Via do MeioO escravo Kunlun Hoje Macau - 6 Ago 2025 Lembrai-vos: os aposentos das mulheres são bem guardados; e terríveis as ordens do rei. — Se isso te impede, mortal tímido, Indra saberá introduzir-te no gineceu. Stéphane Mallarmé, “Nala e Damaiantî”, Contos Indianos. A visita ao Príncipe Durante a Era da Grande-Passagem, a terceira estabelecida pelo Imperador Daizong, um dos magistrados mantinha relações de amizade com o mais ilustre dos servidores do Estado daquele tempo, um Príncipe que ocupava o cargo de Ministro Emérito de Primeira Patente. Este homem de guerra, entre outros feitos, era celebrado por ter reconquistado duas cidades caídas às mãos dos rebeldes capitaneados por An Lushan. O magistrado, que admirava o Príncipe, tinha um filho, um mancebo de nome Gui, acabado de nomear oficial na Guarda Imperial das Lâminas Cortantes, ala que recrutava jovens da alta aristocracia. Um dia o pai enviou-o a casa do prestigiado ministro, com o intuito de indagar sobre o seu estado de saúde; e talvez também com a esperança de dar a conhecer o talento do filho ao ilustre amigo. Gui era um belo moço, de rosto puro como o jade, de modos calmos mas decididos, cujo discurso claro e elegante secundava uma natural simpatia e segurança. Recebido pelo Ministro, este ordenou a uma das suas cantoras que levantasse os estores, e fê-lo entrar nos seus aposentos. O jovem saudou-o com respeitosa vénia, e transmitiu a mensagem do pai. Muito agradado pela presença do visitante, o ilustre Príncipe fê-lo sentar, e logo iniciaram uma interessante conversa. Uma taça de pêssegos e um enigma Em frente deles, três favoritas de grande beleza, em volta de uma minúscula mesa, dedicavam-se com extremo cuidado a cortar pêssegos vermelhos em finas fatias, deitá-las em taças de ouro, e regá-las com creme. O ministro ordenou então a uma delas, a que vestia de musselina vermelha, que apresentasse uma das taças ao hóspede. Gui, tão jovem que não sabia como se comportar diante das belas cortesãs, corou embaraçado, não ousando começar a comer. Notando isso, o ministro disse à jovem vestida de vermelho que o servisse com a colher, o que ela fez de imediato, enquanto o olhava com um sorriso malicioso. Até que chegou o momento de Gui se retirar. Na despedida, ao saudar o ministro, este disse-lhe: “meu jovem amigo, vem visitar-me sempre que tenhas tempo livre; não faças cerimónia com esta idosa pessoa.” E com um gesto, ordenou à favorita de vermelho que o acompanhasse até à saída do pátio. No portal, quando Gui se virou para se despedir, viu que ela levantava três dedos, e depois virava três vezes a palma da mão. Em seguida, tirando do corpete um pequeno espelho redondo, mostrou-lho, repetindo: “ Repara bem! Repara bem!” E logo se retirou para o interior da mansão, sem dizer nem mais uma palavra. De regresso a casa, o moço contou ao pai como se passara a visita, repetiu os cumprimentos do ministro, e recolheu ao seu gabinete de estudo. Aí se manteve perdido em sonhos, sem dar pelo tempo passar, de espírito ausente, num vazio na alma. Ninguém em casa compreendia o que se passara para ele ter mudado assim. Sem pensar em comer, não fazia mais nada a não ser cantarolar o seguinte poema: No Monte dos Imortais vi uma deusa sorrindo com o olhar, estrela cintilante A lua deslizando pelo portal vermelho a beleza de neve iluminava tristemente Durante a dinastia Tang, não raramente famílias abastadas tinham servos oriundos dos Mares do Sul, vulgarmente chamados Escravos Kunlun, em referência aos montes desse nome. Também em casa do pai de Gui havia um escravo Kunlun, de nome Mole, muito devotado ao seu jovem senhor. Nesta ocasião, fitando-o, perguntou: “que tendes no coração que justifique esse ar desalentado? Porque não confias no teu fiel servo?” Ao que Gui respondeu: “Que sabem vocês, para não pararem de me questionar sobre um assunto que diz respeito apenas à intimidade do meu coração? ” “Quero saber. Tenho fé que conseguirei encontrar uma solução”, retorquiu o servo. Instigado pela inabalável confiança com que o outro argumentava, o jovem oficial contou-lhe o sucedido em casa do ministro, ao despedir-se da bela cortesã vestida de cassa vermelha. “Só isso? ” comentou Mole “nada de mais! Porque não me contastes logo, em vez de ficar a remorder inquietações?” E de imediato Mole desvendou o mistério da linguagem gestual: “qual a dificuldade de entender a mensagem da bela? Se levantou três dedos, é porque na residência do ministro moram dez cortesãs, cada uma em seu pátio, e ela habita na moradia número três. Virar a palma da mão para cima três vezes, indica quinze dedos, o que aponta para o número quinze, obviamente. Quando ao pequeno espelho redondo que ela mostrou, significa que na noite de quinze, a lua será redonda como aquele espelho.” Feliz por ver enfim desvendado o mistério dos enigmáticos sinais, Gui perguntou a Mole como poderiam fazer para corresponder ao pedido da jovem. Mole explicou, rindo: “a noite de quinze é amanhã. Preciso de dois cortes de seda azul-escuro, para vos mandar fazer um fato justo. Como na mansão do ministro um cão feroz guarda a entrada do pátio das cantoras, nenhum desconhecido consegue passar. A besta não hesitaria em devorá-lo pois é vigilante como Argos e feroz como um tigre. Trata-se de um animal da raça Menghai de Haizhou; ninguém no mundo, a não ser este vosso servo seria capaz de o dominar. Esta noite vou desancá-lo para vos servir.” À meia-noite Mole partiu armado de um malhete de correntes. Ao regressar afirmou que o cão estava morto, e que não havia obstáculos à execução do plano. Na noite seguinte Gui gratificou o servo com um excelente repasto de carnes e vinhos finos. À terceira hora, meteram-se a caminho. Gui ia quase invisível, vestido com um fato justo ao corpo, em seda azul-noite. Voando sobre as muralhas Ao chegar à muralha da casa do ministro, Mole, carregando o amo às costas, saltou uma dezena de cercas até penetrar no pátio das cantoras e parar em frente da terceira porta. A barra de madeira da fechadura não tinha sido colocada atravessada nos batentes esculpidos em cruzamentos entrelaçados; uma lanterna dourada brilhava suavemente no interior. Os intrusos ouviram os suspiros da jovem, sentada junto da porta, como se esperasse alguém. Tinha retirado os brincos de esmeralda e a pintura carmim do belo rosto. Com a voz repassada de tristeza, também ela sussurrava uma cantilena, afinal tão enigmática como a linguagem das mãos: Saudoso do seu amor, o rouxinol em pranto furtivo lhe arrebatou as jóias sob as flores O azul ainda deserto, a espera sempre vã em vão a flauta de jade suspira o seu desgosto. Àquela hora estavam os guardas todos adormecidos. O silêncio da noite pairava sobre o pátio. O moço afastou o cortinado e entrou. Durante um instante, ela ficou sem palavras. Depois acercou-se dele, tomou-lhe as mãos, como para se assegurar que era a pessoa que esperava, e disse: “ Eu sabia que só um jovem Senhor tão inteligente como tu seria capaz de entender a minha mensagem sem palavras! Mas pergunto a mim mesma de que poderes mágicos dispôs para conseguir chegar até aqui sem entraves.” Gui confessou então que fora Mole a engendrar o plano e pô-lo em prática. Ela riu do fato azul-escuro que moldavas formas do rapaz, e dos saltos sobre as cercas e muralhas, e perguntou: “Onde está esse