Manchete ReportagemSaúde | Tatuadores operam sem fiscalização e licenças especiais Andreia Sofia Silva - 4 Jan 20174 Jan 2017 Em Macau, as lojas de tatuagens abrem portas sem uma licença específica, enquanto nas redes sociais proliferam páginas de tatuadores que se oferecem para fazer o trabalho em casa, sem qualquer fiscalização. Tatuados e tatuadores pedem legislação que garanta a higiene e o controlo de doenças [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]iago ostenta num dos braços uma tatuagem feita em Macau há alguns anos, numa loja que, no fim de contas, não era bem uma loja. Tiago nem sequer sabe se essa loja, localizada no rés-do-chão de um prédio, tinha licença para ter as portas abertas. “É uma habitação que foi alterada para ser uma loja de tatuagens, mas não sei se tem autorização ou não. Não sei se tem licença, é uma espécie de apartamento T2 localizado no rés-do-chão, sem qualquer publicidade ou visibilidade cá para fora. Só quem sabe é que lá vai.” A experiência vivida por Tiago, fotógrafo e designer, radicado no território há alguns anos, é comum para quem decide fazer uma tatuagem em Macau. Se é verdade que, nos últimos dois anos, houve vários espaços a abrir portas, com alguma qualidade, a verdade é que continua a não existir legislação específica para esses serviços. Não existem, assim, quaisquer regras quanto à legalização do espaço, a utilização de materiais e equipamentos ou até quanto à idade mínima para fazer uma tatuagem. É comum vários tatuadores – chineses, portugueses ou filipinos – promoverem o seu trabalho nas redes sociais e realizarem tatuagens em casa do cliente, sem que haja qualquer fiscalização. Tiago teve um pequeno azar, que poderia ter sido grande: após ter feito a tatuagem, teve uma pequena infecção, que tratou em casa. “A minha tatuagem tem vindo a perder a cor e quando fiz os retoques finais infectou um pouco em algumas partes. Não fui ao hospital, desinfectei em casa com água e um creme. Se fosse mais grave, talvez tivesse de ir ao hospital.” É por isso que defende que deveria haver uma legislação específica para um sector que está a crescer e que vive no vazio em termos legais. “Penso que as coisas deviam ser abertas e legalmente mais fáceis, também não sei se é fácil ter licença para isso. Devia haver uma maior fiscalização e alguma licença especial, porque é um trabalho quase cirúrgico, são usadas agulhas. Se a tatuagem não for bem feita é uma maneira de transmitir doenças, até mortais. Como é óbvio, o Governo devia fiscalizar e andar mais em cima disso. Da parte das pessoas que fazem tatuagens, deviam investir mais em material de topo, investir na qualidade, para que os trabalhos sejam melhores”, sustenta o fotógrafo e designer. Uma espécie de cosmética A falta de legalização dos tatuadores e das lojas não é um problema exclusivo em Macau. Em Hong Kong, o panorama é semelhante e é bastante fácil encomendar um trabalho deste género através das redes sociais. Em Portugal chegou a existir um projecto de lei na Assembleia da República, que não avançou. Um estudo de 2016, elaborado pela Comissão Europeia, mostra que é escassa a legislação sobre tatuagens e a formação de quem as faz. Há 60 milhões de europeus com tatuagens no corpo, mas ficou provado que 60 por cento dos pigmentos usados em tintas são “azo” pigmentos, ou seja, com o passar do tempo poderão originar problemas cancerígenos. Muitas das tintas não são, sequer, fabricadas apenas para a realização de tatuagens. Mandarim Wong, que há dois anos abriu a ZZ Tattoo, aprendeu a tatuar com um amigo. Por norma recebe um cliente a cada dois dias, tendo falado de um mercado que, apesar de recente, já está saturado. “Há muitos artistas que prestam serviços na casa dos clientes e levam o seu próprio equipamento. Não têm lojas e não é difícil encontrar este tipo de tatuadores. Existem muitos. Em Macau não é preciso licença para ser artista de tatuagens. O Governo também não exige licença. Sou uma tatuadora e não tenho qualquer licença, porque é difícil ter uma licença própria para este sector”, contou ao HM. “Em Hong Kong, na China e em Macau as lojas de tatuagem não precisam de uma licença específica, e muitas têm licenças como se fossem lojas de cosmética”, referiu Mandarim Wong, que defende, contudo, ser necessária alguma regulamentação. “Concordo