A simplificação do mundo

A linguagem tem muitas funções, salta à vista a de instrumento essencialmente social. Por meio da palavra, tanto oral como escrita, participamos no mundo, moldamo-lo à nossa imagem e semelhança e os mais inventivos chegam mesmo a recriá-lo.

Tradicionalmente, os chineses atribuem a invenção da linguagem a Canjie, um dos ministros de Huangdi, o Grande Imperador Amarelo. Note-se que antes do aparecimento da linguagem social propriamente dita, já a religiosa tinha surgido pela mão de Fuxi, o Primeiro dos Cinco Imperadores Augustos.

A linguagem na sua faceta social terá sido fruto, em algumas versões, da observação das pegadas dos pássaros, noutras da leitura atenta das carapaças das tartarugas.

Diz-nos o quarto maior filósofo daoísta, naquela que ficou conhecida pela obra de Huainanzi, que “Canjie inventou a escrita, a fim de poder governar todos os oficiais e dirigir todos os assuntos. Os tolos utilizam-na para anotar o que não devem esquecer, os sábios servem-se dela para transmitir pensamentos profundos antes de desaparecerem. Os perversos utilizam-na para deixar registadas mentiras que os desculpem da morte de muitos inocentes.” (Huainanzi, cap. 8, in Anthologie des Mythes et Légends de la Chine Annciene, org. de Rémie Mathieu, Gallimard, 1989)

Interessa-nos reter a justificação socio-política chinesa para o aparecimento da escrita. Na versão mais positiva, surgiu para organizar e governar os homens, na mais negativa, acrescentamos nós, é um excelente instrumento de domínio. Pensamos com a linguagem e não antes dela, comunicamos e impomos, quanto temos força para tal, também através dela.

Sabia bem esta lição o Primeiro Imperador Ying Zheng, que subiu ao trono com o nome de Qin Shihuang, à letra o Primeiro Imperador dos Qin. Este conseguiu impor o reino Qin a todos os outros Estados Combatentes, entre 230 e 221 a.C. O Primeiro Imperador unificou o país, centralizou o poder económico, político e administrativo. Impôs uma só moeda e padronizou a linguagem, com base na escrita do pequeno Selo ou Xiaozhuan, isto é, na grafia utilizada no reino de Qin.

Contra a ânsia uniformizadora e redutora do Imperador, reagiu, como é fácil de perceber, a maioria dos intelectuais à época, muitos deles filiados na tradição confucionista, completamente avessa a modelos padronizadores e a simplificações. Começaram a correr históricas satíricas sobre o Imperador e ele respondeu previsivelmente: mandou queimar todos os livros, à excepção dos cientificamente úteis, aqueles relativos à medicina, agricultura e outros domínios directamente relacionados com a sobrevivência das gentes. Mas deixemos o construtor da Grande Muralha e do Exército de terracota repousar o sono dos grandes…

A reter, a simplificação da escrita utilizada como arma política centralizadora. Mais tarde, durante as dinastias Han, tanto do Oeste como do Leste, a linguagem escrita voltaria a sofrer novos processos de simplificação, o primeiro, com a adopção da Escrita Oficial, ou Lishu, por volta do século 3 a.C. e o segundo, entre o século 2 e 3 d.C, com a adopção da Escrita Regular, ou Kaishu, também denominada de Escrita Verdadeira ou Zhenshu – o estilo predominantemente quadrado que ainda hoje vigora entre os chineses, quando utilizam os caracteres, sobretudo, para funções sociais.

Os séculos foram correndo e as simplificações no domínio da escrita abrandaram, até que a chegada de missionários ocidentais à China, nomeadamente a de Mateus Ricci, volta a trazer a questão da linguagem chinesa para primeiro plano. Novamente as necessidades comunicativas falaram mais alto. Como colocar a mundividência chinesa ao dispor dos ocidentais?

Ricci optou, no início do século XVII, pela utilização do alfabeto latino para transcrever os caracteres chineses. Após a sua tentativa, outras se seguiram, sendo de destacar as do francês Nicolas Trigault, que publicaria em 1625 um livro intilulado: UM GUIA PARA INTELECTUAIS OCIDENTAIS e, sobretudo, a do inglês Thomas Francis Wade, que, após as Guerras do Ópio, em 1867, publicaria um alfabeto fonético para a linguagem chinesa, conhecido por sistema Wade, que, não só perdurou até aos nossos dias, como é bastante semelhante ao próprio Pinyin, isto é ao alfabeto latino chinês, reconhecido oficialmente no presente pelos chineses.

Às tentativas ocidentais para transcrever foneticamente a linguagem chinesa, com recurso ao alfabeto latino, vieram juntar-se os esforços chineses, nascidos da nova mentalidade que, em 1911 transformou, com Sun Yat-sen, o Império do Meio em República do Meio.

