Do prazer (e) da ilusão

E trocar a erudição pelo belo? É o que me pergunto ante alguma distância e secura árida de algum do discurso sobre o discurso. A crítica sobre a obra. O saber sobre a arte ou a poesia, que me faz sempre querer tapar os ouvidos e ver simplesmente. Ouvir. Fruir e mergulhar fundo na ilusão de vida que é o uso da linguagem. O mais sólido e vazio prazer da ilusão, como disse Giacomo Lombardi. Uma astronómica manobra de sobrevivência, dado que o belo nunca desilude. Já a razão é uma barca de derivas abstractas que levam a cenários longínquos e analíticos mas, malgrado a euforia do saber, distancia-se do sentir e do embalar da simples e delicada beleza que em si é simplesmente o que é, sem necessidade de explicação ou fundamentação. Mas como dizer que a beleza seja um malabarismo da nossa capacidade de ilusão sem reconhecer a lírica e lúdica apetência do hedonismo que nos salva de todo o resto, sem graça, sem emoção e sem sentido e nos mergulha na trémula e deslumbrada sensação de pura contemplação. Talvez esta seja a chave do precioso segredo da humildade. A capacidade de deslumbramento. Que nada cobra do universo e em vez disso se silencia atónito ante o ver e o admirar. Nem que seja por momentos.

Ignorar o próprio ser por momentos, por momentos esquecer e render homenagem ao objecto admirado é como abrir as portas afanosamente aos anjos e que entrem que deslumbrem ou sirvam. Isso é lá com eles. Sem juízos e avaliações e pódios. Sem hierarquizar um momento puro e emocional de prazer ante a beleza de uma frase, escrita, pensada ou lida, de um gesto, de uma paisagem, de um olhar ou de uma vida, ou discorrer sobre ela de um ponto de vista crítico.

Às vezes todas as ilusões de nitidez, não para com a vida, não para com nada que nos seja reflectido dos outros, mas com a simples realidade familiar com que nos deparamos em nós. Que pode, de um momento para o outro, tornar-se uma vasta poalha de intermitências indefinições e paradoxos. O querer e não querer e o querer não querer ou o querer querer. Tornando-nos irreconhecíveis aos outros, no indeterminado momento em que lhes parecera reconhecer-nos e logo desconhecer. Talvez haja que manter a ilusão. Um certo olhar.

Mesmo quando o dia é uma correria mas de repente fica com uma textura fina de calma e eternidade. Como se tudo se silenciasse a fruir um momento. Poderia ser esse brilho ainda tímido de sol de primavera e vizinhança de fim de tarde. Ou pode não ser nada de especial, mas algo que simplesmente acontece.

Está bem. Vieste então desinquietar-me e eu encontro uma pertinência difusa e quase impalpável de tão subtil nas tuas razões que não sei. Sei o efeito. Ou antes a forma, depois, somente depois, o efeito. Mas é o efeito em mim. Esse pavor de não entender, que me persegue como monstro papão da infância já com a insónia pontual que haveria, depois, de se tornar personagem de casa. Sem convite, mas amiga estranha e a quem se instituiu o direito de vir depois, mesmo sem chamamento. Lá longe era o vulto do roupão pendurado atrás da porta, um ser de contornos sombrios a apelar um olhar incauto de um sono que de súbito não vinha. Os murmúrios da casa em respiração que dizem natural e saudável. E que se não existisse seria como viver uma casa morta de si. Mas é estranho.

A casa range. É a verdade que me incomoda os passos que sempre quis silenciosos. O universo já é ruidoso por demais.

Depois penso como ser feliz. O futuro a deus pertence, diz-se, mesmo que não tocados de uma fé que não temos mas no assumir simples de que é algo susceptível de tantas variáveis que não podemos controlar, que melhor é não termos essa ilusão de o saber. Mas como sobreviver até lá, é a tarefa humana que me ocupa todos os dias. A de não perder paisagens imaginadas, também.

Como não nos deixarmos tocar de melancolia e pessimismo sem ignorar a realidade humana e a sua inalcançável mas presente e férrea subjectividade. Plena de oxidações corrosivas e dolorosas de variações cromáticas. Mas adaptável, flexível e sempre sujeita a viajar de um extremo a outro.

Deixarmo-nos abundantemente embriagar pelo possível. Pela beleza do possível ou simplesmente pelo belo existente nas coisas. As coisas, um gesto bom, uma carícia sincera. Um elogio à vida como ela é ou como ela se pode construir. Ver. E não como deveria ser e se oferecer. Uma certa forma de ilusão. Como a arte.
O copo meio cheio, afinal.

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