A última noite do Império III

por Luis Nestor Ribeiro (1)

Os Sentimentos da População

Nas ruas de Macau, os principais acontecimentos da transição eram atentamente seguidos por milhares de pessoas, que podiam assistir igualmente ao momento histórico difundido pela televisão, através de grandes ecrãs instalados nos principais pontos da cidade. A maioria estava em silêncio, observando fixamente o desenrolar dos eventos. Alguns choravam, outros permaneciam em estado de contemplação. Era um momento de despedida, mas também de esperança. Afinal, o futuro de Macau estava, a partir daquele momento, nas mãos da China.

Ao passar a meia-noite, os primeiros instantes do dia 20 de Dezembro de 1999 foram marcados pelo eclodir de uma nova era pós-colonial, com a retirada dos símbolos oficiais portugueses existentes nos organismos e serviços públicos, tendo sido minuciosamente substituídos por insígnias alusivas à nova Região Administrativa da R.P.C., num perfeito sincronismo em todo o território e ilhas da Taipa e Coloane, incluindo os distintivos usados em fardas, uniformes e viaturas oficiais ao serviço dos elementos das forças policiais e autoridades locais. Foi uma longa madrugada, muito fria e envolta num extenso manto de nevoeiro.

Ao raiar da aurora, havia uma sensação clara de que uma nova era tivera início. Era o cair do pano sobre a última parcela de território que pertencera ao antigo Império Colonial Português, formado a partir do séc. XV em diversas regiões de três continentes, onde a presença portuguesa se fez sentir, deixando marcas indeléveis como a cultura e a língua, em África, América e na Ásia. De notar também que se assistia ao último arrear de bandeira de uma nação ocidental que administrara um território na Ásia. A China soube reservar e outorgar esse papel histórico a Portugal, com discrição e elevação, impondo à coroa inglesa que o Handover de Hong-Kong se realizasse antes da transferência de Macau, não obstante as diligências infrutíferas protagonizadas pelos diplomatas de Sua Majestade, tentando em vão, negociar um hipotético adiamento. Era o reconhecimento tácito do cordial relacionalmente institucional luso-chinês, firmado num entendimento recíproco duradouro, em contraste com a natureza arrogante e beligerante da presença britânica em H.K., que resultou na sua ocupação pela força em 1842. Nos dias que se seguiram, as bandeiras chinesas e as da Região Administrativa e Especial de Macau tornaram-se uma presença constante, a esvoaçar nos mastros dispersos em vários locais estratégicos, incluindo as antigas fortalezas construídas pelos portugueses nas suas colinas.

Reinava a euforia por Macau ser finalmente governado pelas suas gentes. Em termos de segurança, assistiu-se a um regressar à normalidade, sendo evidente que as novas autoridades não iriam permitir que se repetissem actos semelhantes aos cometidos durante os últimos anos da década de 1990.

Consequências: Um Novo Capítulo

As Mudanças Económicas

O impacto económico da transferência de administração foi sentido quase imediatamente. O jogo era uma das principais atracções de Macau, sendo explorado nos diversos casinos pertencentes à STDM(15) em regime de concessão exclusiva. A RAEM – Região Administrativa Especial de Macau assistiu a uma verdadeira explosão no desenvolvimento desse sector nos anos seguintes. A liberalização do jogo acompanhada de enormes investimentos de consórcios internacionais, transformou Macau num dos maiores centros de entretenimento do mundo, rivalizando com Las Vegas.

A cidade, que antes era relativamente pacata, passou por um boom de progresso e crescimento económico vertiginoso. Novos hotéis de luxo e complexos de entretenimento surgiram, atraindo milhões de turistas todos os anos, principalmente da China e países asiáticos vizinhos. As receitas do jogo passaram a sustentar a economia de Macau de uma forma ainda mais vincada.

Mas esse crescimento económico trouxe consigo novos desafios. A dependência excessiva do jogo gerou preocupações sobre a sustentabilidade a longo prazo da economia. Além disso, a disparidade entre os rendimentos dos que trabalhavam nos casinos e a restante população aumentou, criando alguns focos de apreensão.

As Transformações Sociais

A influência da cultura chinesa cresceu exponencialmente, especialmente entre os jovens. O sistema educacional foi reestruturado para incluir mais aulas em mandarim bem como de educação cívica e patriótica, com a língua portuguesa a perder a projecção que conheceu, passando a ser cada vez menos utilizada no quotidiano.

