A Grande América (II)

(Continuação)

“What is great about America? Slavery, Hiroshima, Nagasaki, Indian Removal, segregation, Vietnam War, Watergate.” – Anthony Galli

O que conta para o império americano é a Europa Ocidental, “a mãe da América”, ou seja, França, Alemanha, Itália, Reino Unido, Espanha, Portugal e a Escandinávia como abertura para o Árctico e barreira anti-russa (anti-chinesa). Sem esquecer que os menos interessados em proteger a Europa de Leste são os euro-ocidentais. Questão de perguntar aos dinamarqueses, alemães e holandeses se concordam em dar aos polacos e lituanos um peso decisório igual ao seu. Por que razão um Espanhol lutaria contra Moscovo se um estónio decidisse organizar uma revolução colorida na Rússia? Segundo Maitra, o Mediterrâneo continua a ser central para os americanos, mas não o Mar Negro. O nosso Oceano Médio é o ponto fraco da Europa. O perigo não vem do leste, mas do sul. Não se vêm tanques russos na Bélgica. Mas vê-se um número crescente de crises no Mediterrâneo, provocadas pela decomposição de Estados, como a Líbia, por causa dos franceses e dos britânicos. É por isso que a França é um dos países ocidentais fundamentais para a segurança comum. No entanto, nunca percebi porque é que em certas questões, como a defesa total da Ucrânia, a França e a Polónia podem ter posições de falcão. É querer ser mais católico do que o Papa? Ao longo dos séculos, a França foi o bastião do realismo. O que é que aconteceu? A essa pergunta surge a resposta número três que se poderia intitular de revelação, responsabilidade e oportunidade que é o triângulo da nossa segurança.

Revelação no sentido apocalíptico acima referido. Trump deixa cair o véu da hipocrisia acordada entre americanos e europeus. Os primeiros fingiam garantir-nos uma protecção ilimitada e nós fingíamos acreditar neles. De tal forma que muitos de nós acreditámos. De facto, funcionou muito bem. Agradecidos, regozijamo-nos. Mas é agora claro que a superpotência não defende todos os aliados até ao limite, alguns a troco de nada, e certamente nenhum de graça. Onde o preço, mais do que monetário, é humano e militar. É uma questão de inverter o postulado de Norstad. Ou seja, ter homens e armas em número e qualidade decentes para que, em caso de guerra, não cairmos num campo de batalha dispensável, bombardeado por amigos e inimigos nucleares. Como teria acontecido se a Guerra Fria tivesse aquecido, o que foi por pouco. Responsabilidade. Se pensarmos que podemos enclausurar-nos num canto do planeta, gozando dos nossos privilégios, a história de onde emergimos vai bater-nos à porta. Vai saquear os nossos apartamentos. Caoslândia avança. Aproxima-se da Europa Mediterrânica pelo Sul e pelo Leste, com as suas torrentes de cólera e de frustração, com a disponibilidade para a violência de povos jovens e sofredores, educados para ver nos europeus de hoje os netos dos seus antigos senhores.

O parâmetro decisivo da nossa condição geopolítica é a soma dos factores demográficos e biológicos. A Europa do Sul é a região com o maior número médio de pessoas idosas no mundo, compreendendo actualmente 21por cento da população, com mais de 65 anos. Prevê-se que atinja 30 por cento em 2050 e a Europa diminui a sua população entre 2022 e 2050 em -7 por cento ou seja em declínio galopante até 2080 em comparação com os pelo menos dois mil milhões de pessoas espalhados entre a África boreal e o Levante. A nossa idade média deverá ser superior a 50 anos, contra os cerca de 25 anos dos que nos vão bater à porta. Não é com tanques que se evita esta crise. Militarmente, precisaremos de instrumentos de controlo e interdição navais, aéreos, cibernéticos e espaciais, a par de uma componente terrestre (jovem) credível. Acima de tudo, teremos de desenvolver uma política corajosa de coexistência e cooperação com os povos e regimes do Médio Oriente, do Norte de África à Península Arábica. Regiões onde ainda gozamos de uma boa reputação. No entanto, estamos a dissipá-la como uma pensão vitalícia, quando ela deve ser reconquistada e alargada todos os dias.

O plano Mattei de investimentos em África de 5,5 mil milhões de euros é uma gota no oceano. É urgente resolver os antigos diferendos com a margem norte do Mediterrâneo, a começar pela França. O hábito de tropeçarem uns nos outros no pré carré do qual a França é obrigada a evacuar prepara o terreno para o fracasso mútuo. Quanto aos americanos, não pedem mais do que os apoiar, desde que se ponham as botas no chão, se necessário. Oportunidade. A OTAN não é ATAN, com um “a” de aliança. Um lema em si mesmo indigesto para Washington, porque aludiria a uma igualdade impossível entre líder e seguidores. Estamos em dívida para com o apocalítico Donald Rumsfeld por ter revelado, na véspera da agressão ao Iraque, a figura da OTAN e de qualquer outra organização militar liderada pelos Estados Unidos ou por qualquer outro líder.

A missão faz a coligação e não o contrário. E é o líder que define a missão. O dogma viveu ameaçado pelos nossos decisores na síndrome do abandono. Estamos tão habituados a considerarmo-nos passivos, a confiar no “Número Um” como em “Nossa Senhora”, que ignoramos o estímulo que o aviso contém. No esquema transaccional dos alinhamentos tácticos que desenham o caos actual, poderíamos transformar a necessidade de confiar em nós próprios em primeiro lugar. Não nos reduzirmos a patéticos cavaleiros solitários. Ainda assim, alguns actos de pirataria suave ajudariam, considerando o quão querido é para os anglo-saxões o desporto de manter alguém honesto e o quão pouco eles nos consideram capazes de proteger os nossos interesses. No mínimo, surpreendê-los-íamos. Nenhuma relação se mantém se cada um considerar a fidelidade dogmática do seu parceiro como um dado adquirido. Um certo grau de infidelidade, ou seja, de iniciativa, ajudaria a cimentar a relação bilateral com os Estados Unidos. O pior acordo possível, sem dúvida alguma.

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