Afinal, é melhor retirar o que disse

[dropcap]V[/dropcap]ou confessar: era eu que levava o dinheiro. Davam-me uns pacotes com molhos de notas variadas e pediam-me para entregar a tal pessoa. Não sabia quanto era, mas dava para ver que devia ser uma pipa de massa, que esta gente quando fazia as coisas era a sério, não se punha a brincar aos roubos como os banqueiros, que isso é mais coisa de meninos. Falávamos pelo intercomunicador do prédio. Colocavam a tralha no monta-cargas e eu só tinha de pegar nela. Simples.

O nome do destinatário era inventado, era um código que só funcionava no acto de entrega. Mas eu sabia perfeitamente quem eram. A maioria era gente conhecida dos jornais, que precisava de maquia fresca para alguma necessidade mais urgente. Comprar um cabriolé ou um quadro cheio de pó do Miró, que dedos amigos tinham surripiado de uma colecção esquecida na cave de alguma repartição de finanças. Ou coisa parecida. Podia ser também do Bill Viola, que é um gajo que está sempre em voga. Não perguntava nada, não me intrometia em assuntos alheios e quando metiam conversa, para serem simpáticos, ou porque tinham uma vida de merda e não tinham ninguém para desabafar, eu dizia que sim com a cabeça para acharem que era meio surdo ou que tinha um parafuso a menos, e assim acabava-se logo o diálogo. Que fique igualmente neste registo, que não tenho grande paciência para desabafos. Faço o que tenho a fazer e não há espaço para mais dilações, que o mundo não pára. Corre.

A verdade, é que o dinheiro chegava sempre ao seu destino com rigor de especialista, isso não posso negar. Parecia que tinha nascido para fazer aquilo, pegava com uma mão e entregava com a outra. Assim mesmo, como quem salpica umas cores num papel e faz uma obra de arte. Pensando bem, era melhor do que o Miró, pelo menos não tinha que sujar as mãos com o raio da tinta, que é outra coisa para a qual também não tenho ponta de interesse. E para dar aqueles tons é sempre preciso muitos tubos da Caran d’Ache. Não vamos falar de pintores, por favor.

Bom, não sei se havia algum contabilista para toda aquela abundância, o mais certo era não existir nenhum, mas desde o primeiro dia que me cheirou a trafulhice das grandes. E como correu bem dessa vez, pediram-me mais uma e por aí adiante, até lhe perder a conta. Se me perguntarem, não consigo enunciar quantas foram as causas pelas quais andei a percorrer a avenida. Não apontava nada e tenho a memória fraca, nem uma anedota consigo contar e quando vou para entoar o hino, atrapalho-me. Mas para o resto, é isso, tinha bastante jeito para moço de recados ilícitos. Talvez um dia que precise possa arranjar um emprego nos Correios, é só porem-me à experiência.

Quanto às verbas, agora, falam por aí que foram milhões. Milhares de milhões. Ninguém sabe ao certo, até podem ter sido, aquilo era muita massa. Acusaram este e aquele, que eram eles que levavam aquela fortuna de um lado para o outro e das mais variadas formas. Mas é mentira. Fui eu! Não me deu trabalho nenhum. Eu, no metro com um milhão no bolso. O que me ria. Em horas de ponta, muitas vezes com agentes da autoridade que voltavam para casa depois de um longo dia de trabalho, meio desfardados. E eu ali, com o bolo de aniversário na mão. Ou com a consola de jogos última geração. Partida.

Já sei, ninguém me vai acusar porque sou gente miúda e não valho muito no mercado dos bandidos. Não ando para aí a passear-me num rolesroyce ou a ser levado para interrogatórios. Pelo contrário, tenho uma vida discreta, não saio muito e nem uso roupas de marca. É claro, ninguém conhece o meu nome. Mas isso vai mudar, basta escrever umas coisinhas e prolongar a verborreia. Ainda consigo lembrar-me de umas caras e rabiscar uns retratos, daqueles robots como o Miró fazia, cheios de cor e de tinta. Ou então dou com a língua nos dentes e tenho-os aí todos a pedir favores. Que é o que eu sei fazer melhor.

