h | Artes, Letras e IdeiasCarta a um refém Amélia Vieira - 15 Set 2020 [dropcap]N[/dropcap]o ano de todas as clausuras é normal que nos recordemos de certas leituras que o tempo foi deixando para trás e que são quase sempre aqueles pequenos grandes livros que não raro ocupam a obra invencível de um autor. Dividido em momentos, confidencialmente narrativo, esta Carta para todos, tem um remetente único, Saint- Exupéry. Nós que passamos a vida a receber missivas, lixo de todo o lado, imagens, exasperações, teorias, sentimos uma pena profunda de não podermos nunca mais receber cartas, e mais pena nos invade quando sabemos que nunca iremos receber uma como esta. E estas coisas quase esquecidas que emergem servem sobretudo para nos advertirem do essencial e mudar o conceito do que é o não imprescindível. Tal como os comportamentos perante o limite das coisas e o cada um representa diante dos perigos comuns. 1940 e Exupéry chega a Lisboa em trânsito para os Estados Unidos, fica um tempo, tempo para ainda ver a Exposição do Mundo Português. Não tem lugar na cidade e vai hospedar-se no Estoril, e vamos em busca do que sentiu e presenciou: “… Lisboa surgiu-me como uma espécie de paraíso claro e triste…” Sim, Lisboa no seu discurso era a imagem da negação de tudo o que se passava na Europa onde achava as cidades bombardeadas e a noite sem luz de uma beleza mais real que esta, e de acordo com a maré negra do instante político onde não faltava a coragem dos que davam as mãos e lutavam nas trevas das cidades desfeitas, Lisboa, pareceu-lhe assim um artifício, um postal que branqueava de uma alegria vazia este momento em que todos tinham de tomar posições, parecia-lhe uma forma alienada de perfeccionista (a descrição da Exposição: não temos nada, haja o passado, e enganar e entreter o instante) e remeti-a então para aquelas famílias excêntricas que guardam à mesa o lugar do morto em casas sem remissão onde as dores são mais prolongadas que o desgosto. Os refugiados, esses, eram aqui os que se expatriavam virando costas aos seus e pondo em segurança aparente os bens de que usufruíam, mudos à sorte das coisas e mudanças do momento. É com profunda lucidez que tece um discurso curto e que vai dar aos longos caminhos de um grave adormecimento colectivo. A Europa sofria, o Estoril para onde se dirigia para dormir, estava cheio de “cadillacs” vestidos para o jantar, jogos, numa tentativa de fazer parar o tempo ou mesmo não o estar a sentir, e creio que aqui nos dá a tónica do seu discurso formidável daquilo que pode realmente ser uma estranha desgraça no contexto destas circunstâncias; enjoado provavelmente desta bizarra atitude, passeava-se à beira mar onde por desprazer já tomado achava também as ondas moles. Este aprendizado pelo olhar de um homem absolutamente poético e sem cargas de viciação, devia ter-nos merecido alguma sincera atenção de grupo, mas creio que não foi nem lida, mencionada, muito menos proposta. Estamos à distância de quase um século, é certo, mas, a visão de um bem-estar forçado não é compatível com a infelicidade que hoje se lhe vê, nem se lhe reserva um escudo protector que mitigue um continente inteiro que pesa outra vez sobre o país: «achava Lisboa, sob o seu sorriso, mais triste que as minhas cidades apagadas». Depois deste preambular pelo país, Exupéry parte para o Sahara, ele que era um homem do deserto pois que o amava, e este seu amor pelas areias reporta-o ele para domínios essenciais que estão paradoxalmente, e aí sim, cheios de vida, e porque tem as estrelas e as tribos calmas pelas noites, vai convocar amorosamente o amigo numa comunhão telepática. – Tem cinquenta anos. Está doente. E é judeu.- Tudo isto ao invés de nos entristecer enche-nos de uma súbita alegria, uma comunhão tamanha…« só então, deambulando ao longo do império da sua amizade… Pois o deserto não está onde cremos. O Sahara tem mais vida que uma capital e a cidade mais efervescente esvazia-se, se os pólos essenciais da vida forem desmagnetizados». Percorre talvez o limite da sua resistência sempre de olhos postos naqueles que lhe são queridos, percorre as estradas dos Magos, e a rede de apoio que disponibiliza é a sua vida atenta e as missões aéreas que desempenha, descreve-nos episódios da guerra civil de Espanha e a emboscada anarquista numa deliciosa visão daquilo que constitui o equívoco das inimizades dos homens, e no seu cárcere, vê então que o milagre e a salvação são afinal gestos tão simples como pedir um cigarro, e em todas as paragens que a sua valentia não menos grandiosa que a sua ternura se apresentaram, manteve-se de pé como um ilustre soldado. Ninguém aqui deve estar por isso confinado a si mesmo ou a laboral maquinalmente para uma vida extemporânea, e nos momentos excepcionais teremos ainda de responder à altura dos acontecimentos e não ter medo do que possa advir de imprevisto. Não consentir que nos “queiram bem” subtraindo a vida a um estar. Creio que neste caso é evidente que devemos ser comprometidos e que nada é mais desolador que manter modelos alienados no tempo em que soam as Trombetas. Aprendemos assim que o Fado é bonito, sim, mas amaldiçoado. E foi preciso o improvável para sabê-lo explicá-lo tão bem. «Não há termo de comparação entre o combate livre e o esmagamento na noite. Não há termo de comparação entre o ofício de soldado e o ofício de refém».