Ainda Camões: Biografia imaginada (con)sentida

Investigadora auxiliar e Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM

Junho de 2025

Muito se tem escrito sobre Luís Vaz de Camões no seu quinto centenário, celebrado ao longo destes dois últimos anos, dado o ponto de interrogação, subsistente relativo à data exata do seu nascimento, 1524, 1525 ou sempre renascente? É no movimento perpétuo do seu eterno renascimento que o presente artigo se enquadra, desta feita na busca da biografia recriada a partir de poetas contemporâneos, leia-se nados e criados nos séculos XX e XXI, que estiveram, passaram ou simplesmente pernoitaram em sonhos em Macau. Alguns deles identificaram-se com o poeta nacional, outros dialogaram, distanciaram-se ou, simplesmente, o silenciaram.

Diálogos

Entre os que dialogaram com Camões, encontra-se Cecília Jorge1, que na obra dedicada ao escritor João Aguiar, com prefácio da Professora Vera Borges, medita e recria a identidade macaense, apresentando a valiosa perspetiva de filha da terra, na qual procura fornecer um olhar realista sobre o que é “ser macaense”, desconstruindo mitos. Já o antepassado português é apresentado na sua versão menos romantizada, no poema “Mestiçagem”, como “corsário, reinol, aventureiro”, na esteira da tradição cultural de Fernão Mendes Pinto. Assim sendo, é natural que Camões surja não no espaço solar do enaltecimento e mais no de diálogo, na sombra da desmistificação de uma ideia muito cara a uma certa intelectualidade macaense e portuguesa, a da “lusitanidade”, que remonta culturalmente ao poema épico Os Lusíadas e aos seus maravilhosos heróis a contracenarem com ilustres divindades do mundo greco-latino. Em “Fazendo de conta…” (sem esquecer as reticências), afirma o eu poético na última quadra do poema:

Pés de barro da lusitanidade

caravelas de vela solta

que se vão rasgando

no retorno à pátria

(Jorge, 2021, 33)

Ainda assim é a figura de Camões quem dá força ao poema, mesmo com uma “lusitanidade de pés de barro”, pois, numa leitura possível, enquanto as caravelas (ou naus) se mantiverem no mar, há um destino a cumprir, com pés de “carne e osso”, ou melhor dizendo, com pés íntegros; o espaço problemático parece surgir quando se dá o regresso que afasta os aventureiros da sua predestinada aventura marítima.

Discute-se o ideário camoniano, talvez, para o melhor defender.

António Duarte Mil-Homens2 será um poeta português, desta vez em diálogo aberto com Camões na sua obra Poemografia, no poema, sem título, iniciado pelo verso “Há uma gruta”:

Há uma gruta

No meu peito

E não é a da Camões.

Estrofes de sofrimento,

Karma de outras vidas,

Eco doutros poemas,

Estoiro doutros panchões.

Senda de muitas vindas,

Rasgo de muitas idas,

Sede da mesma fonte,

Falha de outras paixões.

(Mil-Homens, 2019, 16)

Há uma nítida identificação existencial do eu poético de Mil-Homens com o poeta quinhentista, muito embora a gruta não seja a mesma, porque eles concretamente não são a mesma carne, é, no entanto, idêntico o espaço poético em que habitam, um e outro, tecido a sofrimento, alimentado por um movimento constante entre cá e lá, em que se imagina ambos a pararem apenas para irem beber à fonte inspiradora e alimentadora das mesmas paixões.

Mitos e Imagens

Camões é fonte inesgotável de mitos, não apenas pelo seu percurso existencial, mas ainda pela epopeia poética em torno da qual se desenvolveu, desde a sua morte aos nossos dias, uma imagem nacional que contribuiu para a criação de um imaginário coletivo e de uma filosofia portuguesa em torno dos heróis nacionais, os lusitanos e a lusitanidade. Os ilustres descendentes dos lusitanos são um povo de aventureiros e poetas, todos eles gente ligada ao mar, onde vão buscar a sua maior inspiração. Assim somos apresentados e vistos pelas lentes de descendentes, que se estendem de Portugal ao Oriente, passando naturalmente pelo Brasil. Leem-se os versos de “Taprobana Blues” de Ricardo Portugal3 em De Passagens, com os quais muitos portugueses instintivamente se identificam, simpatizam ou, mesmo quando se distanciam, não são capazes de se manter indiferentes:

Mundo redondo o nome do pai

Que soe a Camões, curto e grosso

(…)

Todo marinheiro busca o porto,

todo poeta é marinheiro.

Português o mar oceano

que o porto abre pelas cristas

de outro mar escrito,

mal sagrado pelo fio da poesia,

texto de outros textos, um país,

mar morto sem bíblia.

Todo o português é mal nascido,

todo o poeta é português.