As escolas e universidades passaram a integrar ainda mais os programas curriculares do sistema nacional de ensino ministrado na R.P.C., com um foco maior nas disciplinas científicas e menos ênfase nas humanidades. Para muitos jovens, isso representou uma oportunidade de crescer num ambiente mais competitivo, com acesso mais fácil a empregos na China. Contudo, para outros, significou a perda de uma parte importante da sua identidade.

A outra face do desenvolvimento tem exposto alguns desequilíbrios. Enquanto muitos dos que trabalham na indústria do jogo e sectores afectos ao turismo prosperaram, outros segmentos da população, especialmente os idosos, começaram a sentir o peso do aumento do custo de vida. A gentrificação de áreas históricas também fez com que algumas famílias fossem deslocadas, perdendo o acesso a habitação acessível.

O Governo da RAEM tem implementado diversas acções no sentido de mitigar os desequilíbrios sociais provocados pela inflação e pelo crescimento do sector do jogo, que representa uma parte significativa do PIB, com o objectivo de promover mais justiça social e equilibrar o desenvolvimento económico. Algumas iniciativas recentes incluem a diversificação da economia com incentivos para o fomento de outras indústrias, como turismo não relacionado com o jogo, tecnologia, saúde e educação. Foram lançados programas de formação para sustentar a criação e crescimento de PMEs, com atribuição de subsídios, diversificando assim a base económica e criando empregos em sectores alternativos.

Para combater a inflação têm sido implementadas iniciativas para evitar a especulação de preços, especialmente em habitação e produtos de consumo básicos. Outra medida que tem sido bem aceite é a atribuição de subsídios e benefícios directos à população, como cheques de consumo e aumentos nos apoios sociais, para abrandar o impacto do aumento dos preços, especialmente em alimentos e bens essenciais. Tem-se assistido a um aumento nos investimentos em programas de habitação pública, oferecendo mais unidades de habitação social para famílias de baixos e médios rendimentos, com o propósito de combater os custos elevados dos imóveis no mercado privado.

O sistema de saúde público de Macau também tem captado investimentos, com a expansão de serviços de saúde gratuitos ou subsidiados para garantir que toda a população tenha acesso a cuidados médicos de qualidade

Tenho conseguido acompanhar de perto a evolução de Macau, que não pára de me surpreender. Na visita mais recente realizada em meados de Setembro de 2024, dei-me conta dos avanços que tem registado, em vários domínios, como a melhoria da rede de transportes públicos, com autocarros modernos e climatizados, que cobrem praticamente todo o território.

O espaço público está particularmente bem cuidado, com uma atenção particular na harmonização dos canteiros, jardins e zonas verdes, impecavelmente tratadas e integradas nas novas áreas urbanas em expansão. A cidade está muito mais limpa, um efeito positivo pós-pandemia COVID-19, sendo bastante evidente o grau de higienização dos espaços interiores dos mercados públicos.

A rede viária foi melhorada, com novas acessibilidades e mais disciplina no controlo dos fluxos de trânsito pedonal e automóvel. A partir de Outubro a quarta ponte de ligação à Taipa permitiu um melhor escoamento do tráfego com destino às ilhas.

Os Desafios

A preservação da identidade cultural de Macau tornou-se um desafio cada vez maior, numa perspectiva de manter a especificidade que lhe conferia o segundo sistema, derivado do axioma político preconizado com grande pragmatismo pelo grande líder Deng Xiaoping, de um país, dois sistemas. Embora os macaenses ainda celebrem as suas festas tradicionais e mantenham algumas de suas práticas culturais e religiosas de inspiração cristã, a influência crescente da China continental começou a ofuscar muitas dessas tradições. A arquitectura de inspiração colonial ainda permanece visível, mas novos arranha-céus e complexos de casinos começaram a alterar a fisionomia e a dominar o horizonte da cidade, quebrando a noção de escala e rompendo alguns enquadramentos que faziam coabitar o antigo com o novo, numa pequena parcela de território. Não obstante alguns desequilíbrios provocados no tecido urbano pelo inevitável surto de desenvolvimento, é importante elogiar o empenho do governo local em concretizar o reconhecimento oficial pela UNESCO em 2005, de um vasto conjunto de monumentos e edifícios classificados do seu centro histórico, como Património Mundial da Humanidade, um legado histórico incontornável da sua herança cultural, de matriz luso-chinesa.

