Lições chinesas

Ana Cristina Alves, Investigadora Auxiliar e Coordenadora do Serviço Educativo do Centro Científico e Cultural de Macau

Maio de 2025

Nas lições proverbiais chinesas fui descobrir grandes afinidades entre a Filosofia Popular chinesa espontânea, que corre de boca em boca, e a sapiência proverbial cristã, também ela feita para que os crentes, em todos os cantos do globo, a pudessem memorizar, repetir e divulgar.

Nada como o conhecimento do outro para aproximar e desfazer preconceitos, sendo um dos mais usuais que os chineses são extremamente pragmáticos e frios. Mas quando nos deparamos com provérbios como “Ama o próximo como a ti mesmo”, numa tradução direta e fiel ao original “爱人如己” (Ài rén rú jǐ), tal leva-nos a pensar duas vezes, parece não estar aqui em causa apenas uma questão de respeito, descarnado e formal, mas antes um forte sentimento pelo outro, não um qualquer, tão-só um afeto profundo, daqueles que compreende bem que vivemos interligados e que se os outros estão bem, nós ficaremos melhor. Corre então um amor à maneira cristã pela China sem que Cristo nunca aí tenha estado. Tal constatação pode conduzir-nos ao pressuposto da existência de estruturas universais, não apenas lógicas, inclusive no que se refere aos afetos, portanto sentimentais. Afinal, o egoísmo pode não ser uma tendência dominante, há de tudo: gente egoísta, agressiva e competitiva, como outros serão naturalmente altruístas, compassivos e cooperantes, prontos a reconhecer a universalidade do sentimento de amor, que cruza fronteiras em lugar de as erguer, aproximando pessoas das mais diversas classes sociais, etnias, geografias, como em “O amor não tem fronteiras”, numa tradução direta “爱情无阶级之分” (Àiqíng wú jiējí zhī fēn), aqui sendo particularmente enfatizadas as fronteiras sociais.

O conteúdo da mensagem ganha sentido pleno quando se percebe que o amor a si mesmo tem lugar numa cultura que muitos consideram errada e preconceituosamente apenas se concentrar no todo, na coletividade. A atenção à pessoa, ao particular e ao estilo e sentir de cada um, convive, em filosofias como a taoista há séculos com a valorização da coletividade, esta última tendência manifestamente inculcada e trabalhada pelo Confucionismo. O amor a si próprio, o cuidado pelo corpo e pela mente individuais, é enfatizado no dito proverbial “O amor e a virtude bem entendidos devem começar por nós”, que tem a seguinte correspondência em chinês “爱德从己起” (Ài dé cóng jǐ qǐ).

Quem imagine que na sabedoria proverbial apenas há lugar para enaltecer e cantar o amor relacional, já que os chineses não possuem qualquer filosofia religiosa que entoe o amor espiritual acima de tudo, à maneira cristã de Santo Agostinho, ficará surpreendido ao deparar-se com o seguinte provérbio “Onde manda o amor, não há outro senhor”, que numa tradução direta do chinês é mesmo “O amor acima de tudo” 爱情至上 (Àiqíng zhì shàng).

Caso restem dúvidas, há um outro dito de sentido complementar e no qual se transmite a ideia da integridade e unidade deste afeto, poderoso, que move montanhas no sentido cristão, quando se lê 爱情专一 (Àiqíng zhuān yī), numa tradução possível “O amor não pode ser partido”, numa outra :“Uma pessoa não pode ter o coração em duas partes ao mesmo tempo”.

Do ponto de vista psicológico, a aceitação do outro em termos amorosos terá de ser completa, pelo que os seus gostos, afetos, relações e objetos não poderão ser rejeitados, como se depreende da lição “Quem ama a Beltrão, ama o seu cão”, numa correspondência relativa para “爱屋及乌” (ài wū jí wū), que numa tradução literal seria “ama a casa e os corvos”.

Como se sabe os provérbios são suscetíveis de várias interpretações, por isso se dizem polissémicos, no entanto se forem perspetivados no seu conjunto e só depois como peças de um puzzle, parece não haver muitas dúvidas no que respeita à filosofia e psicologia proverbiais do amor chinês, que encontra eco nas filosofias eruditas do país.

No capítulo 67 do Livro da Via e da Virtude (《道德经》), também conhecido pelo nome do patriarca do Taoismo, Laozi (老子), encontra-se a primeira das três virtudes norteadoras do caminho do sábio, o amor, como se pode ler na tradução de Cláudia Ribeiro (2004, 139):

Eu tenho três tesouros

Que entesouro e retenho:

O primeiro é o amor (ci),

O segundo a frugalidade,

O terceiro é não ousar ser a vanguarda do mundo.

(…)

Pelo amor,

No combate, triunfa-se,

e, na defesa, é-se firme.

