Contos tradicionais chineses recontados por Fernanda Dias

O travesseiro prodigioso

O travesseiro do sono
Despojou-o dos dias sobrepostos
Acalmou-lhe a voz dos ossos

A fome da terra
Devorou o seu nome
Como se não tivesse acontecido nada

Yao Jingming, A noite deita-se comigo.

Na estalagem

Corria a Era Kaiyuan. Um sacerdote taoista, conhecido como Mestre Lu, famoso por comunicar com os imortais, ia em peregrinação pela estrada de Handan, capital do Estado de Zhao, quando parou para descansar na Hospedaria dos Caminhantes.
Retirou o chapéu de viajante, desapertou o cinto, sentou-se encostado ao seu bornal, e soltou um profundo suspiro, apreciando o merecido repouso depois da longa jornada. Foi então que reparou num jovem viajante vestido com uma curta túnica de burel, que acabava de desmontar do seu poldro negro, para passar a noite na hospedaria. Vendo que partilharia a esteira com o velho mestre, o moço, que disse chamar-se Liu, saudou-o com cortesia, e, como é hábito entre viajantes, logo trocaram impressões de viagem e partilharam aventuras insólitas, o que os fez rir de bom grado, como velhos amigos.
Por fim o jovem Liu soltou um melancólico suspiro, e, chamando a atenção para a sua farpela coçada e suja, disse: “o que um homem tem de suportar, por viver num mundo hostil!” Ao ouvir este lamento, o velho respondeu com doçura: “tu aparentas excelente saúde, és um rapaz muito bem apessoado, porque te queixas, quando estávamos a passar um bom momento, numa agradável cavaqueira? ”
Então Liu prosseguiu: “ Como não hei-de lamentar a triste vida que levo? Sendo aspirante a letrado, faço tudo para alcançar mérito, para ter um nome e chegar ao menos a general ou a ministro. Poderei então sentar-me a comer numa mesa como a das nobres famílias, bem fornecida de tripés com toda a espécie de manjares, ouvindo música sublime. E sobretudo, enriquecer a família e cobrir de glória o meu clã. Estarei feliz no dia em que alcançar estes propósitos. Tenho sacrificado a juventude devotado aos estudos; dediquei todo o entusiasmo às artes literárias; esperava ao menos ao fim destes anos ter direito à púrpura do mandarinato! Mas aqui estou eu, montado no meu poldro, por essas estradas a caminho dos campos e levadas! Como não sentir desânimo e frustração? ”
Com a voz embargada, calou-se por finalmente, mas os seus olhos estavam marejados de lágrimas que teimavam em ficar retidas nas pestanas. Nisto assomou o estalajadeiro, que anunciou alegremente que tinha acabado de pôr a cozer ao vapor umas saborosas papas de milho-miúdo glutinoso. Em silêncio, Mestre Lu aproveitou a interrupção para esquadrinhar a fundura do seu bornal, de onde retirou um travesseiro de cerâmica, que estendeu a Liu, dizendo: “Pousa a tua cabeça sobre o meu travesseiro, e conhecerás finalmente honra, glória e todos os prazeres que ambicionas. ”
Com ambas as mãos o jovem Liu recebeu o singular travesseiro. Era uma antiga peça de cerâmica de um admirável azul, com aberturas nas duas extremidades. O moço pousou-o na esteira, sem por um momento sequer duvidar das virtudes ocultas de um objecto que pertencia a um virtuoso mestre taoista. Naquela abençoada era, cada pedra, cada nuvem, cada fenómeno astrológico, cada obra de arte criada por mãos de artista, encerrava em si não só um simbolismo determinado, mas presságios aleatórios, inenarráveis prodígios, significados ocultos, avisos de futuras trevas e tribulações, ou grandes feitos e honrarias. Foi pois em confiança total que o jovem letrado se inclinou para o objecto maravilhoso, e logo as duas aberturas se alargaram como portais de templo, mostrando o interior suavemente iluminado. Liu entrou sem entraves, e depois ergueu-se e saiu do portal azul. Estava em casa!