Reflexões Pessoais: Uma Jornada Íntima

No Papel de Protagonista

Numa perspectiva mais íntima, como realizador e observador atento da realidade que me rodeia, a transferência de Macau foi mais do que um mero evento histórico; foi o revisitar de uma epifania, uma profunda transformação pessoal. Desde a minha infância na ex-colónia de Moçambique e depois mais tarde em Portugal, sempre tive uma enorme curiosidade pela China e pelo Oriente, provocada em certa medida pela convivência desde tenra idade com colegas chineses que frequentaram as mesmas escolas, partilharam brincadeiras no recreio e competiram nos mesmos recintos desportivos, desde a escola primária até à conclusão do ensino secundário, – na cidade da Beira, – onde residia uma enorme comunidade chinesa(16). Deixei-me apaixonar pelas suas gentes, pela sua maneira de ser, pelos aromas exóticos que emanavam do bairro chinês e que me marcaram para o resto da vida. Seduzido pela sua cultura milenar, não resisti ao apelo de rumar a Macau no início da década de oitenta do século passado, correspondendo a um convite do Governo de Macau dirigido a um pequeno grupo de profissionais da RTP para colaborar no projecto de criação de uma nova estação TV em Macau e formar os futuros quadros locais. Finalmente pude concretizar esse desejo de imersão na realidade que sempre idealizei desde muito novo, fruto de um apelo que as culturas distantes exerciam em mim, inspirado pelas histórias exóticas que lia incansavelmente, mas que os livros não podiam captar completamente. Quando cheguei a Macau, ainda jovem, sedento de aventura e de emoções fortes, não fazia ideia de que iria testemunhar uma das maiores transições políticas da história moderna.

A minha jornada em Macau foi uma lição de vida, de aprendizagem contínua. Conheci pessoas incríveis — chineses, portugueses, macaenses e expatriados —, cada uma com sua própria visão do que significava viver naquela cidade singular. Muitos continuam em Macau e suscitam-me os mesmos sentimentos de afecto como os familiares mais próximos. Passaram a integrar a bagagem existencial que transporto, são parte da minha família, para além dos meus filhos nascidos em Macau. Acompanhei de perto as mudanças políticas e económicas, mas também fui sendo moldado pelo escopo das transformações humanas que a transição operou.

Marcas indeléveis de uma realidade fugidia

A principal lição que assimilei com a experiência de cobrir a transição de Macau foi a de que identidade é algo de fluido, em constante transformação. Macau, como território, sempre foi uma terra de fronteira — geográfica e cultural, — e a sua identidade é algo difícil de definir de forma precisa. Se tentarmos captar a sua essência numa fotografia, ela revelar-se-á com um não-lugar(17) de contornos fugazes. Macau é um exemplo perfeito dessa nova dimensão da modernidade, como se fosse um lugar sem lugar. Cada vez mais passamos o tempo em hubs(18), locais efémeros de transição e de passagem, como hotéis, mega-shoppings, terminais, gares e aeroportos e numa realidade plasmada em écrans e decorações cénicas construídas em pladur, reproduzindo modelos virtuais numa fantasia hiper-realista, vivida cada vez mais à frente de gadgets e terminais de computadores. Esta transfiguração do real resulta numa progressiva alteração dos comportamentos e rotinas sociais nas grandes metrópoles, apenas perceptível de forma parcial e transitória, numa dimensão cada vez mais povoada pelo excesso de bits de informação digital.

A realidade diáfana que os múltiplos écrans e néons dispersos na sua malha urbana convocam e projectam é de uma modernidade de contornos líquidos(19). Eternamente sedutora, esquiva e desconcertante. A sua essência flutuante brota das inúmeras camadas que se vão sobrepondo, numa heterotopia plasmada em contínuo, num processo em constante mutação. Descrever essa realidade fugaz numa narrativa impõe uma disciplina de reescrita constante, como se estivesse a produzir um palimpsesto, sem princípio nem fim. A transferência para a China não apagou essa complexidade intrínseca de Macau; apenas a transformou.

A experiência que vivi na régie de realização ao dirigir uma equipa numerosa e multicultural, constituiu um desafio enorme em termos profissionais. Nada podia falhar. O evento iria ser transmitido em directo para todo o mundo, pelos principais canais e cadeias televisivas. Recuo no tempo e recordo um momento único.

