Via do MeioÓpio e Hegemonia – O imperialismo britânico na China contemporânea Sara F. Costa - 15 Ago 2025 Habituados a observar potências europeias a escravizar e colonizar diversos espaços pelo globo, a China da dinastia Qing não estava interessada em negociações com os países ocidentais. Para além de querer manter distância em termos diplomáticos e relacionais, não sentia necessidade de importar nenhuma manufactura ocidental, ou seja, não dependia de nenhuma importação. Vários países europeus, contudo, faziam comércio com a China pois tinham interesse em produtos chineses, principalmente no chá, porcelana e seda. Estes produtos eram particularmente apreciados pelos britânicos. A atitude chinesa não era bem vista por parte da Grã-Bretanha que se exibia perante a Europa como potência hegemónica dominante. Uma vez que a Grã-Bretanha importava da China grandes quantidades de chá, seda e porcelana, via a sua balança comercial bastante desequilibrada com vantagem para os chineses. Isto aconteceu até se aperceberem de um produto altamente lucrativo plantado na sua colónia Índia que podia vir a interessar aos chineses: o ópio. Para além de lucrativo, este produto tinha também o poder de enfraquecer em larga escala este país-continente que se afigurava tão interessante enquanto mercado para as potências europeias. Com a introdução e rápida propagação do ópio na sociedade chinesa, o governo de Pequim decidiu proibir a comercialização do narcótico que estava a ser devastador e a constituir um dos mais graves problemas de saúde pública da história do país. Esta decisão é vista pelo governo britânico como uma afronta às suas liberdades comerciais. Após a introdução, comercialização e disseminação do ópio na China em 1839 a Grã-Bretanha declara a Primeira Guerra do Ópio. A sua narrativa oficial recai na importância da abertura das portas da China ao comércio internacional, por uma questão de ordem, estabilidade e paz. Este ensaio pretende refutar a tese da paz pelo comércio aludindo a este contexto histórico. Quando analisada objectivamente a situação económica internacional da época, o interesse comercial da Grã-Bretanha na China era mais do que evidente. Constituía um grande mercado e, se enfraquecido e dominado, mais uma colónia com muita mão-de-obra a explorar. Ou seja, por detrás de uma narrativa que desejava apenas uma ordem dita moderna, mundial e que, acima de tudo, conduzia à paz, existia um acentuado interesse material no mercado chinês que não fosse prejudicial como o era para os britânicos até à data. Para além do interesse material, o interesse soberano também estava presente, não estivesse ele representado naquela que viria a ser a colónia britânica de Hong Kong. O Mandato do Céu e o Sistema de Cantão O isolamento do governo de Pequim constituía um modelo económico paralelo ao modelo ocidental e não se coadunava com a crença generalizada na Europa do séc. XIX de que a integração numa ordem internacional de direito e de comércio era a única possibilidade de um estado soberano ser reconhecido como civilizado e, consequentemente, como pacífico – já que se tornaria transparente, previsível e, segundo Palmerston, moderno (Palmerston, 1840). Contudo, o Império de Qing não partilhava esta crença. Por esta altura O Mandato do Céu[i] (天命, em Pinyin: Tianming)[ii] era ainda o modelo de governação seguido. De acordo com este modelo, a diplomacia e o comércio internacional eram formas de reconhecimento da proeminência chinesa. O mandato não implicava obrigatoriamente uma relação bélica com os povos vizinhos. Tal como os Estados Unidos, a China achava ter um papel especial na ordem universal e todos eram livres de usufruir dos privilégios que transmitia o contacto com a sua cultura. Contudo, em antítese aos Estados Unidos, nunca manifestou desejo de disseminar os seus valores pelo mundo: limitava-se a conseguir que os estados estrangeiros se considerassem Estados Tributários da China. O comércio internacional entre os chineses e os estrangeiros formou o primeiro local de encontro Sino-ocidental da era moderna. Ainda que o porto Xiamen em Fujian, tenha constituído a principal porta de trocas comerciais com o Sudeste Asiático e a costa chinesa, após 1759 Guangzhou tornara-se porta oficial para os encontros com europeus. O “Sistema de Cantão” como ficou conhecido no ocidente, foi organizado a partir de linhas tipicamente chinesas: o governo comissionava uma das famílias chinesas de mercadores para actuarem como controladores das trocas comerciais com o estrangeiro. Estes mercadores formavam uma associação conhecida por Cohong, que respondia ao comando de um oficial especialista no comércio de Guandong, normalmente um manchu enviado da corte imperial em Pequim, conhecido pelos estrangeiros como o Hoppo. Os Cohong e o Hoppo tinham a tarefa de taxar as importações dos estrangeiros e especialmente