vosso fiel servo?” Gui apontou o biombo atrás do qual o escravo esperava. A jovem convidou Mole a entrar e serviu-lhe uma taça de vinho. Então narrou a Gui a história da sua curta existência: “Nasci numa abastada família perto da fronteira do norte. O meu senhor actual, que na altura comandava ali a armada da guarnição, de força me tomou como concubina. Não tive forças para me dar a morte, pelo que vergonhosamente sobrevivi. Agora o pó branco e o carmim da pintura do rosto disfarça o meu coração atribulado de desgosto. Os manjares servidos com pauzinhos de jade, os incensários de ouro onde ardem os mais dispendiosos perfumes, os corta-ventos com incrustações de nácar, as pérolas e as esmeraldas adornando as belas adormecidas sob cobertas bordadas, nada apaga o opróbrio da servidão. Sinto-me em cativeiro. Já que o teu bom servo dispõe de poder sobrenatural, poderá ele libertar-me desta prisão? Dou-vos tudo o que tenho, e se for preciso morrerei sem lamentos; mas seria feliz se pudesse servir-vos como escrava. Diga-me o Senhor o que pode fazer por mim.” Gui, muito pálido, continuava em silêncio. Mole falou por ele: “Já que está decidida, Senhora, não haverá dificuldades. Vá preparar a sua bagagem, tão rapidamente como possível.” Em grande júbilo ela fez três idas e vindas, empacotando o seu enxoval. Mole avisou: “Vai nascer o sol, apressemo-nos.” Levantou os dois jovens, colocou-os nas suas costas, e voltou a sobrevoar as altas muralhas sem que um só ruído alertasse quem ainda dormia. Já em casa, deixou os dois jovens no gabinete de estudos de Gui, onde este escondeu a moça. Na mansão do ministro só durante a manhã deram pelo desaparecimento da bela concubina em musselina vermelha, logo depois de terem descoberto o cadáver do cão. “Os nossos muros são altos e vigiados dia e noite, e os portões são fortemente aferrolhados” pensou o príncipe, alarmado. “Não deixaram pistas, como se tivessem voado! Deve ter sido um desses perigosos Justiceiros, aliados dos rebeldes. O melhor é não deixar propalar o sucedido, só serviria para revelar fragilidades da minha casa e atrair inimigos.” Fuga na primavera A jovem cortesã ficou escondida nos aposentos de Gui durante dois anos, até que um dia de Primavera, quando estavam em flor as balsaminas, tomou um palanquim e foi passear no Parque dos Meandros do Rio, em Quijiang. Um homem do ministro reconheceu-a de relance e correu a adverti-lo. O ministro, surpreendido, convocou Gui, que não sendo de carácter dissimulado, resolveu não mentir. Contudo, explicou que nada teria sido possível sem a ajuda de Mole. “A culpa é sem dúvida da rapariga” concluiu o ministro. “Mas como ela se manteve ao vosso serviço durante dois anos, não seria decente retomá-la em minha casa. Contudo, é meu dever punir Mole, pois ele pode constituir um perigo público.” De imediato ordenou a cinquenta dos seus guardas, armados até aos dentes, que fizessem um apertado à casa de Gui para capturar o escravo Kunlun. Durante essa espectacular diligência houve quem visse o servo Kunlun voar sobre as altas muralhas, de adaga em punho, como se tivesse asas, rápido como um gavião. Debaixo de uma chuva de flechas, sem uma só o ter atingido, desapareceu num abrir e fechar de olhos. Em que direcção e com que destino, ninguém viu. Durante mais de um ano, o ministro, em pânico, rodeou-se de uma guarda especial de soldados armados de sabres e alabardas. Uma dúzia de anos mais tarde, alguém da família de Gui viu Mole numa tenda do mercado de Luoyang, vendendo drogas, elixires e ervas medicinais. Tinha um ar fresco e folgazão, e o seu rosto estava como sempre fora, inalterado. Faro, 14-7-2025, Fernanda Dias, reconto