Há um momento sem fim, uma singularidade no tempo, o ‘instante decisivo’ como lhe chama o grande fotógrafo francês Henri Cartier-Brésson, que não se repercute nem se repete. A realização televisiva em directo cobrindo a sequência de imagens em sobreposição, com a deposição da bandeira das quinas e a ascensão da bandeira rubra da R.P.C., alternada pelos rostos dos líderes supremos das respectivas nações, num encandeado encantatório perdurará para sempre na História. Esse encadeado de imagens, a sua construção, o seu ritmo, a sua pulsação … têm um pouco de mim que se projecta na sua construção e na forma como foram reveladas ao mundo! Algo meu permanece para sempre ligado a essa sequência visual, o seu encadeado correspondeu de alguma forma ao pulsar do meu coração, ao ritmo da minha respiração enquanto realizava. Todo o mundo estava preso, em suspenso, acompanhando o bailado protocolar das guardas de honra, numa coreografia solene que ficou para sempre projectada pelos grandes planos dos líderes em alternância sincopada, sobrepostas ao esvoaçar das bandeiras impelidas pelos jactos de ar embutidos que eram propulsionados através de pequenos orifícios nos topos dos respectivos mastros metálicos.

Constitui um forte motivo de orgulho ter contribuído activamente para a criação dessa sequência visual que perdurará e que será objecto de estudo no Futuro, quando se pretender investigar a iconografia associada à Transferência de Poderes de Macau para a R.P.C., passando esse conteúdo audiovisual a estar sempre disponível nos principais arquivos, acervos e bancos de imagens internacionais. Estarei sempre ligado a esses instantes decisivos…

O Legado

O legado da transferência de Macau permanece ainda em processo de construção. Hoje, duas décadas e meia após o evento, a Região Administrativa continua a prosperar economicamente, mas enfrenta desafios sociais e culturais significativos. As questões da preservação da identidade cultural, a especificidade da cidadania dos residentes permanentes de Macau e seus direitos adquiridos no contexto da crescente influência chinesa, bem como a excessiva dependência da economia em relação ao jogo, constituem alguns temas centrais no debate sobre o Futuro.

As novas gerações de macaenses, embora mais conectadas à China do que nunca, ainda mantêm uma forte ligação à alma portuguesa da sua terra. O devir de Macau tem ainda alguns contornos pouco definidos, mas a resiliência e a capacidade de adaptação dos seus cidadãos convocam a esperança de continuar a encontrar formas de prosperar e evoluir, preservando o seu carácter essencial: a multiculturalidade.

Para as futuras gerações, o desafio será equilibrar o crescimento económico com a preservação das tradições culturais. Macau, com sua história rica e o seu papel de ponte entre o Oriente e o Ocidente, tem o potencial de ser um modelo de convivência pacífica e próspera num mundo cada vez mais globalizado.

Conclusão

Em 1999, Macau entrou numa nova era, mas os traços mais fortes da sua história e identidade não foram apagados com a Transferência de Administração. A RAEM continua a ser um exemplo vivo de como culturas diferentes podem coexistir de forma ecuménica, perante pressões políticas e económicas. Poder testemunhar esse momento de transição como realizador de TV foi uma experiência marcante. As lições de vida que aprendi em Macau continuarão a guiar os meus passos em busca de um mundo cada vez mais livre de barreiras, muros ou fronteiras.

*Autor, Consultor de media, Realizador/Produtor

Notas

5 Concessionária do jogo em Macau, fundada pelo magnata Ho Hung-Sun (Stanley Ho). Deteve em exclusivo o monopólio de exploração dos casinos durante a administração portuguesa com atribuição de subsídios, diversificando assim a base económica e criando empregos em sectores alternativos.

6 Uma comunidade muito influente no tecido social da Beira, tendo como polo principal uma agremiação desportiva, o Clube Atlético Chinês da Beira, com excelentes equipas de basquetebol e ginástica de ambos os sexos, que participavam com muito sucesso nos campeonatos, contribuindo com muitos atletas para as respectivas selecções provinciais. Para além do Atlético, as lojas do bairro chinês e o cemitério eram os locais que mais contribuíam para dar um ambiente oriental a alguns dos locais mais típicos da cidade onde nasci, em 1958

7 Augé, Marc – Non-Places: An Introduction to Supermodernity, 2023, Verso
8 Plataforma intermodal que assegura ligações
9 Bauman, Zygmunt – Liquid Modernity, 2000, Polity

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