(Portugal, 2004, 55)

O apelo romântico do mar é mais forte nestes versos que cruzam marinheiros e poetas, ligando o mar indissoluvelmente a Portugal, “Português o mar oceano”, como um outro poeta maior, Fernando Pessoa4, já o dissera em “Mar Português”, vertido em sal, tanta lágrima de Portugal:

Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!

(Pessoa, 1986, 86)

É claro que “valeu a pena”, até pelos mitos que tem vindo a acalentar sobre esta alma portuguesa, recriada literariamente até ao presente.

O mar dos poetas, ou talvez o mar inspirado no Poeta Nacional, mas também o dos espíritos amorosos, onde mais uma vez Camões surge em lugar cimeiro. Este será aqui trazido pela pena de António Manuel Couto Viana5 no livro Até o Longínquo China Navegou… no longo drama em verso “Camões e Dinamene, Argumento para um Bailado”, no qual se narra o triste naufrágio de Camões e a sua história de amor com “Dinamene”6 . Couto Viana nada olvida, nem mesmo os versos poéticos do Poeta Nacional, que introduz no “argumento poético”. A reter a referência explícita a Os Lusíadas, que imbrinca na trama, a fim de explicar que a amada de Camões faleceu, mas o destino tinha outras contas para ele:

Há-de o poeta terminar o canto.

Se o não termina, Portugal é mudo.

E Deus deseja que esta pátria seja

A palavra do mundo. E Os Lusíadas

São a fonte e a raiz dessa palavra.

(Viana, 1991,84)

Certas imagens podem ser discutidas por alguns intelectuais, mas ficarão para sempre ligadas a Macau, como a de Camões ter estado no Território, sendo estreitamente relacionado a um jardim, homónimo, no qual figura um busto seu e a primeira, segunda e terceira estâncias do Canto I de Os Lusíadas gravadas no pedestal.

António Bondoso7 na obra Em Macau por acaso (1999) dedica-lhe o poema “Jardim de Camões”, contribuindo, com tantos outros poetas, incluindo os citados neste texto, para o consolidar da ligação da imagem cultural do Poeta Nacional a Macau, num poema de certeira simplicidade:

No jardim há flores

e pedras com história.

E a sombra do busto do poeta

recortada na laje

húmida do tempo

eterniza séculos de palavras!

(Bondoso, 1999, 41)

Camões na China e, especificamente, a sua morada de pedra em Macau são ainda cantados por José Augusto Seabra em “Da Gruta”, por José Valle de Figueiredo “na Gruta de Camões”, ou por Josué da Silva8 em “Camões a Oriente triste”, deste se traz a última estrofe:

Por fim aqui me encontro Insigne Varão

nesta gruta tão triste e tão sombria,

tentando nela haurir toda a paixão

que obriga com que desta pedra fria,

se oiça o palpitar de um coração

que fez de Portugal, a alma da Poesia.

(Kelen e Han, 2009, 305)

Mitos e diálogos, à parte, ou mitos e diálogos incluídos, a verdade é que ainda hoje os portugueses, errantes e migrantes, com mais ou menos portugalidade embutida, arrastam a tristeza, partilhando-a com Camões, alguns bem contrafeitos, devido à esperança de melhor e maior destino, aquele que só pode ser encontrado na “alma da Poesia”, com Josué Silva, ou “pátria da língua portuguesa” com Pessoa/Bernardo Soares .

Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo as opiniões expressas no artigo da inteira responsabilidade dos autores” https://www.cccm.gov.pt

Referências Bibliográficas

Bondoso, António. 1999. Em Macau por acaso. Macau: Edição de autor com o patrocínio do Gabinete do Secretário Adjunto para a Comunicação, Turismo e Cultura e Fundação para a Cooperação e Desenvolvimento de Macau.

Jorge, Cecília. 2021. Poemas para Macau. (2ªed.). Macau: Livros do Oriente.

Kelen, Kit, Lili Han. 2009. Poetas Portugueses de Macau. Portuguese Poets of Macau. Macau: ASM-Association of Stories in Macau.

Mil-Homens, António Duarte. 2019. Poemografia de Macau. Macau: Instituto Cultural da Região Administrativa Especial de Macau.

Pessoa, Fernando. “Mar Português”, in Mensagem. Blog Mar Português – Fernando Pessoa. Organização Internacional Nova Acrópole, Brasil. https://nova-acropole.org.br/blog/mar-portugues-fernando-pessoa/

Pessoa, Fernando. 1986. Mensagem. Tradução de Jin Guo Ping. Macau: Instituto cultural de Macau.

Portugal, Ricardo. 2004. Depassagens. Porto Alegre: Ameop – ame o poema editora.

Viana, António Manuel Couto. 1991. Até ao Longínquo China Navegou…Macau: Instituto Cultural de Macau.

