Entrevista MancheteChristian Montag, Instituto de Inovação Colaborativa da UM: “A IA não consegue imitar o toque humano” Andreia Sofia Silva - 17 Dez 2025 Pode a inteligência artificial ajudar a combater a solidão? A questão foi analisada num estudo da Universidade de Macau, dirigido pelo académico Christian Montag. O director do Instituto de Inovação Colaborativa sublinha que as ferramentas de IA “não são soluções a longo prazo” a nível psicológico De que forma a inteligência artificial (IA) pode ajudar a contornar sensações de solidão, se as redes sociais não conseguem atingir esse fim? A “teoria das necessidades e gratificações” afirma que a tecnologia só pode ter sucesso se o seu uso satisfizer necessidades humanas, como, por exemplo, a necessidade de interação social. Com os companheiros de IA, quer como produtos autónomos, quer integrados em plataformas de redes sociais, atingimos um novo patamar, porque os seres humanos passam a conversar com uma pessoa artificial e não com outra pessoa humana, como acontece nas redes sociais. Surgem problemas específicos com estes novos companheiros de IA, em que há sistemas de IA excessivamente agradáveis e encantadores que não desafiam as visões enviesadas do mundo de uma pessoa. Além disso, muitas pessoas em todo o mundo já se tornaram excessivamente dependentes destes produtos, utilizando-os sem reflexão crítica. Uma das conclusões do vosso estudo é que a IA não consegue, por si só, resolver sentimentos de solidão. Que passos na investigação foram seguidos para chegar a esta conclusão? Existem estudos bem conduzidos que mostram que as interações com companheiros de IA podem, de facto, reduzir sentimentos de solidão. Não duvidamos destes resultados nem negamos o potencial que pode advir dessas interações entre o ser humano e a IA, desde que tais sistemas sejam concebidos de forma segura e quando não há um humano disponível. Dito isto, acreditamos que essas interações entre humanos e IA não representam uma solução a longo prazo. Porquê? Isso deve-se à ausência de contacto social e da presença real de outro ser humano quando se recorrem a companheiros de IA baseados em modelos de linguagem de grande escala, especialmente em momentos de desespero. Revimos uma vasta literatura que demonstra que precisamos levar a sério a nossa herança evolutiva, com a necessidade real de outros seres humanos, particularmente na era da IA. A nossa perspectiva baseia-se em muitos anos de investigação na área da neurociência afectiva. Ainda assim, é claramente necessário desenvolver mais estudos empíricos novos que abordem directamente as interações com IA e sustentem esta visão. Corremos o risco de a IA provocar mudanças cognitivas profundas nas pessoas. Em que medida? Podemos mudar enquanto seres humanos, especialmente no que diz respeito à necessidade que temos dos outros? A mesma discussão surgiu com o aparecimento dos smartphones. Importa notar que essa discussão mais antiga ainda não foi resolvida: o que acontece ou aconteceu às nossas capacidades cognitivas quando passámos a externalizar permanentemente a aprendizagem de números de telefone, a orientação de A para B, entre outras tarefas, para uma máquina? Uma investigação recente do MIT [Massachusetts Institute of Technology] sugere que o cérebro fica menos activado quando é utilizado o ChatGPT para tarefas de escrita, em comparação com a escrita sem esse apoio. Para mim, isto não é surpreendente e também não deveria conduzir a pânicos morais. Temos outros problemas mais urgentes, como quando surgem dificuldades reais quando aumentam as desigualdades na sociedade, isto porque algumas pessoas utilizam a IA e outras não investem nesta área. Quais os impactos concretos? Algumas pessoas poderão tornar-se muito, muito produtivas em breve, enquanto aquelas que não forem educadas para usar a IA adequadamente não conseguirão acompanhar [o ritmo]. Curiosamente, observámos em investigações recentes que pessoas com um estilo de aprendizagem profundo estão mais dispostas a envolver-se com a IA para se tornarem mais produtivas. Quanto à pergunta sobre se mudamos em relação à nossa necessidade dos outros, duvido muito disso, pois estes impulsos evolutivos estão geneticamente ancorados na nossa espécie e não podemos simplesmente eliminá-los. As necessidades sociais são uma parte essencial do que significa ser humano. Estas mudanças cognitivas, a ocorrer, podem ser mais significativas nos jovens do que nos adultos, por exemplo? Questão interessante. Sabemos, a partir de alguns estudos sobre atitudes em relação à IA, que os utilizadores mais jovens tendem a ter visões mais positivas sobre a IA e, por isso, são mais propensos a adoptá-la no quotidiano. No entanto, actualmente observamos algo bastante problemático, como o facto de a IA estar frequentemente a eliminar empregos para jovens que acabam de sair da universidade. Assim, a IA parece dificultar a entrada no mercado de trabalho após a obtenção de um diploma universitário. Em outras palavras, a falta de experiência profissional torna as coisas difíceis para muitos jovens. No final, isso também pode levar a que a perceção dos jovens sobre a IA se torne mais negativa, em breve. Como devem os governos legislar ou adoptar políticas para promover uma aceitação e utilização saudável da IA na sociedade e nas escolas? Observamos abordagens muito diferentes em todo o mundo para responder à revolução da IA. Sou alemão e, na Europa, assistimos a fortes