O feliz enlace

Uma donzela de Ribeira-clara, cuja família os pais de Liu conheciam, tinha chegado à idade de casar. Era uma menina de grande formosura, e, por acréscimo, o seu dote vinha aumentar confortavelmente a fortuna do esposo. Casaram, e conheceram a ventura do amor. Feliz e confiante ao lado da sua educada esposa, Liu começou a vestir-se com esmero, e a escolher criteriosamente os meios que frequentava.
No ano seguinte, passou nos exames e recebeu o grau de Jinshi, a mais prestigiosa categoria, que lhe proporcionava o acesso a uma bela carreira de Mandarim; e logo trocou o burel de estudante pela toga de Secretário dos Arquivos Imperiais. Sendo o mais baixo cargo dos dezoito graus para atingir o mandarinato, era no entanto um estádio reservado aos jovens letrados, prometidos a uma bela carreira. Em breve um decreto o destacou para o comando da Guarnição da Sub-Prefeitura de Weinan, que, estando sobre a dependência da prefeitura da capital, deixava antever boas oportunidades de acesso a cargos no Governo Central. O que se confirmou, quando foi transferido para os Censos e nomeado Analista dos Factos e Gestos de Sua Majestade, sendo logo de seguida promovido a Redactor dos Éditos Imperiais. Estava agora a meio do percurso para o topo da carreira.
Três anos mais tarde partia para dirigir a Prefeitura de Tongzhou, próximo da capital, a que se seguiu o cargo de Governador de Shaanzhou, e das cinco respectivas prefeituras na região de Henan. Muito dedicado aos projectos públicos, começou por empreender a construção de um canal a Oeste de Shaanzhou, o que vinha facilitar a navegação em toda a região, melhorando o fluir das embarcações, para comodidade da população e grande benefício dos mercadores. Instados pelo povo, os notáveis fizeram erigir uma estela, imortalizando na pedra o mérito das iniciativas da sua governação. O que talvez tenha contribuído para que Liu fosse de novo transferido, desta vez para Bianzhou, onde assumiu o cargo de Comissário Imperial da Circunscrição de Henan. De tal modo desempenhou as suas atribuições nesse cargo, que se viu enfim nomeado como Prefeito na capital.

A Campanha contra os Bárbaros

Naquele ano o Imperador Xuanzong, fazendo jus ao seu título de Shenwu Huangdi, o Divino Guerreiro, empreendia uma campanha contra os Rong Di, para enfim recuperar os vastos territórios que tinham sido anexados por aqueles bárbaros do Oeste. Simultaneamente, dois chefes tibetanos tinham contra-atacado e ocupado a região entre Guazhou e Shazhou. Na desordem bélica que se instalou entre o Rio Amarelo e Huang, o governador Wang Junhuan foi assassinado. O povo, inquieto, temia acima de tudo a vida sem lei nem ordem. Foi então que o Imperador fez apelo aos méritos de comando de Liu, e às suas capacidades para gerir tempos de crise, nomeando-o Vice-Presidente do Tribunal dos Censores, isto é, chefe operacional desse tribunal, que acumulava com o cargo de Governador Militar da Província a Oeste do Rio Amarelo. Dedicado de corpo e alma a esta nobre tarefa, Liu venceu os invasores, derrotou mil exércitos, e retomou novecentas mil léguas de território. Aí fez construir e equipar três grandes praças-fortes, a fim de assegurar a protecção dessa região estratégica. A população das zonas de fronteira, grata pelo estabelecimento da paz, levantou uma estela em seu louvor no Monte Juyan. De regresso à corte, foi recebido com valiosas recompensas e os seus feitos registados nos Arquivos do Império. Em consequência, foi nomeado Vice-presidente da Função Pública, mas rapidamente alcançou o cargo de Ministro das Finanças e a atribuição do título de Grande Mestre do Recenseamento. Muitos nobres e letrados comentavam a sua fidelidade às boas causas, a sua humildade e a sua conduta desinteressada. O povo das terras que servira com zelo pronunciava o seu nome com gratidão e respeito, comentando a sua cortesia, modéstia e generosidade. E contudo…