Os republicanos criam um sistema fonético, o Zhu Yin Zi Mu, que deveria vigorar em todo o país. Neste tipo de transcrição, recorria-se a 37 símbolos para registar todas as palavras no dialecto de Pequim.

Como já anteriormente sucedera, houve a necessidade de mexer na linguagem para a tornar uniforme, isto é, extensível ao maior número possível. Não obstante, a linguagem escrita e os vários dialectos locais foram preservados. Por isso, aos olhos dos que tomaram o poder em 1949, este sistema possuía dois grandes defeitos: não era capaz de funcionar como base comum para unir todas as minorias nacionais, nem de promover o intercâmbio internacional, por não recorrer a um alfabeto latino, que pela sua simplicidade pudesse ser entendido tanto por estrangeiros, como servir de fundamento à criação de uma escrita, ausente de muitos dos dialectos nacionais.

A transcrição fonética dos nacionalistas não implicava uma mudança radical na escrita, era uma uniformização ao nível oral e para consumo interno, entenda-se, para divulgação da mensagem e ideais republicanos.

Em 1949 os comunistas tomaram o poder. Traziam consigo um mundo ideológico radicalmente novo. Eles não queriam pontes com a tradição, pelo contrário, a palavra de ordem era revolucionar e em todos os campos. Por um lado, necessitavam, para espalhar a “sua boa nova” de uma linguagem, que funcionasse como um instrumento social eficaz.
Por outro, debatiam-se com um problema, como espalhar a nova mensagem se a maioria era iletrada?

Havia que cultivar as pessoas sem demora, para tal precisavam de uma arma simples, eficaz, que chegasse rapidamente às massas. Ainda no ano de 1949 é criada em Pequim a Associação para a Reforma da Linguagem Escrita Chinesa e em 1952 é estabelecido, com carácter oficial, o Comité de Pesquisa para a Reforma da Linguagem Chinesa. Este Comité, como esclareceria Zhou Enlai, no discurso proferido, em 1958, aquando da aprovação final do Novo Alfabeto Fonético Chinês, tinha tido como principais objectivos: a simplificação dos caracteres chineses; a popularização de um discurso comum (Putonghua) e a criação de um alfabeto fonético chinês.

Em 1956, o Conselho de Estado estabelecia o primeiro esquema para a simplificação dos caracteres chineses, como meio de erradicar iliteracia. Para a nova mentalidade, era necessária uma escrita com menos traços, que poupasse energia e tempo a professores e aprendizes, que permitisse, a um cada vez maior número de chineses, aprender e colocar o país no caminho do progresso científico.

Também era fundamental para a propagação do novo mundo ideológico, um discurso comum, que tivesse como padrão o dialecto de Pequim. Este, com a ajuda de um alfabeto fonético passaria a facultar não só o intercâmbio nacional, pela criação de um sem-número de materiais linguísticos e de catalogação simplificados, como também o intercâmbio internacional. Foi então aprovado o Plano para o Alfabeto Fonético pelo Congresso Nacional Popular em 1958, que adoptou, como seu modelo, o alfabeto latino.

A simplificação da linguagem chinesa possui características manifestamente chinesas. Aos olhos ocidentais, este sistema linguístico continua a ser tremendamente complicado. A nossa tendência é para simplificar a simplificação, por assim dizer. Por isso, nas transcrições fonéticas, esquecemos os acentos, que povoam individualmente as palavras e não existem por acaso, mas sim para evitar as homofonias, pródigas neste sistema linguístico.

Esquecemos e seja o que Deus quiser. Mas esse esquecimento levanta um grande obstáculo para aqueles que sonham em transformar o chinês numa língua romanizada, pois embora seja possível olvidar os acentos em palavras soltas e frases curtas, uma transcrição fonética de um escrito chinês sem os tais grafismos, que marcam os tons, torna qualquer texto absolutamente incompreensível.

No entanto, um escrito romanizado pejado de acentos, transforma a leitura, sobretudo se for de grande porte, num martírio. Por enquanto, o alfabeto fonético chinês é um instrumento de leitura e nada mais. Também não pretendia ser, pelo menos aos olhos das gentes do dragão, qualquer outra coisa.

Não obstante, a simplificação da linguagem chinesa para consumo interno, funcionou. Esta estendeu-se a um maior número de pessoas e pagou um preço – leia-se, desejado – por isso. Cortou com a tradição. Hoje, a nova geração é incapaz de entender os textos clássicos nas suas versões originais. Assim, só para nós, estrangeiros, as simplificações linguísticas são reformas, para os chineses do continente foram uma verdadeira revolução que os pôs a olhar para um mundo novo, simplificado, sem raízes, onde o progresso e a ciência, mais do que palavras, são verdadeiros programas de vida, que doravante poderão, como religiosamente se acredita, ser concretizados por meio da escrita simplificada.

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