esforços regulatórios com o chamado Regulamento da Inteligência Artificial (Artificial Intelligence Act). Pessoalmente, não estou convencido de que o actual esquema regulatório europeu esteja bem planeado, pois penso que é demasiado rigoroso e que, em alguns pontos, utiliza termos juridicamente indefinidos, embora aplauda o objectivo de promover uma IA fiável e de tentar reduzir danos. Penso que a actual regulamentação da IA na União Europeia pode ir longe demais e acabar por prejudicar a economia europeia, ao sufocar uma inovação muito necessária. Mas há perigos reais associados à IA e é necessária alguma regulamentação. Que perigos? Falo, por exemplo, da fusão não regulamentada entre biotecnologia e IA que poderia resultar em danos, caso as pessoas passem a “criar” novos vírus nos seus quintais. Considero muito interessante a abordagem de Singapura baseada na aprendizagem ao longo da vida como resposta à revolução da IA. O Governo de Singapura oferece aos seus cidadãos a possibilidade de obter um grau académico em IA a partir dos 40 anos, com apoio financeiro do próprio Estado. O que gosto nesta abordagem é que precisamos de lembrar às pessoas que também é sua responsabilidade adquirir novas competências ao longo da vida. Esta mentalidade deve ser incutida desde cedo nas escolas. Em que áreas das nossas vidas os modelos de linguagem de grande escala (LLMs) podem trazer mais benefícios do que prejuízos? Existem muitas tarefas rotineiras e repetitivas em que a IA será realmente útil para os seres humanos. No entanto, sabemos pela literatura científica que os humanos experienciam o que se chama “aversão aos algoritmos”: em algumas áreas das nossas vidas, as pessoas não gostam que a IA desempenhe um papel. Por exemplo, quando falamos de terapia de casal, as pessoas preferem claramente falar com um ser humano do que com um sistema de IA. Talvez quanto mais nos aproximamos da nossa herança evolutiva em termos de cuidar uns dos outros, mais o papel da IA deva ser cuidadosamente monitorizado e reflectido, se quisermos que ela tenha um lugar aí. Pessoalmente, não gostaria de ver o meu filho a ser cuidado no jardim de infância por um robô alimentado por IA. Como deve a psicologia adaptar-se à IA, tendo em conta o número crescente de pessoas que a utilizam para esse fim? Existem diferentes perspectivas sobre este tema. Em primeiro lugar, nem toda a gente sabe que a psicologia é uma disciplina que depende fortemente de dados. Por isso, os estudantes de psicologia são treinados para se tornarem excelentes cientistas de dados. Nesse contexto, é lógico que a nossa disciplina adopte a IA como ferramenta de análise de dados. No entanto, penso que se refere à forma como os psicólogos veem o uso crescente da IA nas relações humanas. Como acontece com muitas coisas, isto é complexo. Se a IA permitir uma melhor comunicação humana, como, por exemplo, melhorando aparelhos auditivos para pessoas com problemas de audição, isso é muito bem-vindo. Se a IA substituir relações humanas, na minha perspectiva isso causará problemas. Como expusemos no nosso trabalho mais recente, neste momento a IA não consegue imitar com sucesso o toque social humano nem a presença real de outra pessoa. No Centro de Ciência Cognitiva e Cerebral da Universidade de Macau, quais são os principais projectos desenvolvidos nesta área? Dispomos de oportunidades únicas de investigação na Universidade de Macau para estudar interações entre humanos e IA, com técnicas neurocientíficas. Espero que possamos divulgar descobertas muito interessantes num futuro próximo. A humanidade ainda mora aqui Publicado recentemente na revista científica “Trends and Cognitive Sciences”, o artigo “Can AI really help solve the loneliness epidemic?” [Pode a IA realmente ajudar a resolver a epidemia da solidão?] conta com Christian Montag, director associado do Instituto de Inovação Colaborativa da Universidade de Macau (UM) como autor principal, seguindo-se os académicos Michiel Spapé, professor associado do Centro de Ciências Cognitivas e Cerebrais da UM, e Benjamin Becker, professor do Departamento de Psicologia da Universidade de Hong Kong, como co-autores. Segundo uma nota de imprensa divulgada pela UM a propósito desta investigação, uma das principais conclusões é de que a IA “provavelmente não será solução de longo prazo para a solidão humana”. Citado nesta nota, Christian Montag declarou que “se uma pessoa está solitária, anseia pela presença física de alguém próximo”, sendo que isso “é muito difícil de imitar com os chatbots disponíveis”. “Os grandes modelos de linguagem operam principalmente por meio da comunicação por texto. Claramente, isso não é suficiente para fornecer às pessoas solitárias a melhor cura para a solidão: o apoio directo em pessoa”, declarou. Segundo a Organização Mundial de Saúde, “a solidão afecta uma em cada seis pessoas em todo o mundo”, tendo sido “identificada como uma preocupação de saúde pública global”. Apesar do sinal, o estudo aponta para um lado positivo deste universo, referindo-se que “a tecnologia de IA tem um potencial significativo para apoiar os seres humanos em momentos de crise psicológica, especialmente quando a intervenção humana não está disponível”. Porém, “os investigadores defendem que a tecnologia deve ser tornada mais segura antes de poder ser utilizada neste contexto”, enfatizando “a importância de recordar a nossa herança evolutiva e a necessidade de conexões interpessoais genuínas”.