Exposição | Susana Gaudêncio e Carla Castiajo no Albergue SCM

“Aqueles que nos querem falar”, exposição patente no Albergue da Santa Casa da Misericórdia, junta trabalhos de duas artistas portuguesas que trabalham materiais distintos com mensagens muito próprias. Carla Castiajo tem formação em joalharia e faz peças com cabelo humano, enquanto Susana Gaudêncio opta por trabalhar questões políticas e da linguagem. Um casamento artístico bem-sucedido

 

Na cabeça de Mafalda Santos, curadora da exposição “Aqueles que nos querem falar”, patente no Albergue da Santa Casa da Misericórdia (SCM) até ao dia 30 de Setembro, fez sentido casar as peças de Susana Gaudêncio com as de Carla Castiajo e formar uma espécie de unidade criativa pousada sobre algumas diferenças.

O HM conversou com ambas as artistas no sentido de perceber diferenças e semelhanças entre Susana Gaudêncio, uma artista portuguesa contemporânea com formação feita em Lisboa e Nova Iorque, e Carla Castiajo, mais virada para a joalharia, e que um dia percebeu que podia fazer arte com fios de cabelo humano.

“O que se estabelece desde logo é a ideia de que ambas fazemos objectos em que há sempre uma relação implícita com o corpo”, começa por dizer Carla Castiajo, que levou a Macau trabalhos que remetem para a ideia de uma conexão com o corpo.

“Muitos dos objectos dá para colocar no corpo, e no fundo o cabelo é sempre algo retirado de um corpo, ou que sai do corpo, e a partir do momento em que é cortado pode-se transformar em material, que depois eu trabalho. Esse objecto que construo tem sempre o potencial de ser novamente colocado no corpo, criando-se novos diálogos”, explica a artista.

Carla Castiajo apela a que o público veja de perto as peças patentes no Albergue para poder criar uma relação próxima com aquilo que é exposto, e que vai muito além das redes sociais e das fotografias desses mesmos objectos. “É muito importante ver a exposição pessoalmente porque as imagens nunca conseguem captar o cabelo como material. Cada vez há mais pessoas que vêem os objectos através das redes sociais e muitas vezes não se deslocam para ver os trabalhos, mas no caso específico do meu trabalho é importante observar aquilo que provoca.”

E as reacções face a fios de cabelo que já tiveram vida podem ser muitas, desde surpresa até a medo. “É um trabalho com muitos contrastes e é um material que tanto é atractivo como repulsivo. É um material bastante íntimo, mas que está entre a vida e a morte, porque é considerado um material morto, mas também tem uma parte viva, porque está conectada com a cabeça, sendo o cabelo muito usado em rituais de purificação, por ser considerado um material sujo. Há pessoas que têm fobia do cabelo, que querem tocar, e outras que não o conseguem fazer. Mas nunca ficam indiferentes a algo que já não pertence ao corpo de origem”, explicou.

Histórias do cabelo

Carla Castiajo fez diversas formações em joalharia e seguiu a carreira académica, tendo um doutoramento feito na Estónia em que explora, precisamente, o uso do cabelo como material para fazer arte. A tese de doutoramento intitula-se “Purity or Promiscuity? Exploring Hair as a Raw Material in Jewellery and Art”.

Tudo começou quando Carla procurava um tecido muito fino, acabando por perceber que era possível moldar o cabelo construindo outras formas.

“Estava na minha mesa de trabalho, caiu-me um fio de cabelo e decidi experimentar. Percebi que o fio era bastante resistente e resultou bastante bem. Esse foi o primeiro impulso, o descobrir a potencialidade inerente ao material.”

Carla Castiajo descreve “o simbolismo e potencial” ligados ao cabelo humano, algo que “foi bastante utilizado em joalharia no século XIX e como fio para bordar”.

“Se virmos, o cabelo é um fio, mas está cheio de significados, e mesmo na ausência percebe-se que teve alguma existência. Há algo anterior que está implícito, é um cabelo que veio de alguém com a sua própria identidade e que tem memória”, acrescentou.

Aliás, “no século XIX o cabelo era muito usado como forma de preservar a memória de alguém querido ou da pessoa amada”, frisou a artista.

Simbologia do gesto

No caso de Susana Gaudêncio, que levou duas peças para esta mostra, “Duelo-Dilema” e “Abracadabra”, houve a preocupação de “identificar gestos e formas que falem de questões políticas”, em que se “invoca e revela um potencial encantatório da linguagem e da imagem, como instrumentos de persuasão”, contou a artista ao HM.

Em “Abracadabra”, um trabalho de animação, Susana Gaudêncio trabalhou com imagens de “vídeos de políticos a discursar”. “Olhei sobretudo para os gestos das suas mãos. Depois fiz um vídeo e imprimi cada frame, pelo que foi um processo evolutivo entre o analógico e o digital. Imprimi todos os frames, voltei a desenhar e a pintar, para descobrir mais, a partir do desenho e da pintura, movimentos que nem sempre estão tão óbvios. Esse filme fala sobre isso, sobre essa encenação política do gesto quando se fala”, explicou.

Por sua vez, “Duelo-Dilema” é uma instalação com 65 esculturas em gesso, “tantas quantas as letras do poema mágico Abracadabra”, com origem hebraica, pelo que aqui há uma interconexão entre as duas peças, trabalhando-se os gestos e fazendo-se “uma espécie de acto performativo da construção do poema através de pequenos objectos”, que são ainda “formas que evocam símbolos”.

Susana Gaudêncio, também com uma carreira académica ligada à Universidade do Minho, interessa-se pelas chamadas “máquinas de imaginar”, algo que descreve como sendo “uma espécie de sinónimo da utopia”, a possibilidade de imaginar novas coisas e não “tanto a coisa concretizada”.

Há, portanto, no trabalho de Susana Gaudêncio “o impulso de olhar para as coisas como se fosse a primeira vez, ou de tentar imaginar sempre a partir do real onde vivemos, e a partir daí podermos imaginar outras coisas, a partir do nosso presente”.

Licenciada em Pintura pela Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, Susana Gaudêncio fez depois um mestrado em Belas-Artes onde teve a possibilidade de abrir os seus próprios horizontes. “O que Nova Iorque me deu foi ferramentas para olhar as coisas com uma perspectiva e pensamentos críticos. E quando falo em crítico falo da ideia de colocar as coisas em crise, o que questionar. Senti que em Portugal não conseguia obter todas as ferramentas necessárias para poder fazê-lo.”

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