A Filosofia dos Novos Tempos

As interrogações filosóficas que surgirão ao longo deste texto baseiam-se em dados concretos, não são invenções e dependem de notícias de jornal, mas com toda a certeza não são fake news, apenas reportam o que tem vindo a acontecer na segunda década do século XXI na República Popular da China.

A China é líder no mercado da tecnologia robótica, incluindo da robótica humanoide. Agigantam-se os shoppings de robótica em Beijing, um de 4 andares, inaugurado a 7 de agosto de 2025, outro de 6 andares em Shenzhen. Neste grande shopping, encontram-se robôs para todos os gostos e utilizações na assistência à medicina, à indústria e às atividades quotidianas. Eles podem ser biónicos, com formas e movimentos inspirados na biologia, ou humanoides, atingindo graus de sofisticação como os que podem ser vistos num jogador de xadrez de nome Wukong. Encontramo-los, ainda, ligados ao desporto, uns jogam boxe, outros futebol, outros ensaiam-se nas corridas, há-os artistas, por exemplo, pintores, músicos e dançarinos, há-os assistentes de medicina, massagistas, técnicos de enfermagem e assistentes laboratoriais, e/ou dedicados à medicina tradicional chinesa, há-os empenhados nas tarefas quotidianas, dando ótimos empregados de mesa e cozinheiros, que atentamente viram panquecas e preparam churrascos, mas também empregados de balcão, há-os, além disso, transportadores humanoides e drones.

E se os há bons, leia-se, empregues para auxiliar e construir, obviamente que os poderá haver maus, para atrapalhar e destruir. Mas essa é uma conversa que fica para mais adiante.

Na Conferência Mundial de Robótica de agosto de 2025, ocorrida em Beijing, foi realizado um balanço de vendas para o ano de 2024 relativo aos robôs industriais, estes ultrapassaram as 300 mil unidades, mantendo a China no lugar cimeiro de vendas deste tipo de robôs pelo décimo segundo ano consecutivo. Num balanço feito pelo Presidente do Instituto Chinês de Robótica, Xu Xiaolan (徐晓兰), fica-se a saber o país é o maior produtor mundial de robótica, tendo a venda de robôs industriais aumentado de 33 mil em 2015 para 556 mil unidades em 2024. Cresceu ainda a produção de robôs de serviço (serviços domésticos, armazenamento e logística, comerciais, apoio a idosos, a deficientes e na reabilitação médica) para mais de 10 milhões de unidades. Em termos estatísticos, e de acordo com os dados da International Data Corporation (IDC) relativos a 2024, os fabricantes chineses ocupam 84,7% no que respeita ao mercado global de robôs de serviços comerciais.

A China Lidera o mercado mundial de robótica, através da sua ativa indústria criativa, como já o tinha feito em relação, por exemplo, aos brinquedos. O país é responsável por cerca de 80% a 90% dos brinquedos vendidos globalmente, sejam os antigos de madeira, ou os de pelúcia, ou os insufláveis, ou os eletrónicos, tendo como principais bases de compra de brinquedos Guangdong, Jiangsu e Shandong, sendo ainda fortes nesta área os centros de Fujian, Zhejiang e Xangai. Centros que também encontramos ligados à robótica, pelo menos no caso de Xangai e Shenzhen.

Será que se pode estabelecer uma relação entre os brinquedos e a robótica para o caso da China?

Os brinquedos são uma forte aposta da geração Z, abreviatura para zoomers, (a da segunda metade da década de 90 até 2010), a que receia um futuro sombrio e investe muito nos gastos emocionais. Esta geração do World Wide Web, acompanha o crescimento dos aparelhos tecnológicos, sendo considerada nativa digital.

Segundo creio, o caminho para o aparecimento dos robôs na China foi traçado muito antes da geração Z ter surgido à face da terra. Os chineses sempre gostaram de brinquedos, veja-se o amor que têm aos peluches, às lanternas, aos antigos brinquedos de madeira e, mais recentemente, a todo o tipo de brinquedos eletrónicos.

Ora os robôs, embora sejam muito mais do que diversões, têm a aparência de brinquedos, com a vantagem acrescida de poderem receber um forte investimento emocional, aliado a uma enorme utilidade prática. Estas “latinhas”, feitas à base de alumínio, aço e titânio, e de plásticos, como o polipropileno, ABS e policarbonato, borrachas e elastômetros, para além de inúmeros componentes eletrónicos, como microprocessadores, sensores, motores e cablagens, são grandes companheiros dos humanos, amigos fiéis e de uma obediência apenas limitada ao seu fabrico.

