Entrevista MancheteJoaquim Alves Gaspar, co-autor de “A Cartografia de Magalhães”: “A mais extraordinária viagem marítima” Andreia Sofia Silva - 24 Mai 2024 Lançado em Abril, “A Cartografia de Magalhães”, de Joaquim Alves Gaspar, docente da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, e da académica Šima Krtalić, olha para a história da cartografia antes e depois da Circum-Navegação de Fernão de Magalhães. O autor realça a importância da viagem que provou ser possível navegar em torno da Terra Este livro fala do panorama da cartografia antes e depois da Circum-Navegação de Fernão de Magalhães. O impacto da viagem foi grande nesta área? Não foi o ponto de viragem mais importante na via náutica, pois este surgiu muito antes, com a expansão marítima dos povos ibéricos no Atlântico. Primeiro, com os portugueses ao longo da costa de África e depois os espanhóis, primeiro com Colombo nas Índias ocidentais, como eles chamaram, pois Colombo julgava ter chegado às Índias do reino de Castela. Depois houve as descobertas dos portugueses através do [oceano] Índico e até ao sueste asiático, e também no Brasil e na chamada “Terra Nova”. Esse final do século XV e início do século XVI foi, digamos, o maior ponto de viragem no que diz respeito ao conhecimento do mundo pelos europeus, que teve reflexos, primeiro, na cartografia náutica. A cartografia náutica era um instrumento de navegação e não uma imagem do mundo. Não eram, portanto, mapas como hoje conhecemos. Sim. No entanto, foram utilizadas como fonte para os mapas geográficos. Houve algum impacto da viagem de Magalhães no conhecimento da América do Sul, que só era conhecida e cartografada até ao Rio da Prata, que fica na fronteira entre o Brasil e a Argentina. A esquadra de Magalhães passou também pelas [ilhas] Molucas, que ficam na Indonésia, a sul das Filipinas, e depois pelo norte das Filipinas, onde um navegador foi morto, num conflito local. Os dois navios que restaram deambularam alguns meses pelas Filipinas antes de se dirigirem às Molucas. Aí carregaram os navios de cravo, que era aquilo que interessava. Um dos navegadores tentou voltar para trás através do Pacífico, como lhes tinha sido ordenado pelo rei de Castela, de Espanha, mas não conseguiu, voltando para trás. O navio sofreu avarias e acabou por se destruir e ficar com os portugueses nas Filipinas. O outro estava com Sebastian El Cano [navegador espanhol que acompanhou Magalhães], vindo para sul, passando por Timor. Fez depois aquilo que era proibido, que era voltar a Espanha atravessando o hemisfério português, pelo Índico. E quais foram os benefícios dessa viagem em termos de cartografia no sueste asiático? Foram maiores? Não. Os navios de Magalhães fizeram algum levantamento, precário, das ilhas das Filipinas, Molucas, Bornéu. Mas, entretanto, já os portugueses tinham recolhido informação cartográfica de melhor qualidade que depois foi vertida nas cartas naúticas. Estranhamente a Circum-Navegação não teve, de facto, um grande impacto na cartografia. Porquê lançar esta obra? Como todos os livros, este também tenta contar uma história. Existem muitas narrativas textuais da viagem de Magalhães, do que se passou antes e depois. Mas não menos importante é o papel da cartografia para contar essa história. Na realidade contamos no livro duas histórias complementares: o que era a cartografia antes da viagem e como propiciou a proposta de Magalhães. E como era? Era uma cartografia sobretudo portuguesa e baseada em fontes portuguesas. Magalhães, quando se dirigiu ao rei Carlos I de Espanha, não ia de mãos a abanar. Tinha acesso à melhor cartografia da época e das técnicas de navegação. Foi isso que convenceu o rei de Castela a aceitar a proposta de um projecto que já tinha tentado concretizar, sem êxito. Magalhães e os portugueses tinham atrás de si toda uma cartografia que tinham