h | Artes, Letras e IdeiasLEVINAS – terceiro movimento Paulo José Miranda - 20 Mar 2018 [dropcap style=’circle’] P [/dropcap] ara Levinas, toda a filosofia é a história do egotismo. A filosofia pensa o si mesmo, o Mesmo e não o Outro, a Totalidade e não o Infinito. A filosofia moderna e contemporânea, desde Descartes, é uma filosofia da subjectividade do Eu. A subjectividade em Levinas parte do Outro. E, segundo o filósofo lituano, só uma filosofia que se funde na alteridade absoluta pode dar resposta ao enigma da existência no existente. O que mais atormenta o humano é ser. Levinas escreve em De l’Existence à la Existant: “O medo do nada não é senão a medida do nosso envolvimento no Ser. A existência de si mesmo abriga algo trágico que não deriva apenas da sua finitude. Algo que a morte não pode resolver.” Não é pelo horizonte da nossa morte que o nosso medo do nada aparece. O nosso medo do nada aparece porque, antes de mais, o Ser nos sopra a sua existência. Antes do nada ou da morte, sentimos em nós o Ser. O Ser faz-se sentir em nós anonimamente, através daquilo a que Levinas chama “il y a”, o há. Há coisas, há pessoas, há o mundo. Este há indefinido cai-nos em cima como se fosse um fim do mundo. Levinas diz mesmo que as expressões “o mundo a acabar” ou “o mundo ao contrário”, apesar de banais, são expressões que mostram um sentimento que é autêntico. A vertigem do há vai empurrar-nos, não para um “puro ego” ou para a morte, mas para um estado anónimo de ser. A existência não é sinónimo de relação com o mundo; ela é antecedente ao mundo. Na situação de um fim do mundo, a relação primária que nos liga ao Ser torna-se palpável. O mundo a acabar depõe-nos não na nossa morte, isto é, na inevitabilidade da nossa morte, mas no anonimato do ser. A imagem que Levinas encontra para descrever esta situação é a da noite. Na noite não há formas, pois é a luz do dia, com a sua claridade, que possibilita a visibilidade das formas. Mas “à noite todos os gatos são pardos”. Levinas recorda a noite na infância, o medo do quarto escuro, que com o seu silêncio aterroriza a criança. O ser anónimo, o “il y a” (há) é como a noite que aterroriza a criança. Traça-se aqui a luta pela entre existência e existente, a luta pela individualidade, pela saída do anonimato e assumir o seu nome próprio. Passamos a ser através de uma evasão de ser. Ou seja, passamos a existir através de uma evasão do há. A consciência de si é uma primeira evasão. Um evasão do há através da consciência de que é. Outra evasões irão ocorrer ao longo da existência. A existência, aliás, é a história pessoal de contínuas evasões. A primeira é a evasão do anonimato, da noite onde todos os gatos são pardos. A evasão do anonimato para se ser o nome e o corpo que se é. Evasão é um termo fundamental em Levinas, e embora o tenhamos usado aqui antes, ele será cunhado somente depois de De L’ existence à la Existant, no livro Da Evasão. Mas aqui já vamos encontrar outras evasões. Aqui o humano já não luta contra o anonimato, mas contra si mesmo, contra o seu sujeito. O humano quer evadir-se de si mesmo, à imagem do prisioneiro que quer evadir-se da condição de prisioneiro de guerra. Efectivamente há um movimento prévio a esta filosofia, uma experiência pré-filosófica, como Fernanda Bernardo nos transmite, no seu artigo “A Assinatura ético-metafísica da experiência do cativeiro de Emmanuel Levinas”: “(…) a experiência do cativeiro terá sido a experiência pré-filosófica que terá determinado e decidido a orientação filosófica de Emmanuel Levinas – ela terá ditado ou inspirado a Levinas, quer a orientação ético-metafísica que ele virá a imprimir à sua filosofia e à filosofia – orientação que tem implícito um repensar meta‐ontológico‐filosófico da própria ética, lembremo‐lo também, que vai no sentido de repensar a própria eticidade da ética dela fazendo