Quanto às verbas, agora, falam por aí que foram milhões. Milhares de milhões. Ninguém sabe ao certo, até podem ter sido, aquilo era muita massa. Acusaram este e aquele, que eram eles que levavam aquela fortuna de um lado para o outro e das mais variadas formas. Mas é mentira. Fui eu!

Por causa de todo o alarido, há uns meses, decidi fazer as coisas à minha maneira. Acabei com os recados de pouca monta. Se por acaso a encomenda era pequena, rejeitava a oferta, deixando de fazer as coisas por tuta e meia. Mas o mais importante: vou arrumar as botas. Fiz contas à vida e foi a decisão que tomei. Que se lixe a fama de ser o maior malandro do bairro. Essas intenções já desbotaram. E na verdade, não tenho fama nenhuma. Mas é desta, foi a última vez. Só mais este servicinho. Não se vai repetir.

Já contei as notas, são dez mil. É o que veio. Não sei bem o que era para fazer com elas. Não apontei, esqueci-me. Dez mil notas de quinhentos é muito dinheiro. Vieram numa caixa de cartão, disfarçadas entre medicamentos para a gripe. Contei-as com redobrada atenção, parece que até lhe estava a tomar o gosto, eu que nunca liguei àquilo. O que fiz foi o seguinte: troquei o conteúdo do embrulho pela comissão que me cabia, que era sempre uma ninharia. Acabam sempre por ser uns forretas, Mas isso acabou, o que ganhava com toda esta história eram apenas umas esmolas. E assim foi, não toquei nos comprimidos para não se perder o volume e porque ainda não tenho dores. Deixei tudo na morada que me indicaram. Um hotel. Foi uma tarefa difícil, é um risco que se corre, eu sei, mas cinco milhões já dá para governar o que sobra dos meus dias. Não é preciso tirar um curso de matemática para perceber isso.

A linha chegou ao fim. Fartei-me. Pensei que podia confiar neles, que não me estavam a enganar, apesar de terem sido sempre bem claros, afirmando com a seriedade que um intercomunicador pode transmitir, de que iam referir o meu nome quando fosse necessário e precisassem de um álibi. Mas não! Até hoje, nada. E leio os jornais todos, dia após dia. Não são eles que me vão agora acusar que os defraudei, com isso não tenho de me preocupar. Dinheiro não lhes falta. Para esses senhores, isto é uma pequeníssima migalha. E ninguém sabe quem sou, não há provas.

Contas. Dificilmente gasto uma nota destas por semana, mas suponhamos que gasto uma. São dez mil semanas. Ora vejam, um ano tem cinquenta e duas, por isso é só fazer as contas. Não estou cá essa vida, nem pouco mais ou menos. É certo que deixo algum aos amigos chegados, companheiros em dificuldades ou com necessidades prementes. Tenho de me lembrar que tenho de o deixar escrito nalgum sítio, pode-me dar um treco de um minuto para o outro e ir desta para melhor, e ninguém vai saber que os meus desejos eram esses. Mais a família, que também precisa. Mas não posso dar muito nas vistas, não vão as pessoas achar que me saiu a taluda. Depois já se sabe como é que é, não me largam, e daí até vir a polícia é um instantinho, levam-me logo para averiguações. Tiram-me aquela fotografia que se vê nas séries de criminologia e venho de lá com os dedos todos pretos. Raio! Por isso, o melhor é não contar a ninguém, que ando nestas andanças. Porque não ando, na realidade, este assunto termina aqui. Quanto ao outro, dos pacotes que entregava sem levantar fervura, também não se vão estar agora a preocupar com questões dessas. Já foi. Ninguém soube, não quiseram dizer que era eu, agora já é tarde para isso. É deixar que os outros sejam acusados e que venham nas parangonas dos jornais, que eles gostam sempre de aparecer, enquanto cruzam as ruas da Baixa nos seus cadilaques.

Portanto: bico calado! E se por ventura alguém ler isto, não vai ser fácil porque vou escondê-lo bem, espero que faça o mesmo.

Já sei, vou guardá-las naquela caixa de sapatos e deixo-a dentro do armário, assim como quem não quer a coisa. Vivo num lugar esquecido, não há de vir aqui ninguém. E assim, como não tenho grandes aflições, vou-me servindo à medida das necessidades, não preciso de mexer uma palha nem de ir aos bancos. Pode ser que um dia, entre um século e o outro, precise de adquirir um telhado novo.

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