Informações adicionais:

Cecília Jorge é natural de Macau, oriunda de uma ilustre família macaense. Veio a Portugal cursar Filologia Germânica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa na década de 70 do século XX. A partir de 1973, dedica-se ao jornalismo. Nos anos 80, desenvolveu atividade cultural através do Instituto Cultural de Macau e da Direção dos Serviços de Assuntos Chineses. Em 1990, passa a desenvolver atividade editorial, fundando com Rogério Beltrão Coelho, consorte, a editora Livros do Oriente. Na sua obra, tem aprofundado, sob diversos ângulos, a identidade cultural macaense, atenta às influências das matrizes culturais portuguesa e chinesa, como o testemunham quer os trabalhos publicados em revistas, por exemplo, a Revista Macau, quer os livros que nos tem vindo a legar como autora, onde aborda temáticas relativas à sociedade e cultura macaenses. Do seu labor poético, destaca-se a obra Poemas para Macau.

António Duarte Mil-Homens nasceu em Lisboa a 9 de outubro de 1049. Fotógrafo desde 1974, profissionalizou-se em 1984. Realiza desde 1989 cursos e workshops de fotografia, tendo participado em cerca de meia centena de exposições, individuais e coletivas, de fotografia e arte. Distingue-se também na atividade poética, quer em coletâneas, quer em obras individuais, destas últimas se referem Vida ou Morte duma Esperança Anunciada (2010), Universália (2019) e Poemografia de Macau (2019).

Ricardo Portugal nasceu em 1962 em Porto Alegre, a 28 de fevereiro. É licenciado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sendo diplomata. Foi professor de literatura brasileira e língua portuguesa, bem como, em Porto Alegre, organizador de atividades culturais na área de literatura, na Secretaria Municipal de Cultura. Participou em diversas atividades de divulgação de poesia, como recitais, espetáculos, publicação em periódicos e antologias de poesia. Aqui se destaca Depassagens, texto poético individual publicado em 2004.

Fernando Pessoa nasceu em Lisboa a 13 de junho de 1888, viveu na África do Sul, tendo frequentado a Universidade do Cabo. Aí se distinguiu como aluno, tendo sido premiado com o “Queen Victoria Memorial Prize”. Em 1905, regressou a Portugal para não mais voltar a sair do país, onde subsistiu penosa e solitariamente como correspondente estrangeiro, empregado de escritório e tradutor, colaborando esporadicamente em jornais. Da sua vasta obra poética, homónima e heterónima, apenas deixou publicada em vida a Mensagem.

António Manuel Couto Viana nasceu em 1923 em Viana do Castelo. Foi poeta, dramaturgo, ensaísta, memoralista e autor de literatura infantil. Foi também ator, encenador e empresário teatral, tendo dirigido a Companhia de Teatro Gerifalto e a Companhia Nacional de Teatro. Dedicou-se ainda ao teatro experimental, tendo sido ator, cenógrafo e encenador do Teatro-Estúdio do Salitre. Publicou, além de 40 títulos de diversos géneros literários, 25 obras em poesia, traduzidas em espanhol, inglês e chinês, das quais aqui se distinguem “No Oriente do Oriente” e “Até o Longínquo China Navegou…”

Dinamene pode ser uma forma aportuguesa de referir um nome chinês “Dina Mei”, que talvez possa ser traduzido por “Menina Dina”.

António Bondoso nasceu em Moimenta da Beira em 1950. Andou pelo espaço das antigas colónias portuguesas. Primeiro esteve em S. Tomé, onde cresceu, estudou e casou. Aí se profissionalizou na Rádio e também cumpriu serviço militar, que o levou a Nova Lisboa, em Angola. De regresso a Portugal em outubro de 1974, continuou ligado à rádio, primeiro na Emissora Nacional em Lisboa, depois no Emissor Regional do Norte, no Porto. Dedicou muita da sua atenção à área de formação, tendo participado no Centro de Formação de Jornalistas do Porto e na Fundação da Escola Superior de Jornalistas do Porto. Foi para Macau em 1994, tendo sido Chefe de Redação da TDM (Teledifusão de Macau), onde realizou uma série 31 Programas (Macau – O Oriente da História) para assinalar a Transferência da Administração Portuguesa de Macau para a RPC, em 1999. Possui mais de doze títulos publicados, dos quais se distingue aqui na poesia Em Macau por Acaso (1999).

Josué da Silva nasceu em 1930. Foi jornalista, tendo iniciado a sua carreira no Diário de Lourenço Marques em 1955, em Moçambique. Colaborou depois com vários jornais portugueses como o Século, semanário Actualidades, Jornal do Fundão, entre outros. Enquanto escritor, foi colaborador do jornal Artes e Letras e dos suplementos literários do Diário de Lisboa e de A Capital. A sua primeira experiência poética data de 1963, Cadernos da Montanha. Passou a residir em Macau desde 1990, tendo publicado, entre outras obras, a novela Amor Oriente, em 1993.

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