as exportações de chá e seda. Até 1834, quando a Companhia Britânica das Índias perdeu o apoio real para monopolizar as trocas comerciais com a China, a Companhia tinha-se adaptado a este particular Sistema de Cantão. Durante as épocas de trocas, o conselho de diretores da Companhia Britânica das Índias em Londres vivia na “British Factory” (centro de comércio e residência), nos bancos do rio, fora da grande capital de Guangzhou, de Outubro a Março. Na época sem trocas de Abril a Setembro, eles retiravam-se para o único espaço chinês concessionado a europeus, a cidade portuguesa de Macau. Para os chineses, a acumulação de interesse europeu na costa sudeste exigia um método eficiente para lidar com os “bárbaros do mar ocidental” como eram oficialmente designados. Habituados a observar potências europeias a escravizar e colonizar diversos espaços pelo globo, a atitude totalitária de Qing não estava interessada em grandes negociações com os “mercadores bárbaros”. Não era autorizada a concessão de um espaço de representação estrangeira na capital – embaixadas[iii] – e raramente eram admitidos à corte em Pequim representantes estrangeiros. Quando tal acontecia, era expectável que estivessem familiarizados com o ritual de prostração perante o imperador[iv]. Este ritual de prostração é um importante detalhe na missão britânica liderada por George Macartney em 1793 a Pequim para conhecer o imperador Qianglong. O seu objetivo era pedir que o império Qing respeitasse aqueles que eram na altura os direitos internacionais mínimos dos quais a Europa gozava em quase todo o resto do mundo: comércio livre, embaixadas permanentes e igualdade de soberania. Até então os europeus não tiveram outra opção a não ser reduzirem-se ao papel de suplicantes na ordem tributária chinesa – o comércio com os bárbaros era considerado não mais do que um tributo ao grande Império do Meio. A Missão Macartney foi um fracasso a vários níveis, uma vez que apelando e tentando demonstrar a superioridade técnica e científica do ocidente, não conseguiu levar a cabo nenhuma das negociações que lhe tinham sido encomendadas. Esta atitude chinesa era particularmente ofensiva para a Grã-Bretanha mas o PIB da China era ainda mais ou menos sete vezes o da Grã-Bretanha e daí o imperador considerar que era Londres que precisava de ajuda e não o contrário (Maddison, 2006). As potências ocidentais em ascensão não tolerariam por muito mais tempo um mecanismo diplomático que se referisse a eles como “bárbaros” que pagavam tributo ou um comércio sazonal apertadamente regulado num único porto. Depois da missão Macartney a Grã-Bretanha do topo civilizacional do ocidente, ficara particularmente ofendida. Uma única ordem mundial – Do comércio para a paz Com a balança comercial desequilibrada face ao desinteresse chinês pelas manufacturas britânicas, a insistência na importação sem restrições de ópio para a China foi a solução encontrada por estes para conquistarem finalmente o mercado chinês. O ópio foi introduzido de forma ilícita e com o propósito claro de viciar a população chinesa no único produto que poderia apresentar lucros para a Grã-Bretanha. Quando o ópio começou a circular no país, Pequim fez uma tentativa de regulação e venda do produto. Contudo, a destruição progressiva das populações e os problemas de saúde pública que rapidamente se tornaram visíveis um pouco por todo o país, levaram a corte a proibir a sua comercialização. Para uma Grã-Bretanha que começava a proibir a globalização da escravatura (da qual tinha sido, paradoxalmente, percursora) de forma a afirmar a sua superioridade moral perante o resto da Europa, a comercialização do ópio provocava aos ocidentais uma certa sensação de embaraço. Mas não era só do ponto de vista ocidental que a comercialização do ópio era vista como um embaraço. O mandatário oficial para erradicação do ópio na China, Lin Ze Xu, chegou a pedir à rainha Vitória que esta se encarregasse de suprimir o comércio do ópio não só na China como nos territórios indianos da Grã-Bretanha de onde os relatos de degradação profunda provocada pela massificação do uso da droga se faziam já ouvir um pouco por todo o mundo (Tse-hsu, 1839). Lin faz um ultimato à Grã-Bretanha em que ameaçava acabar com a exportação dos produtos chineses caso os britânicos não acabassem com a comercialização do ópio. Certo de que o grande império chinês não poderia sofrer retaliações de maior, a corte chinesa subestimou as capacidades militares estrangeiras já bem mais desenvolvidas que as chinesas – que nunca teve que travar grandes batalhas depois da unificação do império devido a formas mais requintadas de ligar com a guerra, como as que podem ser estudadas no clássico Arte da Guerra de Sun Tzu. Séculos de supremacia tinham distorcido o sentido da realidade da Corte Celestial. A pretensão de superioridade só acentuava a humilhação