A sensibilidade trágica perdida dos Estados Unidos (II)

“American power is not what it used to be, and cannot coerce the way it used to … and that power is not coming back.”

Robert D. Kaplan

A cultura americana tem dificuldade em reconhecer esta verdade devido à falta de um elemento crucial da tragédia que é a capacidade de apresentar os argumentos de ambos os lados como justificados e necessários. Além disso, a tragédia ensina que a justiça só existe se nos opusermos à unilateralidade dos nossos argumentos. Esta é uma forma de notar que a justiça não é justificada. É uma maneira tão boa como qualquer outra de detectar o cansaço americano para se tornar curioso, para legitimar o ponto de vista do outro integrando-o no seu próprio raciocínio. Não para nos rendermos ao inimigo; para o compreendermos, para o derrotarmos melhor. Citando a classicista Edith Hamilton, Kaplan defende que “a tragédia é a beleza das verdades intoleráveis”. E o que é mais intolerável do que as razões do inimigo durante uma guerra?

Segundo o autor, a sensibilidade trágica não é fatalismo, relativismo, cinismo ou quietismo. É discernimento. O que é senão um hino ao raciocínio geopolítico e ao seu método de dar igual peso, na análise de um conflito, aos argumentos de todos os actores? O problema, segundo Kaplan, reside na formação académica da classe dirigente. Conclui explicitamente que os clássicos da literatura são guias mais rigorosos e mais úteis do que qualquer metodologia das ciências sociais para aqueles que não tiveram uma experiência pessoal de guerra e de morte. Critica as ciências sociais e a gestão pela mesma razão, pois ambas têm a presunção de poder e dever de melhorar o mundo. A primeira acredita que teorias bem pensadas não só reflectem a realidade como podem aperfeiçoá-la através da aplicação da política correcta.

A segunda concebe a missão da América como a redenção do planeta e, por conseguinte, todas as questões de política externa são solucionáveis. O entrelaçamento de poder entre estas ideias é muito mais profundo do que se possa pensar. Para o apreciar, mergulhemos na história. Politologia é império. O poder americano sempre utilizou abundantemente as ciências sociais para legitimar a sua expansão. As ciências sociais, como é sabido, surgiram no final do século XIX como uma ramificação do positivismo e do progressismo e a ideia é encontrar as leis através das quais a política e a história funcionam, a fim de melhorar constantemente a sociedade e orientá-la para um futuro melhor.

Na América, porém, está ligada a outra corrente. No final do século XIX, os Estados Unidos estão em rápida ascensão. Após a Guerra Civil, transformam-se rapidamente numa potência manufactureira. Completaram a conquista do Oeste. Começam a adquirir possessões ultramarinas. Neste contexto, a crença de que a América está destinada a redimir o mundo é galopante. A política deve ser o instrumento de elevação das massas, no país e no estrangeiro. Para tornar o “Velho Mundo” mais parecido com o “Novo Mundo”. Estabelecer uma ordem internacional baseada no direito. A guerra será substituída pela arbitragem. A ameaça pela persuasão. A rivalidade pela razão. Tudo sob o olhar benigno da América. Estas ideias ganham força quando os Estados Unidos se tornam um império. Uma figura é emblemática; Elihu Root. Advogado nova-iorquino, Secretário da Guerra e Secretário de Estado entre 1899 e 1909, é um fervoroso apoiante da anexação das Filipinas e pertence ao grupo de elite dos estadistas que, com Theodore Roosevelt e Alfred Mahan, afirmam os Estados Unidos como uma grande potência mundial.

Com uma particularidade em relação aos seus colegas o de acreditar firmemente que a América deve conduzir o mundo para uma nova forma de relações internacionais baseada no direito, na paz e no comércio. Concebe o direito internacional como um instrumento para erradicar a guerra e o egoísmo, para construir bons hábitos a serem alargados entre os Estados. Um esforço a que se dedicou sem descanso, com 24 casos de conflitos entre Estados terminados por tratados de arbitragem, que lhe valeram o Prémio Nobel da Paz em 1912. Longe de ser um pacifista, apoiou a mobilização geral para entrar na I Guerra Mundial. Embora com algumas reservas, apoiou o projecto falhado de Wilson para a Liga das Nações. Root é Wilson antes e durante Wilson. Há quem lhe chame, incorrectamente, o pai do imperialismo progressista.

É certo que, como fundador e director do Council on Foreign Relations, de 1918 até à sua morte em 1937, e como primeiro presidente do Carnegie Endowment for International Peace, dois dos principais grupos de reflexão do país, moldou profundamente a ideia da classe dominante sobre o papel superior e moral da América no mundo. Isto mede-se no projecto, não muito distante, de criação de um governo mundial e de uma nação global, lançado noventa anos mais tarde por outro demiurgo; Strobe Talbott, antigo secretário de Estado de Clinton, director de longa data da Brookings Institution, mentor de Antony Blinken e Jake Sullivan.

Estas ideias fluem para as ciências sociais, informam-nas. Permanecem protegidas dentro dos muros das academias, mesmo perante derrotas flagrantes, como a eclosão de guerras mundiais. E, depois da II Guerra Mundial, entram firmemente no governo, quando Washington saqueia as universidades em busca de teorias e de pessoal para gerir a ordem internacional do pós-guerra. É o caso de Henry Kissinger e Zbigniew Brzezinski, que ascenderam às burocracias graças às suas carreiras universitárias. No entanto, não foram as ciências sociais que determinaram o comportamento do poder. Os próprios Kissinger e Brzezinski tiveram êxito precisamente porque se afastaram daquilo que pregavam na Ivy League.

(continua)

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