a prima philosophia –, quer a incondição ético-metafísica que ele outorgará ao humano verdadeiramente humano.” (Revista Filosófica de Coimbra – nº 41, 2012, p. 120) E aquele que deseja evadir-se não procura uma evasão no espaço, uma mudança de lugar, mas uma mudança de si mesmo, literalmente um deixar de ser. Deixar de ser, para que possa aceitar o infinito que o visita. Deixar de ser no sentido em que aceita o apelo do além como estrutura fundamental do si mesmo. Aquele que se evade não sabe para onde vai, sabe apenas que vai, que quer ir. Há dois modos de evasão: o movimento que nos remete continuamente para um lá fora, que não é pura exterioridade, mas tão somente ilusão de exterioridade; e o movimento que nos remete continuamente para a interioridade que, paradoxalmente é pura exterioridade, pois nos lança no Infinito, que é exterioridade pura. Esta exterioridade pura é o desejo metafísico a manifestar-se no humano. O rosto, podemo-lo dizer agora, significa o Infinito. E o desejo metafísico, que nos lança na direcção de além mais, não ambiciona um regresso a casa, um regresso ao rosto da origem. “O desejo metafísico tem outra intenção – deseja o que está para além de tudo o que pode simplesmente completá-lo.” (TI, p. 20) O Rosto lança-nos para o absolutamente Outro através do desejo metafísico. Porque “a metafísica deseja o Outro para além das satisfações sem que da parte do corpo seja possível qualquer gesto para diminuir a aspiração, sem que seja possível esboçar qualquer carícia conhecida, nem inventar qualquer nova carícia. (…) Morrer pelo invisível – eis a metafísica.” E metafísica, está bem de ver, não é interioridade, mas pura exterioridade, porque o ser se vê a si mesmo como irredutível a si, transcendente. Aliás, que há de mais exterior do que o que não se vê, do que o que não há, se não em forma de querer? Estamos face a um projecto de pensamento da exterioridade – tal como o subtítulo de Ética e Infinito diz: Ensaio Sobre a Exterioridade –, de uma exterioridade radical, como Levinas nos alerta logo no prefácio do livro. A metafísica é exterioridade radical e esta é outra face de transcendente. “A exterioridade absoluta do termo metafísica, a irredutibilidade do movimento a um jogo interior, a uma simples presença de si a si, é pretendida, se não demonstrada, pela palavra transcendente. O movimento metafísico é transcendente e a transcendência, como desejo e inadequação, é necessariamente uma trans-ascendência.” Já na República, Platão se refere a esta trans-ascendência, ainda que com outras palavras: “Sou incapaz de admitir que haja outro estudo que faça a alma olhar para o alto, a não ser o que se refere ao real que é o invisível.” (529b) O humano é “puxado” para cima pelo desejo metafísico, para o infinito, para o Outro absoluto. Não é Deus que puxa o humano para cima, mas o desejo do que não há, o desejo do que não chega, o desejo de infinito, que não cabe em nós, porque vem do Outro. E este absoluto Outro não faz número comigo, é Outrem. “A colectividade em que eu digo ‘tu’ ou ‘nós’ não é um plural de ‘eu’. Eu, tu, não são indivíduos de um conceito comum. Nem a posse, nem a unidade do número, nem a unidade do conceito me ligam a outrem.” (p. 25) O Outro é irredutível a mim, assim como o é o infinito. O que está aqui em causa é pensar o infinito, Deus, a transcendência para além do mundo. Por conseguinte, Deus também não é Deus, isto é, não é o Deus que usualmente pensamos como Deus, quer seja em sentido filosófico quer seja em sentido religioso. Deus tem de ser pensado fora do mundo, fora da relação de causalidade. Deus não é causa do mundo. Ser causa do mundo é ser parte do mundo. Deus é o absolutamente outro, irredutível ao mundo e ao seu significado. E pensar “para além do mundo” – expressão que remete para o conceito de Bem em Platão – é pensar eticamente.