais preços de saldo continuam, dois anos depois – tornaram-se os preços normais, afinal. A metrópole é enorme e qualquer movimento custa tempo e dinheiro, requer motivação plausível, praticamente inexistente nestes novos sítios sem gente nem história, com episódicas atrações (como as extraordinárias instalações multimédia que se podem visitar em Ariake), que na melhor das hipóteses justificam uma deslocação esporádica mas que estão muito longe de se tornar espaços de presença regular.

Se a expectativa em redor da promoção internacional associada a um evento internacional de alta exposição mediática parecia justificar o frenesim intenso de construção e renovação da cidade antes dos Jogos, já a modesta realidade imposta pelas restrições associadas à pandemia de covid-19 parecia justificar cautelas futuras, que afinal não se verificam: na realidade, gruas gigantescas continuam a marcar a paisagem da metrópole de Tóquio, com outras novas torres de arquitectura e envolventes moderníssimas a emergir em diferentes locais – e em particular na zona de Toranomon, onde se concentra largo número de edifícios oficiais. Apesar da abundância desta oferta de serviços e habitação para uma população em declínio, os preços das casas não dão sinais de descida (ao contrário do que se passa nos novos hotéis e restaurantes). A expansão de novas e belas áreas urbanas, bem equipadas mas quase desertas, contrasta com os massivos movimentos diários da população jovem para as várias periferias onde se foram reinstalando as grandes universidades quando as necessidades de expansão deixaram de ser compatíveis com a exiguidade dos espaços disponíveis no centro. Fazem-se cidades modernas com mais conforto e infraestruturas mais compatíveis com a protecção do ambiente, mas não se faz cidade sem história nem pessoas.

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