Um olhar poético para Macau que atravessa séculos

Cheong Kin Man * Antropólogo visual e artista de desconstrução etimológica.

Os poemas de Macau, escritos em chinês clássico pelos poetas cantonenses, são pouco conhecidos mesmo entre a comunidade falante do idioma na RAEM. Passados vários meses de procrastinação depois de ouvir palavras de estímulo de Carlos Morais José, peguei aleatoriamente um poema com “versos regulamentados pentassílabos”, isto é, cada verso é composto de cinco caracteres sino-asiáticos.

Trata-se de “Olhar para o Mar em Macau” (澳門覽海) com 24 versos e cada verso tem cinco ideogramas, com pontuação posteriormente adicionada. Neste poema, os versos com números ordinais ímpares terminam com uma vírgula, ao passo que os com números pares acabam com um ponto final.

O poeta em causa é Zhang Mu (Cheong Mok em cantonense, 1607-1683), poeta, grande pintor de cavalos, viajante de toda a China. Traduz-se, ao ler uma biografia sua, certa melancolia menos bem escondida e provocada por uma dinastia morta, pois viveu num período no qual a China de maioria étnica Han foi conquistada pelos Manchus.

Sabemos que o nome cantonense da Guia é Tong Mong Ieong, como também anotava Ana Maria Amaro. O topónimo cantonense significa, literalmente, “Oriente-Olhar-Oceano”. Foi justamente ali que Zhang escreveu esta obra prima.

Ao traduzir – isto é, ler o mais intensamente – não cessei de ficar surpreendido como através da leitura de um tal texto, fico com uma mistura de muitas imagens não apenas da China mais clássica, mas também de uma Macau da grande actualidade. É, enfim, um poema escrito no meio do século XVII!

Aqui apresentamos a minha modestíssima tentativa de transpor o poema pentassílabo num texto poetizado decassílabo, com algumas notas a fim de mais aprofundadamente apreciarmos o original.

Autobiografia como preâmbulo

Nascendo no mar, país possante,

Maduro, encontro na tormenta,

Com nobre aspiração constante,

Ondas quebradas, mui água venta.

Estandarte foi erguida guante,

Navio “ganso-e-grou” ostenta.

Apreciada a maravilha,

As terras findam com a barquilha.

生處在海國,

中歲逢喪亂。

豪懷數十年,

破浪已汗漫。

故人建高纛,

樓船若鵝鸛。

因之慰奇觀,

地方盡海岸。

Natural de Liuzhou na província de Guangxi de hoje, Zhang Mu foi um dos grandes pintores do Lingnan (uma região cultural do sul da China) da era pós-Ming. Aqui o termo bissilábico, ou dois caracteres, “喪亂” (mortes e turbulências, ou “tormenta” na tradução poetizada) indica justamente o doloroso tempo de transição entre duas dinastias chinesas Ming e Qing, no meio do século XVII. Esta autobiografia do artista está concluída nos meros primeiros 20 caracteres chineses do poema.

No quinto verso do texto asiático lê-se o termo “故人”, que está omitida na tradução. Literalmente, a palavra chinesa clássica signfica “gentes do passado” e pode ser igualmente traduzido “amigo/s”. Associando-me à atemporalidade chinesa clássica, tenho impressão que é mais apropriado traduzir literalmente “gentes do passado”: Foram os conhecidos que ergueram o estandarte.

Quanto à formação de batalha “ganso-e-grou”, a expressão, que fica no sexto verso, deriva do antiquíssimo registo no clássico “Comentário de Zuo” (Zuo Zhuan, ou Cho Chün em cantonense) publicado no final do século IV antes da nossa era. O termo “ganso-e-grou” visualiza duas formas de batalhas na origem da palavra.

O género de navio, que está referido no mesmo sexto verso do texto original, é uma embarcação guerreira com uma “torre” de três níveis, quer dizer, uma construção em cima da superfície deste navio militar da China clássica.

Interessante seria uma associação deste poema à cartografia europeia e chinesa dos primeiros tempos da fundação de Macau. Os cartógrafos da época, como sabemos, sem poderem ver as realidades geográficas nos seus próprios olhos e dependendo inteiramente das descrições textuais, podem ter feito os mapas pictóricos de uma Macau sem diferenciar, ou pouco diferenciando as arquitecturas cantonense e europeia.

Assim sendo, já imagino as caracas e outros navios portugueses, inseridos entre os juncos.

Metrópole mundial do século XVII

Bárbaros no este – o sol banha –

Traduzindo, a China exaltam,

Jades e pérolas se apanha,

Feiras destas, luzes se ressaltam.

No sonho, a sagrada montanha,

Palácios de ouro, nuvens saltam,

Céus cortados pelos pagodes,

Cadeia de telhados, as odes.

西夷近咸池,

重譯慕大漢。

寶玉與夜珠,

結市異光燦。

若夢游仙瀛,

金宮赤霞爛。

危樓切高雲,

連甍展屏翰。

Primeira referência directa à presença europeia e à muito próspera cena comercial de Macau neste poema, o “banho do sol” é aqui uma tradução livre substituindo o nome do local mitológico chines, Xian Chi (Ham Chi em cantonense) onde, segundo a mitologia sínica, o sol banha durante o dia. Interpreto que é uma metáfora da chegada dos “bárbaros ocidentais” no “oriente”.

No texto original em chinês, o nome, ou melhor, a expressão 夜珠, “luminosa pérola”, ou da forma mais literal, “pérola da noite” evoca em mim uma associação às luzes da noite de Macau de hoje.

Com a expressão do “Grande Han”, trocada na tradução pela mera palavra China, não sei se o poema seria considerado, na época da sua escrita, politicamente correcto de ser circulado. Pergunto-me mesmo se uma tal simples denominação do país despertando a grandeza dos Han como a maioria étnica não causaria a pena de morte.

Ao ler esta passagem, já estão visualizados, na minha cabeça, templos antigos que serviam igualmente como residências temporárias dos mandarins, mas não só: a arquitectura barroca cuja terminologia técnica a China clássica ainda não inventou. Até mesmo uns “arranha-céus” do século XVII – os altos pagodes que tocam os céus – estão em frente de mim.

Fim da autobiografia, fim do relato

Sobre águas, colinas divinas,

Verdes, acidentadas, ligadas,

Ondas transparentes, cristalinas,

Um só barco, farras agradas.

Volto com lufadas heroínas,

De repente, as almas trocadas,

Ondas raivosas! Sem fim aboio,

Milhas d’rota, gemo sem apoio.

水上多神山,

青削屢續斷。

澄波或如鏡,

一葉亦足玩。

及爾長風迴,

氣色忽已換。

狂瀾渺何窮,

萬里生浩歎。

Esta passagem final, cujos últimos oito versos aqui agrupamos, relata mais uma cena que já não tem nada a ver com a Macau de hoje. Penso nos vários riachos na península de Macau que foram desaparecendo ao longo do tempo e que permanecem apenas nos nomes das ruas antigas. Está visualizado, sobretudo, no meu imaginário, uma China imperial dos grandes literatos, a qual espelha a vida frustrante de Zhang Mu, e concluída por ele próprio com “um longuíssimo suspiro” (traduzido aqui como “gemo sem apoio”), como se constata ao ler o original.

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