Daniel Pires, editor de Pessanha

O evento que aconteceu no início deste ano na Biblioteca Nacional, Daniel Pires, mestre de investigadores celebrou um percurso discreto, muito ligado a Macau. Não apenas por isso, mas poucos nomes estão tão ligados à figura de Camilo Pessanha quanto o de Daniel Pires, que se tornou, ao longo de décadas, mais do que um leitor e um editor, o generoso construtor de ferramentas com que outros puderam ler o poeta.

Quem já leu autores, com vontade de os estudar, sabe o quão precioso é haver em final de livros um índice onomástico. Do reino do papel, quase defunto, foi substituído por outras coisas. Mas diria eu que a principal atividade de Daniel Pires, em torno de Camilo Pessanha, é, sobretudo, a criação de instrumentos de investigação, a exemplo de um índice onomástico. Não são visíveis, não são vistosos, não são sequer autorais muitas vezes, e no entanto são fulcrais.

As suas atividades em torno da obra de Pessanha não se encontram encerradas, sempre in fieri. Assim, não diremos “foram”, pois continuam: organizar e editar a prosa, construir uma cronologia da vida e da obra, reunir e catalogar a biblioteca privada do poeta, editar a correspondência. Por exemplo, o trabalho de reconstituição da biblioteca pessoal do poeta, publicado no volume Clepsydra 1920-2020 – Estudos e Revisões (Documenta, 2020), organizado por Catarina Nunes de Almeida, e de que versões prévias haviam saído em outros locais.

Já a cronologia da vida e da obra de Pessanha segue um percurso paralelo, iniciado com a Exposição Biobibliográfica Itinerante (1991), organizada por Pires em Macau, onde se publicou o seu catálogo, e aprofundada ao longo dos anos em vários outros suportes, culminando numa versão amadurecida no volume Correspondência, Dedicatória e Outros Textos (BNP, 2012). Essa cronologia — longe de ser uma repetição das que saíram nas edições anteriores —é, na verdade, uma versão cada vez mais alentada.

O retrato do poeta que, graças a Daniel Pires, se afastou da figura abúlica com que a crítica tantas vezes nos deixou. Hoje sabemos, com documentos na mão, que Pessanha participou ativamente na vida cívica de Macau, envolveu-se em comissões, foi professor, juiz, tradutor, membro da Sociedade de Geografia (sócio nº 4421, como descobriu o próprio Pires), e manteve uma rede de relações profissionais e políticas que fazem dele um agente do seu tempo. A correspondência editada em 2012 revela, com clareza, o patriotismo republicano e laico de quem denunciou o desinteresse do Estado português por Macau e procurou melhorar o funcionamento do sistema judiciário e pedagógico local. Importa também notar o valor das dedicatórias do poeta, cuidadosamente reunidas por Pires nesse mesmo volume. Num autor de escrita tão contida, essas breves ofertas manuscritas de livro são documentos que ampliam a espessura da obra, revelando muito das redes pessoais e intelectuais de Pessanha.

A intervenção de Daniel Pires no domínio editorial inclui ainda a coletânea Homenagem a Camilo Pessanha (1991), organizada com o Instituto Português do Oriente e o Instituto Cultural de Macau, e sobretudo Camilo Pessanha, Prosador e Tradutor (1993), também publicado no território, onde pela primeira vez se reúne de forma sistemática a prosa e as traduções do poeta. Esta edição permanece, ainda hoje, a recolha de referência da prosa de Pessanha — uma obra que merecia ter conhecido edição em Portugal, o que, inexplicavelmente, nunca aconteceu. Apenas os textos sobre a China foram republicados pela Vega, também em 1993, numa edição intitulada “segunda”, embora a primeira tenha saído em 1944, pela Agência Geral das Colónias, e da responsabilidade de outro organizador.

Mesmo a Clepsydra, território sensível e disputado por tantos editores, não lhe escapou. Veja-se a sua proposta de edição, publicada pela Livros Horizonte em 2007 com belas ilustrações de Rui Campos Matos. O ouro da Clepsydra foi sempre o mais cobiçado. Mas Daniel Pires mostrou-nos que também na prata da prosa e no bronze dos textos aparentemente secundários como cartas e documentação árida se esconde ouro de não menor fulgor.

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