Desassossego

Ninguém suporta o chilrear das aves matutinas quando a alba vem para começar o dia, que o dia acontece sempre, só a noite nos parece a primeira das nossas vidas, e estas que agora transpomos, de tão diminutas, até parecem traições.

Estamos no Solstício do Verão, e nós, os que envelhecemos, somos catapultados por uma energia exuberante que não sabemos seguir com o mesmo fulgor de outrora, que a abundância deste fluxo em vez de ressurreição provoca prostração. De facto, não existe ameaça maior do que tudo isto que se levanta em som, sensação, sentido e volúpia- nada se cala, esvazia, acalma, fenece – antes pelo contrário, tudo imite som, reproduz, replica, multiplica, e para os que aguardam a saída, tal exuberância pode ser demolidora.

«Viver é ser outro» in- Desassossego: mas que outro nos abastece daquilo que fôramos para sermos doravante? A isto ninguém responde. Somos outros sem dar conta que as coisas outrora amadas se esvaziam de sentido, e que temos ainda de atravessar o tempo carregados de outros que nos finitam até não sermos nada. Ao Verão e aos que virão, devemos olhá-los como luz do mundo, interpretar suas abundâncias, e não sucumbir ao domínio da esvaziante permanência.

– Ninguém se lembra de ter estado morto, mas lembramos bem o que foi estar vivo- Nós ficamos calcinados com o Livro do Desassossego, encantados e arrepiados até à alma, que todos nos reconhecemos naquele aluvião de coisas de extrema lucidez e absurdo, e há quem mergulhe ainda na dissolução final como naqueles filmes de Woody Allen quando parava a meio da ponte na corrida matinal com a frustrante sensação que mesmo em grande forma iria morrer. Para que serve então correr ou estar parado? É possível que somente um grande neurasténico saiba como produzir desistência e reflexão, e que tudo o mais seja uma realidade tão paralela quanto paralisante a ver pelos efeitos produzidos.

A impermanência do viver leva a longas reflexões que somente os mais permanentes ousam fazer, mas eles não são testemunhos da gregária existência da labuta para ultrapassar os estados abúlicos dos demais, que sem uma reserva de subtil escravatura nada saberiam transpor, e vamos desaguar na elaboração do que é necessário para se ser humano no meio desta perfilação- um estonteante grau de pensamento- que uma humanidade que se arrasta para manter viva a carcaça da sua existência, pilhando e sabotando tudo ao redor num primitivo receio de morrer de fome, essa, nunca experimentará tais deleites.

A fome tem sentidos vários, que a sua condição mais obscura se prepara para a fase canibal onde desassossegadamente já se vêem os Ogres do mundo abocanhando pedaços humanos para deitar nas lixeiras do desassombro todos aqueles que hão-de tragar. Mas tudo isto parece de uma finitude que estarrece, e o que assistimos é a uma euforia para acabar de vez com esferas de trepidação onde se irão extinguir todos os amanhãs que cantam. Este mal comum é tão paralisante que está em rota de colisão até com a necessidade.

«O coração, se pudesse pensar, pararia», eis Desassossego; e que mais? Se o cérebro pudesse sentir, pensaria; eis uma grata tarefa para órgãos desencontrados. Se pudéssemos adivinhar com o corpo seríamos captativos e premonitórios na linha de sucessão das fontes felizes, mas nem isso a vida nos deu para que possamos nos pacificar em solução e arte. Andamos constrangidos com o frenesim tribal e competimos como loucos por um lugar ao sol que se há-de apagar no grande inverno nuclear, e quando estivermos nas cavernas da História assistindo ao fim há muito programado de uma espécie apaixonante e louca, talvez aí, as lágrimas venham em nosso socorro. Agora somos apenas loucos, loucos a frio, a forma mais tenebrosa que consegue em sua pujança produzir monstros. É desarmante que tivéssemos construído este viveiro de trepidação com tanto desprezo formal perante as leis do amor, mas foi isto que fizemos. Uma amálgama de vidas que são delírio tremule, que dormem com os olhos abertos, têm deleites sarcásticos e feridos, e forjam martírios de que desconhecem as consequências.

A sustentabilidade é uma área muito vasta, e nenhum recurso ou fonte nos devolve a harmonia algures sonhada, e virá ainda um Sossego tão estarrecedor como foi o Desassossego desta inventada alegria.

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