Aparecem pois para cumprir vários funções e o seu surgimento só foi possível devido a uma estreita aliança entre a ciência e a técnica, ou seja, devido ao desenvolvimento da tecnologia, esse que foi tematizado por grandes escritores e filósofos contemporâneos no Ocidente, e pense-se em Aldous Huxley (1894-1963) e na sua distopia futurista, intitulada Admirável Mundo Novo (Brave New World de 1932), na qual uma sociedade dominada pela engenharia genética é condicionada psicologicamente, inclusive por drogas (o soma), a fim de garantir o bem-estar social e suprimir a liberdade e o pensamento crítico.

Pense-se, ainda, em obras como a de Oswald Spengler (1880-1936), O Homem e a Técnica de 1931, que explora a relação do ser humano com a tecnologia, conduzindo, em última análise, à autodestruição por dissolução da cultura ocidental. Mas se a cultura ocidental se pode sentir, parafraseando Spengler, “nauseada com as máquinas”, outros há como o filósofo Martin Heidegger (1889-1976), que em A Questão da Técnica (1954) perspetiva a técnica como o sentido de uma nova época para o ser humano. Porém, para tal é preciso saber questionar a técnica e não apenas aceitá-la de um modo instrumental ao serviço de propósitos antropológicos, quando o humanismo para o filósofo de A Carta ao Humanismo (1946) tem consequências desastrosas, porque afasta o verdadeiro homem da sua essência e do Ser, que assim é ocultado e não desvelado.

Nenhuma destas vias do pensamento ocidental tem vindo a ser seguida pelos chineses dos nossos tempos, fortemente empenhados no aproveitamento utilitário da tecnologia. A instrumentalização da mesmo ao serviço da humanidade, ou melhor, da China não lhes suscita dúvidas existenciais, como o atestam os grandes shoppings de robótica hoje à disposição em Beijing ou em Shenzhen de um público ávido de novidades tecnológicas.

Os robôs chineses servem para todo o tipo de funções; industriais, comerciais, científicas, recreativas, caseiras e de assistência afetiva. A relativa falta de liberdade, ou a limitação dos graus de liberdade (Degrees of Freedom, DOF) também não lhes parece preocupante, pelo menos a ponto de suscitarem a interrogações filosóficas sobre um futuro distópico, viável através do cruzamento genético da inteligência artificial com os animais, incluindo os humanos ditos racionais.

Procuram apenas aperfeiçoar os graus de liberdade dos robôs definidos como o número de movimentos independentes das suas juntas e componentes, executado tanto no sentido rotativo como translativo, sendo estes graus no artigo da Tecnologia Robótica Humanoide, publicado em maio de 2025, variáveis de acordo com o aperfeiçoamento técnico de cada máquina: o grau maior de liberdade é apresentado pelo Robot Era- Star 1.

Não se esperem por isso grandes e inusitadas novidades relativas ao grau de liberdade dos robôs, estão serão, até ver, limitados e submissos aos seus criadores, de um bom criador surgirá um robô positivo, de um mau criador, um negativo.

Um amigo com o qual abordei o tema, mostrou-se muito espantado pelo facto de um dos países mais populosos do mundo estar na linha da frente do desenvolvimento robótico, porque para ele seria mais importante dar emprego a uma imensa população, do que procurá-la substituir em quase todas as tarefas, das científicas às mais rotineiras, como seja o transporte e entrega de mercadorias.

Para compreender o porquê desta adesão total à maquinaria inteligente, ou tão inteligente quanto a sua limitada liberdade o permite, há que recuar na história da China. Proponho uma viagem até aos tempos do surgimento e desenvolvimento do uso da pólvora. O aparecimento da pólvora está associado à Alquimia e aos mestres taoistas, que realizaram as primeiras experiências científicas em busca do elixir da longevidade, já no Período dos Estados Combatentes (战国 Zhàn Guó, 475-221 a.C), sendo uma das quatro grandes invenções da China Antiga (四大发明Sì dà fāmíng). O primeiro tipo de pólvora a surgir foi a negra (黑火药Hēi huǒyào), as experiências dos alquimistas foram muito bem recebidas e incentivadas pelo poder dominante, logo as experiências prosseguiram durante a dinastia Han do Leste (东汉Dōng Hàn, 25-220), sendo famoso o tratado de de Wei Boyang (魏伯阳), intitulado Zhouyi Cantongqi (《周易参同契》) , e traduzido como A Concordância dos Três , ou o da dinastia Jin (晋代Jìn dài, 266-420) do grande alquimista Ge Hong (葛洪), cujo título é Baopuzi, em português, O Mestre que Abraça a Simplicidade (《抱朴子·仙药篇》), especialmente o seu capítulo dedicado ao fabrico da pílula da imortalidade.

