Até que enfim

Ho Iat Seng, actual Chefe do Executivo, está doente e não será candidato. Surge então Sam Hou Fai, presidente do Tribunal de Última Instância, como o principal candidato ao cargo de Chefe do Executivo de Macau e, muito provavelmente, será eleito.
Dada a rapidez aparente com que o processo se desenrolou, um observador menos informado sobre Macau (muitos vivem nesta cidade) poder-se-ia tratar de “mais do mesmo”, de Sam Hou Fai ser apenas um “substituto” de última hora, um recurso face a uma situação de emergência, pois muitos pensavam que Ho Iat Seng cumpriria o segundo mandato.
Não é a minha opinião. Na verdade, penso que se trata da maior viragem política em Macau desde a transferência de soberania em 1999.
Senão vejamos. Sendo pessoas muito diferentes, em termos de cultura e crescimento político, o que tinham em comum Edmund Ho, Chui Sai On e Ho Iat Seng? Três coisas fundamentais: os três pertenciam a famílias poderosas de Macau; os três eram empresários; os três eram herdeiros de alguém com grande importância nesta sociedade, ou seja, nasceram em berço de ouro, cresceram protegidos e sempre dispondo de uma situação financeira, no mínimo, espectacular.
Não estou a exagerar. Mas isso também não importaria se a acção destes Chefes do Executivo não tivesse, em grande parte, sido manietada exactamente por isso. Cada um dos factores desempenhou um papel específico e criou também problemas específicos com os quais eles tiveram sempre de se debater. Nunca foram eles mesmos, mas sempre sombras condicionadas pela sua origem e actual situação na sociedade de Macau.
Enquanto descendentes de quem eram, sempre se questionou o seu verdadeiro valor, havendo quem atribuísse a nomeação às suas origens e ao “patriotismo” dos seus antepassados, como se houvesse uma dívida a pagar a estas famílias pelo seu comportamento durante os anos de administração portuguesa.
Enquanto poderosos empresários, a sua prévia acção estendia-se a imensos negócios desta cidade, da Saúde à Educação, da banca à indústria, e muito mais. Logo, muitos os acusaram de terem favorecido uns e preterido outros, de terem feito pelo crescimento das suas próprias fortunas, de se verem obrigados a pagar favores contraídos durante as suas anteriores vidas profissionais.
Enquanto herdeiros de fortunas colossais, muitos diziam de não terem sido eles a criar essas mesmas fortunas e houve mesmo quem tenha afirmado que as suas acções não conseguiam corresponder ao magnífico trabalho dos seus antepassados, que não disponham da mesma categoria ou cultura.
Em traços muito largos, estas eram as características comuns aos anteriores Chefes do Executivo. Estes, nem de perto nem de longe, tinham personalidades semelhantes ou sequer parecidas. Contudo, é inegável que as três características expostas os fragilizavam, sobretudo aos olhos atentos de Pequim, quando as coisas não corriam como deviam correr. E, na verdade, não se pode dizer que algum deles tenha cumprido os respectivos mandatos de forma exemplar. Bem sei que existe alguma dureza nas minhas palavras, mas as possibilidades financeiras que esta terra oferece teriam permitido uma melhor governação se os três não estivessem limitados pelas características descritas.
Notou-se, sobretudo depois de Edmond Ho, a inexistência de uma visão, de uma política social coerente, de encontrar outra maneira de manter a harmonia social, além de despejar dinheiro para a sociedade, através dos famosos cheques anuais e outras benesses que se esgotam em si mesmas e não desenvolvem a cidade. Daí que continuemos há décadas a enfrentar os mesmos problemas, entre os quais, a diversificação económica e a Saúde, por exemplo.
Já o caso de Sam Hou Fai é radicalmente diferente. Trata-se de um juiz, nascido na China continental, formado em Coimbra, falante de português, sem laços familiares de relevo em Macau. Não é herdeiro de ninguém, nem que se saiba deve favores a empresários locais, de Hong Kong ou do outro lado das Portas do Cerco. Parte, portanto, sem outras peias que não seja a obrigação de desempenhar um bom mandato, tendo como objectivos principais a qualidade de vida do povo e a projecção de uma imagem digna de Macau na cena internacional.
Sam Hou Fai pode igualmente desempenhar um papel muito mais importante na relação com os países lusófonos, algo de crucial, que os seus antecessores, à excepção de Edmond Ho, claramente falharam. Sendo um desígnio para Macau do Governo Central, tem sido um pesadelo para os governos que ou não queriam ou não sabiam como desenvolver as ditas relações. Lembramo-nos da passagem de Li Keqiang por Macau e do seu documento em 19 (!) pontos que referenciavam o que o governo local não tinha sido capaz de fazer. Certamente que tal não acontecia por falta de meios, mas por falta de vontade, de visão e… de verdadeiro patriotismo, quando não de real capacidade.
Vindo da presidência do Tribunal de Última Instância, que ocupa há vários anos, Sam Hou Fai surge impoluto em relação aos negócios e faz pensar que entramos numa nova era, em que a administração de Macau ganhará seriedade e eficácia, tendo sobretudo em conta o interesse geral do povo e do país, e não de clãs específicos.
Se assim será ou não, só o futuro o dirá. Mas o facto é que Sam Hou Fai se apresenta em condições muito diversas dos seus antecessores, tendo a oportunidade de governar Macau de outros pontos de vista, que refiram em primeiro lugar os interesses do povo e imponham nesta sociedade uma ética sadia e contemporânea. Se assim será ou não, Sam Hou Fai o confirmará, sendo certo que não lhe faltará, como não faltou aos seus antecessores, o apoio incondicional do Governo Central, cuja paciência para um certo tipo de administração parece ter acabado. Até que enfim…

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