Vozes…Rabo no chão Leocardo - 5 Jan 20165 Jan 2016 “[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]inheiro na mão, rabo no chão” – eis uma expressão chula que no seu sentido original faz referência ao pré-pagamento, ao “dinheiro à vista”, pelo que se pode imaginar que era mais utilizada em certos circuitos ditos “marginais”, e não propriamente na caixa de um supermercado ou num balcão de uma instituição financeira ou de crédito. No seu sentido mais lato, é mais uma das inúmeras referências que podemos encontrar no léxico popular à importância do vil metal – nada se faz sem dinheiro, porque vá-se lá imaginar porquê, ficou convencionado que sem ele é praticamente impossível adqurir bens ou serviços, ou traduzido para o idioma do “deixa-te lá de merdas”, serve para comprarmos as coisas de que gostamos e para, helas, “vivermos felizes” (Mas que raio de raciocínio este, e logo em plena quadra natalícia. Por outro lado, bah, que se lixe). O dinheiro é também conhecido por pilim, bagalhoça, graveto, massa, carcanhol, bufunfa, guito, grana, e agora pensando bem, basta inserir qualquer palavra num contexto económico ou comercial para que esta adquira uma conotação com o capital: “Quando é que me devolves os paralelipípedos que te emprestei a semana passada”, é uma frase que qualquer pessoa interpreta como referência a uma dívida em numerário. Se ouvimos alguém conhecido a lamentar-se “andar com falta de chimpanzés frenéticos” porque está desempregado vai para uns bons seis meses, a mensagem subliminar que nos é transmitida leva-nos a evitar qualquer forma de diálogo com o indivíduo em questão. É esclarecedor o poder que ele tem, quando quase unanimente se afirma que “o dinheiro só dá problemas”, mas cria problemas ainda maiores na sua ausência. O dinheiro é de tal forma arrebatador que a expressão “estou teso” deixou de se aplicar à boa circulação sanguínea ao nível do tecido eréctil fálico, tendo caído “na bancarrota”, por assim dizer. Uma outra expressão, “não há dinheiro, não há palhaços”, remete-nos de uma certa forma para a inocência perdida, da sensação de que muito possivelmente alguém só nos tenta agradar ou é agradável connosco apenas pelo facto de não existir entre nós uma relação comercial, inter-dependência financeira, ou um interesse materialista. E fico-me por aqui nesta deambulação , ou não vá entrar pela floresta dos orgasmos simulados e afins, e… porra, fico por aqui. Isto tudo para dizer que neste ano que hoje termina estive em dois países que até há relativamente pouco tempo pensei que nunca chegaria a visitar, e que a única forma de poderem vir a ser um dia visitáveis seria com um “rebooting” completo, do género “aniquilação total de toda a população existente, e sua substituição por outra de modo algum semelhante com ela”. Falo do Myanmar, que no câmbio do “deixa-te lá de merdas” ainda é mais conhecido por Birmânia, e no Cambodja – dois lugares onde a simples presença física aumentaria exponencialmente a possibilidade de nos ser declarado óbito (não que essa declaração “à posteriori” nos fizesse lá grande diferença, entenda-se). Mas não há que o negar; para a geração das pessoas que têm hoje mais de 25 anos, a Birmânia e o Cambodja são tidos como locais nada recomendáveis para se fazer turismo. E aqui refiro-me à noção mais comum e “democrática” de turismo, aquele do tipo “estou de férias, quero fazer o que me apetecer sem que ninguém me chateie”. E de facto a Birmânia foi e vai sendo notícia devido à sua atribulada situação política, que balança ao som dos maiores sucessos do despotismo e da corrupção, enquanto o Cambodja, resumindo em poucas palavras, viu um terço da sua população dizimada em quatro anos de Governo de uns tais “Khmer Rouge”, nome dado ao grupo de babuínos facínoras, e graças aos quais o país tem como uma das suas atracções turísticas uns tais “campos da morte”. E não, o nome não tem origem numa qualquer lenda maluca envolvendo ninjas celestiais e imperadores voadores mais as suas concubinas. Eram terrenos de natureza rústica onde morriam pessoas como nós. Simples. Mas tudo isso mudou e hoje posso dizer que andei de noite por becos e vielas nas entranhas de Rangum sem temer que me viessem impingir um Rolex da Candonga, e enquanto estive em Siem Reap não vi qualquer execução sumária em nenhuma das suas principais artérias, e em plena luz do dia. Vi gente feliz, simpática, afável, e tão prestável que fazia das tripas coração para se tentar fazer entender com os estrangeiros, um autêntico recital de orgasmos simulados (pronto, não consegui evitar, paciência), e tudo isto porquê? Lá está: “dinheiro na mão, rabo no chão”, e aqui existe o aliciante cambiante de que enquanto as nádegas estiverem suavemente pousadas na solidez desmilitarizada e desparasitada de vermes totalitaristas do asfalto, menos vontade estas pessoas têm de andar aos tiros, ou a rebentar com qualquer coisa “só para passar o tempo”. Descobriram que afinal era mais interessante vender qualquer coisa que se coma, vista ou use, satisfazer o consumidor, e ainda obter algum lucro no processo. E depois de acumulado essa lucro, compram uns dois ou três imóveis (estranhamente essa parece ser uma filosofia de vida regional). Posso mesmo afirmar que na Birmânia e no Cambodja se está a assistir ao contrário do que vamos vendo pelo Ocidente. Acho que chegaram ao ponto óptimo existencial, depois que atingiram o “nirvana” supremo que os fez pensar: “a política que se lixe; vou mas é trabalhar e fazer umas massas”. A Birmânia deixou-me especialmente encantado. Num país onde ainda recentemente o líder do Governo dedicou um discurso de quase uma hora a um combate de boxe, e tudo porque apostou e perdeu, não vi um único motociclo nas ruas da capital do país, e em vez de ter esses machimbombos de duas rodas anarquicamente estacionados em toda a parte, os passeios de Rangum eram ocupados por vendilhões, de um lado e do outro. E como chegava a ser agradável deter-me e inquirir sobre cada espécie de comércio com que me deparava, quer do lado esquerdo, quer do outro, enquanto me pavoneava pelas ruas de um país onde tudo o que sabia da actualidade foi-me dado a conhecer pelo último filme da série “Rambo”. Uma boa surpresa, portanto. E é com esta bonita imagem, com este sentimento de positividade que nos diz que de barriga e bolsos cheios dá menos vontade de fazer revoluções e tretas que tais. Para todos os leitores do Hoje Macau, um desejo de um ano que a expressão “estou teso” volte a ter o seu sentido original. Um feliz e próspero 2016, deste vosso servo.