Talvez no recurso aos métodos de combustão para criar a pílula tenham descoberto os alquimistas por acaso a pólvora ao misturar o enxofre, o salitre e o carvão vegetal, certo é que a explosão se deu e estava descoberto o perigoso, inflamável e detonante elemento, mas não menos certo foi que os mestres não seguiram por essa via, que consideravam improdutiva para o objetivo almejado. Então só muito mais tarde durante a dinastia Song (宋代Sòng dài, 960-1279) há conhecimento de que alguns artesãos estabeleceram oficinas de fogos-de-artifício em Kaifeng para a produção de foguetes e fogo-de-artifício indispensável a todos os grandes momentos de celebração na China.

O uso da pólvora seguiu depois dois caminhos muito diferentes, um pirotécnico para efeitos recreativos do poder imperial e casas senhoriais associadas, outro para uso militar.

Por que razão se traz aqui a história da descoberta da pólvora? Porque esta talvez possa conter as três dimensões que podemos encontrar na criação e interesse pelos robôs na China. A sua criação revela um enorme interesse científico associado: por um lado, a práticas filosóficas com vista ao desenvolvimento da vida até aos seus limites e quem sabe até mesmo à ausência deles, que seria concretizada pela imortalidade; por outro, expressa uma imensa vontade recreativa com profundo investimento afetivo, e, por outro ainda, uma utilidade prática, que coloca a robótica na linha da frente, tanto em termos científicos, como militares e civis.

A nova filosofia chinesa, como a mais antiga genuinamente autóctone, surge em íntima ligação à ciência e a técnicas com misteriosas conexões ao mundo da magia para os mestres taoistas de ontem, aos quais sucedem os grandes médicos, incluindo os da medicina tradicional chinesa, que encontram hoje preciosos assistentes laboratoriais a executar um trabalho de grande precisão e falhas mínimas, já que os robôs não se cansam, nem incomodam, fazem o que lhes pedem sem qualquer exigência salarial.

Além disso, em termos militares este arsenal de maquinaria é uma excelente alternativa, pois permite poupar vidas, por ter complexidade e autonomia suficiente para tal.

Como é óbvio, das muitas questões éticas associadas a este desenvolvimento exponencial do novo mundo da robótica e da inteligência artificial, uma parece essencial, sobretudo e, por enquanto, em termos de experimentação biotécnica e investigação científica ligada, que será colocada abaixo. Primeiro o exemplo, retirado do desenvolvimento de elétrodos dinâmicos para interface cérebro-computador, tal como sucede no Instituto de Tecnologia Avançada de Shenzhen da Academia de Ciências Chinesa. Nos sistemas de interface cérebro-computador, há que conectar elétrodos de dispositivos eletrónicos ao cérebro para a aquisição de sinais eletroencefalográficos. Estes elétrodos são de fibra flexível, semelhantes a uma minhoca, possuindo um sensor magnético incorporado na cabeça da “minhoca”, a manipular sobre a orientação de campos magnéticos externos. Estes elétrodos de fibra flexível foram introduzidos nos cérebros de coelhos e também em ratos, tendo como objetivo servir posteriormente necessidades clínicas de humanos, tais como o controle inteligente de próteses, localização de lesões epiléticas e tratamento de distúrbios neurológicos crónicos.

Do ponto de vista ético, a questão não pode deixar de ser colocada: por que motivo as vidas humanas são mais importantes do que todas as outras do nosso planeta? Os seres humanos continuam os reis da criação, mesmo no âmbito de filosofias como a chinesa, cuja tradição não humanista, à maneira dessa referida na Carta ao Humanismo de Heidegger, é bem conhecida.

Seremos nós humanos assim tão valiosos? A ciência tem de continuar o seu caminho, que na China será sempre seguido numa perspetiva pragmática e utilitarista para benefício dos chineses e da nação chinesa. Mas não se pense que a robótica está aí apenas para servir a sociedade chinesa sem troca de favores, já que não se pode olvidar o enorme investimento emocional que a população que descende de Dragões realiza nestes novos seres, uns mais biónicos do que os outros, que adquirem o estatuto de companheiros e amigos e, nessa qualidade, têm todos os mimos devidos outrora aos humanos e animais que escolhiam para estimar.

A nova filosofia chinesa é utilitária, prática e conta com novos entes no seu mundo de saber, são eles os humanoides, os robôs biónicos e os brinquedos da área da robótica. Eles aí estão muito estimados e a abrir o caminho para uma nova era, a dos ciborgues ou melhor dizendo, a humanidade miscigenada de amanhã, a que terá as maiores hipóteses de viver longamente e, quem sabe, se imortalizar.

Referências Bibliográficas

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