A inveja

Onde proliferam as raras flores da competência e do mérito, e surgem os eflúvios das honrarias e recompensas, inevitavelmente, nos recantos sombrios desse ingrato meio, cresce também a erva ruim da inveja.
O Primeiro-ministro vivia envenenado pelo mais sombrio ciúme. Manobrando com falsidade os seus atrozes desígnios, fazia um trabalho de sapa, no intento de conseguir a perda do rival. Não perdia nenhuma ocasião de espalhar rumores e calúnias, que insidiosamente faziam o seu caminho até aos ouvidos da Corte. O Imperador, na dúvida de haver algum laivo de verdade em tanta maledicência, exilou Liu longe da Corte, no cargo de Magistrado em Duanzhou, na região de Cantão, que, à época, era conhecida pelo clima malsão. Porém, três anos mais tarde, tendo arrefecido a sanha da inveja, a Corte reconsiderou; Liu foi convocado e admitido como Conselheiro, o que consistia em estar permanentemente à disposição do Imperador. Esta proximidade trouxe reconhecimento do seu carácter por parte da Corte, e novamente foi promovido para o cargo que tinha sido do seu inimigo, cabendo-lhe regulamentar os trâmites do Alto Secretariado e da Chancelaria. Contando com a leal colaboração de Xiao Song, director do Alto Secretariado, e Pei Guangting, presidente da Chancelaria Imperial, manteve durante uma dezena de anos as linhas da sua orientação política, realizando projectos com discrição e inteligência.
Três vezes ao dia conferenciava com o Imperador, dando contas das suas iniciativas e de mudanças benéficas a implementar, e desse modo ficou conhecido como Sábio Ministro. Contudo, nada é mais resistente do que a erva daninha, e de novo os intriguistas da Corte manobraram para o denegrir. Mais uma vez caluniado, acusaram-no de tentativa de conjura com os comandantes das fronteiras, que, corrompidos com cargos e presentes, testemunharam contra ele. Assinado o decreto de prisão, os guardas da prefeitura, vieram com larga escolta surpreendê-lo em casa. Desesperado, ferido no seu mais profundo sentimento de honra, Liu virou-se para sua esposa e desabafou, num profundo lamento: “em nossa casa em Shandong, eu possuía seis ares de boa terra de cultivo, que nos dava alimento, e um bom lar ao abrigo de intrigas. Por que perniciosa ambição me cansei a subir na carreira? Tenho tantas saudades da minha túnica curta de burel, e das cavalgadas no meu poldro preto a caminho de Handan! Enfim! A vida não retrocede conforme a vontade dos mortais. ” Dito isto desembainhou um punhal, mas num ápice a esposa travou-lhe o gesto, percebendo que ele intentava cortar a garganta. Fazendo da fraqueza força, a nobre dama lembrou-lhe maus momentos passados, a vasta obra realizada, e as suas obrigações como pai de família. E Liu, entendendo que não estava só, retomou coragem para agir em defesa própria. Não sabemos como derrotou traidores e presumidos cúmplices. O que sabemos é que, protegido pelos eunucos, com quem sempre fora cortês, conseguiu que a pena de morte que lhe tinha sido aplicada fosse comutada em expulsão para Huanzhou. Banido, mas não esquecido. Anos mais tarde o Imperador desinteressou-se dos denunciantes, reconheceu o erro e entregou-lhe a gestão do Alto Secretariado. Atribuiu-lhe o título de Duque de Yan, e cumulou-o de favores, na esperança de o fazer esquecer as injustiças de que fora vítima.

Opulência e declínio

Liu voltou a gozar as bênçãos de uma tranquila vida familiar, com a sua devotada esposa e os seus talentosos cinco filhos. Jian, o primeiro, obteve o grau de doutor e um cargo no Gabinete de Avaliação do Mérito; Zhuan, o segundo, tinha assento nos Censos; Wei,o terceiro, era assistente no Departamento dos Sacrifícios Imperiais; Ti, o quarto, era Comandante em Wannian. O quinto, o jovem Yi, era já suplente num dos grandes departamentos do Estado. Todos se tinham casado com jovens educadas, oriundas de boas famílias, e já tinham dado aos pais uma dezena de netos.
Por duas vezes banido para os confins do Império, Liu tinha conseguido vencer os obstáculos e retomar o caminho da honra, com o apoio da família. À beira da idade sénior, viajava, frequentava letrados e cortesãos. Por toda a parte, na Corte ou na província o seu nome era conhecido e respeitado, e a suas advertências eram ouvidas. Amante de arte e dos belos atavios, rodeado de luxo, diz-se que nos pátios para lá dos jardins, na ala oeste da sua mansão, viviam cantoras e bailarinas de celebrada beleza. Possuía vastos domínios, faustosas residências secundárias, cavalos soberbos, presentes que acumulara ao longo dos anos. Nada mais tinha a desejar!