que é preciso alguma legislação para regular o sector das tatuagens porque, para fazer uma tatuagem, é necessária uma anestesia, e esse é um tipo de medicamento. Sei que houve clientes que sofreram algumas alergias cutâneas depois de fazer tatuagens.” Grace Punx, da Muse Tattoo, também defende novas medidas. “Pensamos que o Governo poderia providenciar algum tipo de licença como uma opção para as lojas de tatuagens, por forma a mostrar aos clientes que seguimos padrões profissionais em termos de segurança e higiene.” Nesta loja, em operação desde 2014, “todos os tatuadores são profissionais treinados que seguem padrões de higiene semelhantes aos das lojas do Reino Unido ou dos Estados Unidos”. Quanto ao equipamento, “é esterilizado antes e depois da sua utilização”, confirmou Grace Punx. Rui Furtado, médico cirurgião e ex-presidente da Associação de Médicos de Língua Portuguesa, também defende a implementação de regras. “Penso que deveria haver uma supervisão para esse tipo de actividade. Agora, como poderá ser feita não faço ideia, uma vez que eles não são médicos, enfermeiros ou pessoal de saúde. Pelo menos deveria ser feita uma supervisão aos locais onde se fazem as tatuagens, pelos Serviços de Saúde. Julgo que é difícil controlar isso.” O HM inquiriu os Serviços de Saúde e o Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM) quanto à atribuição das licenças. Apenas o IACM confirmou que não atribui licenciamento a este tipo de lojas. Até ao fecho desta edição não foi possível obter uma resposta por parte da direcção de serviços liderada por Lei Chin Ion. “A qualidade não é nada de especial” Apesar de estarmos perante um mercado em crescimento, a verdade é que a qualidade das tatuagens continua a não ser a desejada por muitos dos aficionados. Susana Torres, designer, é peremptória: “Em Macau fiz uma tatuagem há 15 anos e fiquei tão mal servida que nunca mais tive coragem de repetir. A maioria que fiz foi em Hong Kong.” “Em Hong Kong a oferta é imensa, os artistas são vários e de muito talento. O meu tatuador, por exemplo, é da África do Sul. Existem lojas de tatuagens em Hong Kong em que a lista de espera é de quase um ano para certos artistas. Em Macau há casas de tatuagens há muitos anos, mas são muito fracas”, acrescentou a designer. Susana Torres põe completamente de parte a possibilidade de atravessar as Portas do Cerco para fazer este tipo de trabalhos, mas garante que há muitas pessoas a procurarem Zhuhai para fazerem algo mais ligado à cosmética, como sobrancelhas permanentes. “Antes de fazer uma tatuagem, e se estou num sítio que não me é familiar, tento ver primeiro o traço do artista. Aqui em Macau, até há pouco tempo, não havia nenhuma loja em que eu confiasse o meu corpo, pois os traços que apresentavam eram realmente muito fracos. Os tatuadores safam-se em termos básicos e pouco mais.” Apesar de referir algumas lojas recentes com um nível mais superior, Tiago defende que “a qualidade não é péssima, mas não é nada de especial, se compararmos com Hong Kong e com o que estamos habituados a ver na Europa ou até em Taiwan, na Tailândia. Esses trabalhos não se comparam nada com o que é feito aqui. Muitas vezes não se investe no material, nas tintas.” Jorge Tavares, jogador de futebol, tem tatuagens em várias partes do corpo, muitas delas feitas em Portugal. Nunca fez uma tatuagem em Macau, nem pensa fazer. “Conheço pouco a situação em Macau. Colegas meus e pessoas conhecidas optam por ir fazer tatuagens em Hong Kong, os valores são mais elevados mas vale a pena pela qualidade do trabalho. Ainda há o receio de tatuar em Macau. Ainda há muita coisa para explorar. Dificilmente farei uma tatuagem aqui, é uma área que não é muito explorada. Não há o passa-palavra em termos de qualidade e higiene. Aqui temos pessoas com tatuagens e sem grande conhecimento da matéria”, disse ao HM. Susana Torres acredita que, em termos de fiscalização de qualidade e até de higiene, cada pessoa deve escolher bem o seu tatuador. “Há imenso pessoal que publicita o trabalho no Facebook e que faz tatuagens em casa. O fazer uma tatuagem em casa não torna o trabalho mais perigoso. Tenho tatuagens feitas em minha casa que seguiram todos os códigos de higiene. Isso passa um pouco pela experiência de quem vai ser tatuado e saber o que se deve ou não fazer.”