Maria José de Freitas, arquitecta: “A nova identidade de Macau é um processo”

A arquitecta Maria José de Freitas é uma das convidadas do Fórum do Património Cultural da Zona da Grande Baía, que tem hoje início. Amanhã irá falar sobre o “património partilhado da Grande Baía”, que ao longo dos séculos recebeu muitas influências culturais. A arquitecta elogia a acção dialogante do Governo da RAEM e diz que a identidade de Macau está sempre em construção

 

O que se entende por património partilhado da Grande Baía?

O património partilhado é um grupo científico que existe no ICOMOS [International Council of Monuments and Sites] e que tem a ver com o património que, à época da sua construção, foi partilhado por diversas culturas. No caso de Macau, temos os portugueses que trouxeram na sua bagagem cultural gente de outros continentes, Tailândia, Japão e Índia, e que tinham um vocabulário arquitectónico e urbanístico que foi transmitido para o património edificado que hoje temos. Tudo isso continuou depois no período da Administração portuguesa. Podemos dizer que essa herança continua hoje quando são convidados arquitectos e urbanistas estrangeiros a fazer intervenções em Macau. Nesse aspecto, o território sempre teve um papel e ligação com um âmbito bastante vasto.

Temos ainda Hong Kong, que surge na altura dos grandes impérios [meados do século XIX], e que bebeu da influência cultural dos ingleses. Foi algo que se transmitiu numa arquitectura vitoriana também replicada em Macau e em toda a Ásia nessa altura.

E na China?

Em Cantão surgiu uma arquitectura neoclássica ocidental praticada por orientais, e que depois foi vivida por uma comunidade multicultural na sua génese. É uma arquitectura que, ao longo da sua existência, tem continuado a ser visitada e manteve uma narrativa que engloba a miscigenação cultural. É nesse sentido que falamos do património partilhado, sem que haja uma diferenciação de épocas. É assim que esse património é usufruído, dessa partilha, e é aí que entram os valores que levaram à classificação pela UNESCO do Centro Histórico de Macau. É importante frisar que algumas cidades mais recentes do Delta do Rio das Pérolas, como Zhuhai ou Shenzhen, também têm influências internacionais. As sociedades que pertencem à Grande Baía têm influências vincadas dessa multiculturalidade.

Que exemplos pode apontar?

Temos as Kaiping Towers [torres de vigia fortificadas, com vários andares, construídas em aldeias], que foram desenhadas por emigrantes por questões de defesa. Nas cidades, também mais recentes, de Zhongshan e Foshan, há uma influência ao nível urbanístico. Esta multiculturalidade, que é vivida e que é evidente, deve ser estudada e partilhada em termos de conhecimento e actuações. Existem pressões, até do ponto de vista das alterações climáticas e subida do nível da água do rio. Além dos sucessivos aterros construídos, que têm estrangulado as margens do rio, trazendo alguma poluição atmosférica. Todos esses factores afectam o património existente nas cidades portuárias e piscatórias, pelo que há situações comuns e que devem ser tratadas com uma visão regional e internacional. Há cidades portuárias em todo o mundo que sofrem estas vicissitudes e que tem centros históricos.

Como pode ser feita essa conexão?

Podem-se fazer estudos com resultados mais efectivos. Macau pode desempenhar um papel bastante dialogante dado o seu contexto histórico. Prova disso é fazermos este colóquio. O papel de plataforma de Macau sempre aconteceu desde o início da existência do território, porque sempre houve uma ponte entre a China e o mundo em redor. A China potencia Macau como locutor privilegiado com os países de língua portuguesa. O papel que Macau venha a desempenhar nas cidades da Grande Baía prende-se com esta ligação e abertura que o território sempre teve para acolher outras ideias e culturas.

A actual direcção do Instituto Cultural está alinhada com essa visão mais global em relação ao património?

Penso que sim, pela realização destas reuniões internacionais que me parecem bastante oportunas. Também pelo facto de a presidente [Delang Leong] ter ido a Portugal contactar universidades e com a Direcção-geral do Património, o que dá abertura e entrosamento entre o que está a ser feito em Macau e o conhecimento que se procura lá fora, e este é o caminho certo. Estou curiosa em relação ao contexto desta conferência internacional, para perceber o que os colegas de outras cidades vão dizer e o que têm para partilhar. Macau está a seguir o caminho de abertura, que é visível, e também com outras empresas, no que diz respeito à responsabilidade social corporativa, em que também está a ser feito um caminho faseado. Há novas áreas de conhecimento, culturais e de estudo. Não se pode fazer tudo a um tempo só e o IC está a fazer esse caminho.

No contexto da parceria com casinos para renovar algumas zonas da cidade há o caso da Rua da Felicidade e do Centro Comunitário Kam Pek. Acredita que o futuro do património não passa pela perda da história e memória colectiva.