Mas o homem sabe que um frágil fio liga tudo o que vive à obsolescência. O seu vigor declinava, a sua mente aspirava ao repouso, longe das intrigas da Corte e da luta por bens e prestígio. Quando adoecia, choviam as mensagens da Corte indagando da sua saúde. Os mensageiros cruzavam-se no caminho da sua casa, e os médicos afadigavam-se receitando elixires que deveriam devolver-lhe a energia e o poder.
Quando Liu sentiu o fim próximo, ditou a seguinte carta, dirigida ao Imperador:

Este vosso servo era apenas um estudante de Shandong, feliz nos campos em flor da sua terra, quando o destino lhe proporcionou um encontro com Vossa Majestade Imperial, e a Vossa generosa protecção o fez atingir os mais altos cargos, excepcionais distinções, e os mais prestigiosos favores. Portador dos estandartes imperiais, subiu os degraus do estrado de honra, indigno de tão insigne favor. Assim vivi, entre o Palácio e os confins da Província. Insignificante servo, que tantas vezes caiu em opróbrio, mesmo quando avançava prudentemente, como a raposa que caminha sobre gelo fino. Pensando no futuro, ignorei o inevitável avançar da idade. Este ano completo oitenta anos de vida, ainda no pleno usufruto da minha posição. Eis que a clepsidra chega ao fim do seu périplo. O meu corpo chega à decrepitude. O meu fim não tardará. Beneficiei indevidamente da Vossa benevolência; os trabalhos que concretizei não mereceram a luz do Vosso apreço. Sinto que vou desligar-me da Vossa presença sem ter conseguido expressar a devoção e a profunda gratidão que voto à Vossa Imperial Pessoa. Na despedida, permita-me apresentar este humilde testemunho da minha gratidão.

Em resposta, o Imperador fez-lhe chegar o seguinte édito:

A tua eminente virtude foi o Nosso principal suporte. Longe, consolidaste a orla de protecção; internamente favoreceste a harmonia. Cabe-te o mérito da paz e da prosperidade dos últimos vinte anos. Fazemos incessantes votos pela tua cura desde que sabemos dos teus recentes problemas de saúde. Está contigo a Nossa mais terna compaixão. Enviamos Gao Lishi, Comandante da Intrépida Cavalaria à tua cabeceira, para que Nos traga notícias do teu estado. Pelo amor que Nos dedicas, encarecidamente te rogamos que tenhas cuidado com a tua saúde. Na esperança de boas notícias, contamos com o teu completo restabelecimento.

Nessa mesma noite Liu morreu, e a sua alma juntou-se aos antepassados.

O despertar

Liu espreguiçou-se e bocejou. Estava na Hospedaria, deitado na esteira. O sábio taoista estava sentado a seu lado, e informou-o de que as papas de milho glutinoso ainda não estavam prontas. Em redor tudo estava como dantes. O crepúsculo ainda tingia de belas cores a estrada para Hanan. Erguendo-se, Liu viu na semi-obscuridade o brilho perfeito da cerâmica azul do velho travesseiro. “Não passou de um sonho?”, pensou.
“Assim são as etapas da vida”, confirmou o velho como se lhe tivesse ouvido o pensamento. O moço quedou-se perplexo um bom momento. No seu íntimo sabia que devia agradecer ao seu companheiro pela valiosa lição, e disse:
— “Acabo de experimentar a vida das benesses e a das humilhações; da miséria e da fortuna; de entender as causas das derrotas e das vitórias. Conheci todas as emoções: as alegrias do coração e a desolação das perdas. Mestre, ensinaste-me como livrar-me da escravidão do desejo. Para sempre serei grato à lição do travesseiro de cerâmica azul.”
Dito isto, com um suave sorriso, inclinou-se numa sentida saudação. Saiu para a estrada e assobiou ao seu poldro negro. Ecoou o trote nas lajes do pátio da hospedaria. Liu montou, saudou mais uma vez, e partiu.

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