Grande Plano MancheteÓbito | “Armandinho”, o músico que deixa saudades ao jazz local Andreia Sofia Silva - 28 Mai 202428 Mai 2024 Armando Araújo, o brasileiro que escolheu Macau e a Ásia para viver e deambular pelos palcos, começou por tocar baixo, mas depressa passou para a bateria. A sua figura era uma referência para a cena do jazz local e muitos da nova geração aprenderam com ele. Armandinho morreu na madrugada de segunda-feira, depois de anos com problemas de saúde Era tão importante para os palcos locais e para a cena do jazz que lhe fizeram um concerto de homenagem em 2020. Armando Araújo, mais conhecido por “Armandinho”, morreu na madrugada de segunda-feira, com 74 anos, depois de vários anos a lidar com diversos problemas de saúde que o afastaram dos palcos. Ainda assim, de vez em quando, voltava a sentar-se atrás da bateria, apesar da visível fragilidade. O músico brasileiro veio viver para Macau nos anos 70 e percorreu vários palcos, incluindo no Japão. Foi uma das grandes presenças do Clube de Jazz de Macau que existiu na década de 90 na Rua das Alabardas, além de fazer parte dos “The Bridge”, outra banda icónica do território que actua há várias décadas. Deixa saudades a organizadores de eventos e músicos com que partilhou palcos. Quem o conheceu fala do lado genial para a música que lhe permitia tocar quase tudo, e da magia com que tocava cada nota. Rui Simões, organizador de muitos eventos de jazz e ligado à plataforma NOYB (None Of Your Business), diz ao HM que a partida de “Armandinho” constitui “uma enorme perda para Macau”. “Todas as reacções que tenho recebido são de enorme tristeza e de grande respeito por um músico que era uma referência para todos os outros. Como pessoa, tinha uma simpatia e um sorriso constante”, disse. Rui Simões esteve por detrás do concerto de homenagem ao músico e destaca “a oportunidade de recordar em palco a forma como dominava a bateria, sempre em grande cumplicidade com os restantes músicos em palco e com o público, a quem gostava de explicar tudo o que se estava a passar, sempre com uma atitude muito pedagógica”. “Armandinho” explicava “os diferentes ritmos e estilos musicais de forma muito divertida e sempre com boa disposição”, lembra. Também José Sales Marques realça o carisma de Armando Araújo ainda dos tempos do Clube de Jazz de Macau, que dirigiu, e que nos anos 90 era juntava grande parte da comunidade portuguesa, mas não só. “Foi com imensa tristeza que soube da morte de Armando Araújo. Um músico excepcional, um jazzista de excelência, cujo contributo para a afirmação do jazz em Macau jamais será esquecido”. Sales Marques salienta “a forma singular de dar vida à música, acariciando a bateria com uma mestria contida e brincando com os ritmos mais complexos da forma mais simples possível. Quem teve o privilégio de o ver tocar sabe de que estou a falar. Em nome do Jazz Club de Macau e em meu próprio apresento condolências à sua família e amigos mais próximos. A sua memória estará para sempre presente entre nós, com uma batida muito especial, enquanto ele descansa em paz.” Tocar com as estrelas Zé Eduardo, outro músico e educar incontornável na cena do jazz de Macau, retorna ao final dos anos 70 quando conheceu o baterista em Macau. “Toquei muitas vezes com o Armando, que conheci em 1979 quando fui, com o Rão Kyao ao segundo Festival de Jazz de Macau. Toquei posteriormente com ele sempre que era convidado pelos ‘The Bridge’ e no contexto de algumas visitas que fui fazendo a Macau. Era uma personagem importante da ‘cena’ musical em Macau e que deixa marca”, apontou. Quem também se recorda desse concerto longínquo, e de outros, é José Chan, companheiro na banda “The Bridge”, com a qual sempre tocou, primeiro de forma irregular, e depois permanente, a partir dos finais dos anos 90 e inícios dos anos 2000. “Ele era como um membro da família, pois já nos conhecíamos desde que cheguei a Macau, em 1988. Foi um dos primeiros músicos do Clube de Jazz de Macau e quando eles fizeram os primeiros festivais já participava, nomeadamente com Rão Kyao. Depois tocou no Japão com Lisa Ono.” Aliás, a cantora e compositora de raízes japonesas nascida no Brasil também partilhou palco com Armando Araújo. “Se ele não tivesse um certo nível [como músico], jamais o convidariam para tocar no Japão, sobretudo em clubes de renome”, frisa outro membro dos “The Bridge”, Humphrey Cheong, saxofonista. O Japão foi, aliás, o que trouxe Armando Araújo para a Ásia, onde acabou por ficar toda a vida. “O ponto de partida foi o Japão, mas ele vinha muitas vezes a Macau porque era o sítio mais perto onde se falava português. Mais tarde casou com uma senhora macaense e ficou por cá. Ele contou-me que foi convidado por músicos brasileiros para vir para a Ásia. Naquela altura ganhava-se bem como músico, no Japão e havia um grande intercâmbio cultural com o Brasil”, explicou José Chan. Um génio A doença começou a fazer parte do dia-a-dia de “Armandinho”, obrigando-o a deixar de tocar regularmente com os “The Bridge” a partir de 2017. “Depois só tocava connosco quando se sentia bem e podia, nomeadamente no LMA (Live Music Association)”, disse José Chan, recordando que estas experiências permitiam o contacto com as gerações mais novas. “Ele podia tocar qualquer coisa. Era baterista, mas inicialmente até começou por ser baixista. Também cantava e tocava guitarra. Era um bom músico e vai-nos fazer muita falta, mas a vida é mesmo assim”, frisou José Chan. Humphrey Cheong não tem dúvidas em denominá-lo como “uma espécie de génio”, pois “podia tocar qualquer coisa”. “Há cerca de dez anos, quando o ‘Armandinho’ ainda estava em melhor forma, aconteceu um episódio interessante. Um músico profissional que veio a Macau sem a sua banda habitual viu-se ‘forçado’ a tocar com músicos locais. Depois do concerto perguntou o que Armando fazia profissionalmente, e disse que estava interessado em tocar com ele de forma regular, levando-o em digressão. Ele estava nesse patamar de profissionalismo.” A união é outro dos pontos que o saxofonista dos “The Bridge” destaca da passagem de “Armandinho” pela banda. “Quando tocávamos juntos, independentemente do que tinha acontecido no passado, ele comunicava com todos e juntava-nos mesmo que estivéssemos a tocar as nossas partes a solo. Conseguia captar o melhor de nós quando tocávamos juntos, com o seu estilo forte, muito próprio.” Mars Lei, músico e presidente da Associação de Promoção do Jazz de Macau, destaca que as gerações mais novas “podem não ter muitas memórias dele, por ser mesmo de outra geração mais antiga”. “Mas no meu caso, que vivi a cena musical de Macau nos anos 90, recordo-me bem de vê-lo tocar. Foi uma grande influência para mim, na ligação com o jazz. Mesmo depois da transição, íamo-nos cruzando em vários locais e concertos, mas nunca tivemos a oportunidade de tocar juntos. Ele era uma espécie de referência para todos nós.” Terminadas todas as notas, fica a lembrança. “Claro que é uma pena a partida dele, mas poderemos sempre lembrá-lo. Mesmo que os ‘The Bridge’ deixem de tocar com ele, a verdade é que esta ligação ficou para sempre”, rematou Humphrey Cheong.