h | Artes, Letras e IdeiasCinestesias I António de Castro Caeiro - 11 Jan 2019 [dropcap]É[/dropcap] dos conceitos mais fascinantes da fenomenologia de Husserl. Hoje, fala-se também de propriocepção, uma percepção do próprio ou na formulação clássica de Kant: percepção. A palavra latina dizia: animadversio: viragem para a alma ou para o espírito. A cinestesia em Husserl é uma percepção do movimento e da mudança. Ao olhar através da janela de um veículo pelo qual somos transportados, vemos tudo parado no seu interior, quando o exterior, todo ele, está em movimento. As árvores, os candeeiros, os objectos inamovíveis parecem estar em movimento, os carros na faixa contrária passam por nós a uma velocidade extraordinária. O juízo não crítico seria: nós estamos parados e tudo o mais está em movimento. Mas percebemos que somos nós que estamos a ser deslocados, nós estamos em movimento, e o movimento da nossa deslocação efectiva produz um movimento aparente dos objectos que estão parados. O nosso ponto de vista, aponta a alvos que podem parecer estar em movimento e estão parados e vice versa há objectos que parecem estar parados e estão a mover-se. A nossa perspectiva está continuamente a alterar-se, a ser ganha e a ser perdida, a transformar-se. Pegamos nela para ter um horizonte. Deixamo-la cair. Voltamos a ganhar perspectiva noutros tempos e noutras circunstâncias. A nossa experiência está continuamente a sintetizar descontinuidades temporais e descontiguidades espaciais. Todos os objectos da carruagem do comboio estão parados aparentemente. E, contudo, é o comboio e as suas carruagens que estão em movimento. Mas não só. Se olhar para uma mosca a voar, percebo os espaços que se constituem em segmentações paralelas atrás da mosca até à parede e entre a mosca e o meu nariz. Ela voa rapidamente da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, de cima para baixo e de baixo para cima, aproxima-se e distancia-se. Mas onde ela aparece é um ponto absolutamente descontíguo. É o contínuo temporal que liga a mosca ao longe, em direcção do canto superior esquerdo do tecto com a mosca perto, à minha frente, sem eu perceber as linhas que esboçou até estar de novo próxima de mim. Ao mesmo tempo, toda a sala se metamorfoseia catastroficamente. A parede lá ao fundo desloca-se no seu todo, toda ela, da direita para a esquerda, quando a mosca voa da esquerda para a direita. Desfoca-se e duplica quando fixo a mosca. Volta a ficar focada quando fito a parede e a mosca duplica-se, porque eu entorto os olhos. É também assim que provocamos uma alteração nos conteúdos percepcionados: ao olhar para qualquer lado incutimos na cena perceptiva uma alteração. O mesmo se passa quando viramos a cabeça, nos viramos para a esquerda e para a direita, nos levantamos e sentamos, deitamos e pomos de pé, quando andamos, corremos, paramos. Há uma composição contínua entre o que é um produto da imaginação ou da fantasia e o que é efectivamente realidade. O que é efectivamente realidade é composto, colmatado nas suas lacunas, com uma composição irreal. Movimento e inércia, transformação e inalteração estão continuamente a dar-se. Mesmo o que aparentemente é o mesmo está em mutação contínua. Percebemos o romper do dia e o cair da noite com uma alteração das condições de luminosidade: clarear e escurecer, mas também esfriar e aquecer. O dia seguinte dá-nos a secretária como a deixamos no dia anterior. O escritório é encontrado como sempre o temos encontrado, o mesmo se passa com praias, sítios onde não vamos há muito tempo ou só lá fomos uma única vez. A última vez da apresentação de um sítio é ligada com a primeira vez que voltamos a ver essa apresentação: alguém, uma coisa, uma paisagem, nós no espelho. Tudo pode estar no mesmo sítio e não apresentar indícios da sua alteração. E, contudo, são momentos diferentes do tempo que estão a ligados entre si e com essa ligação também o meu quarto de ontem é percebido como o meu quarto hoje, alguém na semana passada é percebido como alguém nesta semana, mas a outra pessoa da semana passada, de ontem ou de hoje de manhã não é dada agora neste instante do mesmo modo nem da mesma maneira. Eu agora não sou o mesmo de há pouco. Nem os outros nem as outras coisas. E a ligação faz-se não se sabe bem como. A cinestesia compõe a realidade. Liga movimento ao repouso, temos diferentes no mesmo sítio e sítios diferentes no mesmo sítio. E a propriocepção, a percepção de si? Estou sempre eu a acompanhar todos os sítios onde vou? Quando durmo acompanho-me? Quando perco os sentidos, quando me distraio, quando perco a atenção, quando não estou “lá” e estou “longe”, o meu eu acompanha todas as minhas representações, como diria Kant? E os estados de espírito com que vivi momentos da minha vida, fiz experiências, tive começos e fins, será que os acompanho? Ser eu é diferente agora e na infância ou juventude. Sermos nós é diferente ao longo das horas do dia, dos dias da semana, dos meses do ano, dos anos e das épocas da vida. Temos a sensação de que somos os mesmos e de que tudo pode mudar. A mudança não é a deslocação no espaço ou o movimento motor. É outra coisa. Não temos bem a percepção de ter mudado, de como a mudança altera a nossa maneira de vermos quem somos e de vermos os outros. Pensamos ou podemos pensar que tal como as árvores e os candeeiros parados dão a sensação de que estão a mover-se e nós é que estamos parados, podemos pensar que é tudo o resto que muda, todos os outros que são diferentes, e nós próprios somos os mesmos, não mudamos. E pode ser o contrário: podemos achar que mudamos, que sofremos experiências que nos alteraram o âmago do nosso ser, que tudo é agora diferente do que foi e não sabemos muito bem já quem somos, no que nos tornamos. Mas os outros não são bem quem foram. Outros há que são o mesmo e relativamente a eles somos também os mesmos. Mas que identidade é essa na mutação, no movimento, na alteração, na mudança? Qual é o próprio de si para cada um daqueles que conhecemos? Como temos uma apercepção do próprio que é cada um de nós na relação com todos os outros, conhecidos e desconhecidos?