inevitável (Kissinger, 2011). O comissário britânico Palmerston escreve de volta para a corte chinesa e defende claramente o seu ponto de vista: os sistemas legais chineses tinham, de acordo com os princípios jurídicos ocidentais, caducado há muito tempo e, por isso, o próximo passo do Governo Britânico era o de enviar de imediato uma armada para bloquear os principais portos chineses, tomar «todos os navios chineses que possa encontrar» e tomar «uma parte conveniente do território chinês» até Londres obter satisfação. (Palmerston, 1840). [v] Os resultados da interação entre a esmagadora força ocidental e a gestão psicológica típica da China, resultou em dois tratados: o Tratado de Nanjing e o Tratado de Bogue. A China tinha que pagar à Grã-Bretanha seis milhões de dólares de indeminização, ceder Hong Kong e abrir cinco portos costeiros em que seria permitida residência e comércio ocidentais (Guangzhou, Ningbo, Shanghai, Xiamen e Fuzhou). Chegara ao fim o “Sistema de Cantão”. Os britânicos obtiveram ainda o direito de fazer comércio directo que não passasse por Pequim e o poder de exercer jurisdição sobre os seus nacionais residentes nos portos chineses do tratado. Isto significava que os comerciantes de ópio estrangeiros estariam sujeitos às leis dos seus próprios países e não da China. Este princípio de «extraterritorialidade» acabou por representar o declínio do poder imperial. A seguir às concessões permitidas à Grã-Bretanha, muitas outras potências ocidentais quiseram vir reclamar o seu pedaço. O Mandato de Céu terminara e fora substituído pelo conceito ocidental de Soberania. A tese da paz pelo comércio A tese da paz pelo comércio defende que este reduz a probabilidade de conflitos armados entre estados numa lógica de interdependência em que o liberalismo comercial assume um papel central na condução à paz, ultrapassando desta forma a lógica conflitual defendida pelos teóricos realistas. A organização do comércio internacional (WTO) apresenta vários argumentos que fundamentam o facto de que o comércio entre estados soberanos conduz à paz, nomeadamente defende que os comerciantes têm menos tendência para gerar conflitos com os seus clientes (World Trade Organization, 2003: 2); o segundo argumento é o de que as disputas são tratadas de forma construtiva nos procedimentos das instituições e organizações. Os adeptos da paz liberal argumentam que a interdependência reduz o conflito porque o conflito reduz as trocas comerciais. Interdependência económica promove a paz porque o conflito é inconsistente com laços económicos que promovam o benefício mútuo (Polachek & Xiang, 2008). A tese foi, contudo, ao longo do tempo mudando de base empírica. Num primeiro tempo em que o conceito operativo essencial se chama “vantagens comparativas”. É o tempo da vida económica internacional que ficou conceptualizado nas teorias tradicionais do comércio internacional. Cada Estado explora as vantagens competitivas que tem no sistema internacional. Onde dantes tínhamos unidades políticas, temos agora unidades económicas. A partir dos anos 80 esta passa a ser uma malha de relações bilaterais sendo assim a globalização a perda desta referência nacional. A guerra anglo-chinesa foi apresentada pelo governo britânico como um processo necessário em que os fins justificavam os meios. Apesar do universalmente reconhecido fracasso ético e moral da disseminação ilícita de um narcótico com vista à abertura forçada de um estado às legislações do comércio internacional, o pedido de desculpas oficiais pelo Reino Unido nunca foi formalizado, nem mesmo aquando da recuperação da soberania de Hong Kong pela República Popular da China em 1997. A imposição de uma única ordem mundial do comércio defendia um mundo mais pacífico mas neste episódio histórico podemos observar que após a abertura ao comércio livre, as invasões e tentativas de colonização por parte das potências ocidentais continuaram a fomentar a guerra na China numa lógica de expansão de poder e de soberania. 完 Notas [i] O Mandato do Céu tem as suas origens no pensamento confuciano desenvolvido por Mencius (372 – 289 a.C.) e foi seguido desde então como forma de justificar a legitimidade dos imperadores. [ii] Pinym e Wade-Giles são os dois sistemas de romanização da língua chinesa utilizados neste trabalho. [iii] Exceção feita à Rússia, já que os seus avanços no leste representavam uma ameaça iminente para a China. Em 1715 os Qing concederam a possibilidade da instalação de uma missão ortodoxa russa em Pequim. [iv] Conhecido como Cautau, o ato de prostração perante o imperador era uma forma de saudação ou de veneração ao imperador que implicava tocar com a testa no chão três vezes. [v] «Lord Palmerston to the Minister of the Emperor of China» (Londres, 20 de fevereiro de 1840) Consultado emhttp://www.chinaforeignrelations.net/node/247 [19 de Novembro de 2012]