Comércio com o inimigo

– É este o título de um conto de José Rodrigues Miguéis a que deve homenagem a língua que falamos, mas atenção, que não seja contemplado entre as prerrogativas da selva dos escreventes actuais demasiado ufanos no contar de suas histórias que não nos interessam para nada. Os escriturários acham que são coisas fenomenais dado que sentem muito, gesticulam bastante, e só não choram dado que o dom das lágrimas lhes foi subtraído, e é por causa dessas coisas risonhamente emplastradas que as belas Oblatas, pequenos grandes poemas, irrompem como plano de fuga quando queremos dissociar-nos destas dores secas, mentais e constrangidas. Esta gente já não chora, tem problemas psicológicos, dramas imaginários, e uma longa e torrencial chatice com os emplumados egos. Mas, e o que nos traz este comércio com o inimigo no tempo da taxação?

– José Rodrigues Miguéis era filho de galego, e sabemos da expressão trabalhista que está associada a esse território, ainda hoje em português há aquele velho ditado: -trabalha como um galego!- Ora, nesse velho tempo, os portugueses também trabalhavam imenso, mas devido a práticas esmorecentes pareciam estar parados. Começa este conto no Solar dos Machados com um quase quimérico grupo literário em uma não menos quimérica literatura de viagem onde parece encontrarmo-nos com Garrett no outro lado do vitral aconchegando as tranças de Joaninha, onde ainda pensavam ainda estar em Ática. Ele descreve com inigualável dimensão social o abastardamento dos agricultores e fidalguia decadente nas paisagens abundantemente ricas onde todos não passavam afinal de um viveiro de pobres.

– Se acharmos que estamos a ser sancionados, esqueçamos: «a grande riqueza de outrora_ que pagava às garridas lavradeiras, essa, desapareceu, esbulhada dos mercados. Tudo agora, é pitoresco de fachada para turistas, e nostalgia de melhores tempos… Que ninguém já se lembra de ter conhecido». Nem taxados nem sancionados, que nós estamos no Solar dos Machados à espera de um ouro qualquer que sempre há-de vir, que a nossa produtividade é má e os galegos nos ajudam a interpretar a incapacitante realidade, e que Trump também não faz farinha nos moinhos de vento da Ibéria.

– Nós não sabemos efectivamente por quais fissuras nasceram tantos fascismos, mas isso agora não interessa. Nasceram por aqui onde já tinham habitado, e bastou uma revoada de preceitos intempestivos para os trazer de novo muito «Hugo Boss» para os atavios ridículos e grande ausência de esperança. O que os espera no novo diletantismo é qualquer coisa que devemos observar enquanto prática sociológica, e nunca esquecer o beijar da mão cadavérica de uma Inês de Castro. É claro que Miguéis não ficou por cá, um curto-circuito com o Estado Novo levou-o exactamente aos Estados Unidos, e bem interessante é agora pensar que alguma singular premonição o atirou neste instante para um domínio que o realismo burocrático não soube adivinhar.

– Vamos ter que nos entender com o inimigo. Grandes assombros são oportunidades que rectificam o que deixámos de validar por não nos termos esforçado na direção de um bem comum, que isso é comércio, essa coisa que precisa de muitos mapeamentos mas que bizarramente alguém toma e embrulha. Miguéis pode ser-nos muito vantajoso neste conto emblemático escondido no tempo, que ao aderir ao Partido Comunista Português pouco antes de partir para a América, talvez nos insufle de legado premonitório.

– A querida Europa, essa, também achava que a guerra tinha acabado, seria então só futebol, finanças e comércio, mas eis senão quando anda agora para aí toda espavorida com “kits de emergência” numa ininterrupta hora do chá que diz serem cimeiras.

A querida Europa, essa, também achava que a guerra tinha acabado, seria então só futebol, finanças e comércio, mas eis senão quando anda agora para aí toda espavorida com “kits de emergência” numa ininterrupta hora do chá que diz serem cimeiras.

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