Sim, isso está presente nas intervenções do IC, que tem tido essa situação bem presente em todos os diálogos que são feitos. Não penso que isso esteja em causa [uma possível perda da história e memória colectiva sobre os lugares]. Houve a questão do pavimento nas Casas-museu da Taipa, mas na altura não sabia o que estava a acontecer. Vi depois que houve uma intervenção em que foi criada uma faixa com granito que dá para percorrer com maior facilidade. Há que melhorar as situações para que sejam sentidas pela população da forma mais correcta possível. O IC tem de trabalhar em conjunto com as direcções de Serviço do Trânsito, Ambiente, Obras Públicas e com o Instituto para os Assuntos Municipais, porque está em causa a preservação da cidade. Há também a questão de existir um filtro em relação ao número de pessoas que visitam certos locais. Deve ser feita uma contagem do número de pessoas que visitam as Ruínas de São Paulo e aprovar medidas concretas sobre isso. Na Rua da Felicidade, algumas medidas implementadas foram revertidas [o fecho parcial da rua ao trânsito], foram apenas experiências. No princípio não se faz tudo bem ou mal, e vai-se balizando. É importante que, tanto o IC como a população, façam essa avaliação, incluindo os comerciantes que estão nos sítios, e os académicos. Toda esta metodologia pode depois ser partilhada com Hong Kong ou Shenzhen.

Defendeu há pouco a sua tese de doutoramento sobre o património de Macau. Conclui nesse trabalho que o território tem construído a sua identidade própria a nível patrimonial. Como tem sido feito esse caminho, e com que actores?

Concluí que Macau sempre teve em si uma identidade múltipla, com chineses, portugueses, macaenses, japoneses e todos os que aqui aportaram e encontraram a sua casa. Essa identidade múltipla era negociada entre portugueses e chineses, e também macaenses. As outras culturas que cá estavam também eram ouvidas.

De que forma isso se tem manifestado?

Com a protecção do Farol da Guia, por exemplo. São eles que elevam a voz e fazem interrogações. O Governo chinês classificou a culinária macaense e o teatro em patuá, há o conhecimento vasto de uma identidade abrangente, e sempre foi assim. Com a negociação dos novos contratos de jogo, após a transição, surgiram outras empresas de jogo que trouxeram outras culturas, com os americanos e neozelandeses que se interessam pela cultura do sítio. Com as novas licenças de jogo isso vai continuar, e Macau passou a ter um papel mais abrangente em termos de multiculturalidade do que tinha antes. Temos mais situações em confronto, mais manifestações culturais. A nova identidade de Macau é mais um processo do que propriamente uma definição, e está em permanente evolução.

Na tese apresenta algumas medidas para a defesa da herança cultural. Faltam técnicos no IC, arqueólogos, investimento público, para que se preserve mais a partir de novas investigações?

É importante que haja técnicos, e até de outros países. Não me parece importante que estejam sediados em Macau, pois podem trabalhar a partir de qualquer parte do mundo em regime de outsourcing. Importa é que o IC esteja ciente dessa situação e que haja uma abrangência cultural com conhecimentos vários vindos de diversas regiões do mundo. Cabe ao Governo fazer essa coordenação em conjunto com universidades de todo o mundo, porque este é um património também mundial.

No ensino superior local, à excepção talvez da Universidade de São José (USJ), não tem existido muito foco nas áreas da Arqueologia e História.

A Universidade Cidade de Macau e a USJ também promovem alguns encontros no âmbito da arquitectura, urbanismo e História, mas era importante que a própria Universidade de Macau (UM) tivesse mais cursos de doutoramento e pós-graduação relacionados com o património arquitectónico existente. Mas a UM está em expansão e pode abranger novos campos de intervenção, podendo existir mais parcerias com a Universidade de Coimbra, por exemplo.

Já existe um Plano de Salvaguarda do Centro Histórico. Entende que é necessário mais dinamismo por parte do IC, dado o atraso na sua publicação?

Os planos são revistos a cada cinco anos. O Plano demorou a aparecer e há algum desfasamento, pois alguns casos poderiam ter sido evitados se o Plano tivesse sido elaborado por altura da classificação do Centro Histórico, em 2005. Refiro-me à zona do Farol da Guia. Temo, porém, que quando os edifícios que estão a ser construídos na Zona A se perturbe a visualização do farol. Na Igreja da Penha a volumetria dos edifícios em volta veio a ser reduzida, o que mostra que a população está atenta, tal como o IC. Há também o caso de Lai Chi Vun e da preservação dos estaleiros. Elogio a visão do IC que tem dado voz a este incómodo sentido, e que depois vai respondendo de forma assertiva.

Falou da pressão das alterações climáticas. O que deve ser feito para lidar com a subida da água do rio?

Esse problema vem do século XIX, pois vários urbanistas vieram de Portugal para Macau e nunca conseguiram resolver o problema. O leito do rio foi sendo resolvido em virtude da construção dos aterros, e isso tem consequências. Devem ser feitos modelos conceptuais e diques de contenção. Mas esta situação engloba todo o delta, não é uma situação que deva ser pensada apenas em Macau.

Um Fórum, dois dias

O Fórum do Património Cultural da Zona da Grande Baía, organizado pelo Instituto Cultural, decorre hoje e amanhã. O tema principal dos debates será “Integração e partilha do património cultural na Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau”, tentando-se promover, com académicos e técnicos de várias cidades da região, um diálogo sobre o futuro da defesa do património. O evento terá lugar no Centro Cultural de Macau.

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