O Céu virá em socorro

e, com amor, protegerá

(我有三寶/寶而持之/一曰慈/二曰儉/三曰不敢為天下先 (​​… …) 夫慈以戰則勝/以守則固/天將救之/以慈衛之1)

Nota-se que enquanto na filosofia proverbial o sinograma utilizado para amor é 爱/愛2 (ài), na filosofia erudita do patriarca do Taoismo o termo empregue é 慈 (cí), ou seja, amor com uma forte carga relacional e espiritual; embora sejam palavras diferentes, ambas referem o amor, a primeira diz respeito ao sentimento mais físico e concreto, centrado no coração da pessoa e nas garras que a prendem; a segunda àquele mais relacional e geral, indica que o amor vem do interior do coração (内心nèixīn) , onde tem as raízes, despontando como qualquer planta. Porém, a verdade é que ambos os termos se centram em pessoas, ou melhor nos seus corações, em conexão afetuosa com os outros, numa ligação tão forte que chama a atenção do próprio Céu (天 tiān), potência impessoal máxima, este assegura a vitória em todas as frentes de batalha, seja na vanguarda ou na retaguarda, quando se combate e se defende por amor.

Já o patriarca do Confucionismo, Confúcio (孔子), no capítulo doze, intitulado posteriormente a Face Profunda, dos Analectos ( 論語•颜渊第十二,22) define a principal virtude da escola, a benevolência ou humanidade, (仁 rén) como um ato de amor ao próximo, mantendo o termo do vernáculo tradicional 爱 (ài): “Fan Chi perguntou o que era a benevolência, ao que Confúcio respondeu, «amar as pessoas».” (樊遲問仁,子曰 「愛人3。”) É neste contexto de amor ao próximo, que se deve entender uma das principais máximas da filosofia confucionista, que surge no mesmo capítulo ( 論語•颜渊第十二,2) “não faças aos outros o que não desejas para ti” (己所不欲勿施於人Jǐ suǒ bù yù wù shī yú rén).

O essencial na filosofia confucionista será então garantir o amor ao próximo em termos de respeito ou humanidade para com os outros, de modo a assegurar o normal funcionamento da sociedade, sem sacrifícios extremos nem explorações exageradas, Dada a proverbial contenção dos confucionistas relativamente aos sentimentos, estes são importantes e úteis mas não devem extravasar os limites da racionalidade, quer dizer, os afetos, mesmo o melhor deles todos, terá de ser medido, controlado e ritualizado em nome da harmonia coletiva. Assim sendo, o amor que move as amizades, sobretudo as intelectuais, é o mais enaltecido, como nos é recordado no final deste capítulo ( 論語•颜渊第十二,24):

Zeng Zi afirmou: “Um cavalheiro recorre ao saber para fazer amizades e aos amigos para cultivar a benevolência4” (曾子曰:君以文會友,以友輔仁。)

Por fim, também a filosofia budista, sobretudo da linha da Meditação Chan (禅 Chán) ou Zen, enaltece o amor à humanidade, mas de forma indireta, ao chamar a atenção para o coração e para a identificação de Buda com o coração, à maneira do Quarto Patriarca Daoxin (道信) e da sua máxima proverbial sobejamente conhecida “O coração é Buda e Buda é o coração” (非心不问佛,问佛不非心Fēi xīn bùwèn fú, wèn fú bù fēi xīn). Aqui se chega ao amor por via indireta, só um coração iluminado é capaz de amar a Buda, como não é de surpreender no quadro desta filosofia, afinal o que é Buda senão o próprio amor que se expressa não num coração egoísta, doente, egocêntrico, mas num coração capaz de estabelecer relações, saudável, altruísta e sem ego, ou vazio, porém não indiferente ao outro? Tal o confirmam as ações sociais e humanitárias do Budismo da via Mahayana, que teve aceitação na China e se desdobra em obras coletivas como a construção de instituições de ensino, hospitais, centros de solidariedade social, numa atuação proselitista em tudo semelhante ao historial da Igreja cristã e seus missionários espalhados pelo mundo.

Referências Bibliográficas

Lansheng, Jiang (comp.) 1997. 100 Excerpts from Zen Buddhist Texts. 《禪宗語錄一百則》Hong Kong: Commercial Press.

Ngan, António André. 1998. Concordância Sino-Portuguesa de Provérbios e Frases Idiomáticas. 中葡對照成語集. Macau: Associação de Adultos de Macau.

Ribeiro, Cláudia (Trad). 2004. 《道德經》O Livro da Via e do Poder. Edição Bilingue. Mem-Martins: Publicações Europa-America.

Xin Guanjie (辛冠洁) (Org. e Trad.) 1994. 《論語》.Tradução para chinês contemporâneo Cai Xiqin (蔡希勤) e tradução para Inglês de Lai Bo (赖波) e Xia Yuhe (夏玉和). Beijing: Sinolingua.

Referências:

Texto em chinês clássico.

Amor em chinês simplificado e tradicional.

Texto em chinês clássico.

Um cavalheiro nos tempos antigos chineses era um senhor e um potencial governante.

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