Ano da serpente e ofiússa

Lunar, o calendário chinês não deixa margem para dúvidas que ao conquistar o mundo imprimiu em nossas vidas arquétipos adormecidos e características marcantes onde todos ganhamos nessa vasta esteira de culturas e civilizações. Há já algum tempo que também festejamos este ciclo extremamente belo e iniciático como se incorporássemos mais um rito àqueles conhecidos e deles nos tornássemos cúmplices e por isso mais fraternos.

Começa na primeira Lua-Nova do calendário gregoriano aprovado pela China em 1912, e como de um calendário lunar se trata em seu bestiário, ele reinará por um ano a Oriente, enquanto nós, vamos ainda demarcando mês a mês o código astral em nossas Estações onde o ponteiro roda em ciclo solar. Existe porém neste novo ano uma chamada de atenção para as nossas ancestrais raízes numa fascinante e estranha simbologia, que quanto à parte tangível, há ainda que saber diferenciar uma serpente de uma cobra.

Ofiússa ou a Terra Das Serpentes! — Pois bem, assim foi denominado pelos gregos em tempo muitíssimo remoto o actual território português, a terra dos «ofis», um povo montanhoso que vivia mais a norte indo até à Galiza e que provavelmente se situava também na foz dos rios (foz de Ofir).

Para os gregos este local era no mar desconhecido, mas Ulisses, o bravo herói, não se deixava amedrontar pela vastidão marítima, e crê-se que aportou nestas costas, e tanto ele como seus homens ficaram estarrecidos pela beleza destas terras, onde se crê, reinava uma rainha de vontade indómita com aparência de serpente, fascinante, sedutora, e extremamente afável para os que descobriam o seu reino vindos de extremidades distantes, ela parece ainda uma espécie de Urizen quando do alto das colinas onde hoje é Lisboa, dizia: «Sou eu rainha para toda a eternidade». Mas, e não raro, os fascinantes também se apaixonam, que ao ver Ulisses, caíra na própria armadilha da sua carga magnética. Ulisses, que agora à distância nos parece ter sido um homem difícil, recusou-a, mas não sem antes por amor ao local que considerou o mais belo do mundo, o ter nomeado de Ulisseia, em pleno território da Serpente, a magnífica.

Muito mais tarde quando o manuelino imperou, nós iriamos recuperar esse condão lendário em cordas -serpentes aladas- correntes que sobem, fios que descem, círculos e sinuosidades, encontrando de facto uma das mais eloquentes manifestações artísticas que impregnaram o nosso olhar e jamais nos subjugariam a uma linha recta.

A perfusão de todo este elenco para se colocar de pé com os pesos que uma certa horizontalidade transporta, talvez tenha sido, e é, a deriva da Serpente que em nós se não esgotara (que no fundo sempre fomos muito pouco góticos). Na modalidade psíquica foi diabólica, e poderemos sentir-lhe ainda a inércia, a falta de critério que devora tudo que lhe sai ao caminho, e essa paz medonha de quem se crê hipnótico, características próprias de demónios a “rebentar pelas costuras” com pupila sagaz para um estranho rastejar que não é subserviência mas uma incrível e tenaz produtora de “venenos”.

Também a arquitectura octogonal que nos foi tão querida nos remete para o bastão de Mercúrio e suas duas serpentes entrelaçadas que ao formarem inúmeros oitos quase desaguam nas nossas muito ilustres Capelas Imperfeitas. A razão por terem sido nomeadas assim, prende-se, quem sabe, a esse estranho mundo sem abóbodas, tectos e telhas, que nos remete para um movimento anti-foguetão e a uma impressão que se inscreve na mandala do infinito sempre em círculo, que afinal, tudo no vasto universo parece serpenteante. Quanto a nós, ao sermos dúbios não significa ainda ser maléfico, cabemos na dualidade e mutabilidade das nossas percepções, mas o que outrora nos fora propostos era mesmo uma triangulação que superasse a definição redutora de um certo conceito binário.

«Ophis» em grego, mas também a vara de Moisés nos indica que um objeto estanque e a direito se pode converter numa outra coisa quando se transforma em flexibilidade e superação. As serpentes gostam de leite, e há passagens belíssimas de como respondem ao chamamento de terrinas repletas, como aquelas que Ernst Junger nas «Falésias de Mármore» nos descreveu, dizendo que se dispunham nesse banquete fazendo um ardente símbolo solar.

Quem nunca a viu diante de si? Caleidoscópica… fascinante…imprópria, mas nunca banal. Afinal, nem foi ela que matou Jesus, ao que consta, apenas lhe fez companhia. Quem o matou foram os homens.

Um grande Ano para o mundo.

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