desenvolvido com bastante inovação, e que permitiu apresentar o mundo aos olhos dos europeus de uma forma bastante mais exacta face ao que se conhecia até à data. Essa é a primeira parte do livro. E a segunda? São os reflexos da viagem na cartografia, em particular nas disputas entre portugueses e espanhóis quanto à posse e localização das Molucas. Esse conflito é outro ponto central da obra. Desmistificaram-se muitas ideias que havia em torno da localização das Molucas até essa data? O Tratado de Tordesilhas foi um documento incrível que dividiu o mundo em duas partes, uma parte de influência portuguesa, e outra de influência espanhola. A linha divisória era de pólo a pólo que passava a 370 léguas a oeste de Cabo Verde. Para ocidente, era território espanhol, e para oriente, português. Na altura em que o tratado foi firmado, havia a preocupação com o que acontecia deste lado do mundo. Os portugueses queriam preservar o que tinham descoberto em África, sobretudo, o Atlântico, e os espanhóis queriam preservar o que tinham descoberto no Mar das Caraíbas, as Antilhas do reino de Castela. Já se sabia perfeitamente que a terra é redonda desde o século V a.C., mas nunca tinha existido a preocupação de saber como se passava para o outro lado da terra, até aos antípodas. Quando os portugueses chegaram a Malaca, a partir de 1519, e depois a conquistaram, todos acordaram, e em particular os espanhóis, que começaram a alegar que esses territórios lhes pertenciam, sem argumentos válidos. Valiam-se da velha imagem do mundo, de Cláudio Ptolomeu, de 400 anos antes. Para provar que aquilo era espanhol tinham de lá ir. Mas porquê essa suspeita? Este ponto é importante na nossa história: na cartografia náutica portuguesa, a melhor da época, as Molucas estavam do lado espanhol erradamente. Porquê esse erro? Devido à forma como as cartas náuticas eram feitas. Não eram mapas geográficos feitos com base em latitudes e longitudes, mas com base em rotas e caminhos seguidos no mar. Esse rumo era ditado pela agulha magnética, que cria desvios e levou a distorções nas cartas náuticas. Não eram, então, muito fidedignas. Eram, mas para navegação. A forma como se navegava era coerente com as cartas náuticas da época, em que África aparecia desviada para o Oriente, e todo o oceano Índico desviado, empurrando as Molucas para o lado espanhol. Fernão de Magalhães estava genuinamente convencido que as Molucas eram espanholas. Em termos de inovação na navegação, esta viagem destacou-se? A ideia, sobretudo propalada pela literatura anglo-saxónica, de que os portugueses iam à aventura, ao acaso, é absolutamente falsa. Como o nosso Pedro Nunes escreveu num tratado, anos depois, os portugueses já seguiam muitas regras matemáticas e astronómicas para melhor navegar. As viagens eram planeadas minuciosamente, do ponto de vista técnico e logístico. Um ponto inédito [na viagem de Magalhães] é que, pela primeira vez, a longitude de um lugar, a distância este-oeste, era importante para localizar as Molucas. Então, nesta viagem, foi um astrónomo a bordo, Andrés de San Martin, para tentar determinar a longitude das ilhas. Nessa época, a astronomia era convincente, tinha um enorme probatório. Este espanhol fez várias medidas de longitude ao longo da viagem, algumas delas relativamente perto do Estreito de Magalhães, com um rigor que hoje nos espanta. Essas medições reflectiram-se na cartografia, e nos relatos que nos chegaram sabemos que quem ia a bordo começou a ficar preocupado com as medidas de longitude, que davam a entender que as Molucas ficavam do lado espanhol. Andrés de San Martin fez ainda outras medições na chegada às Filipinas e observações astronómicas que colocaram então as Molucas no território português. Esse astrónomo, que morreu na viagem sem se saber muito bem como, deixou relatos sobre estas medições, que a coroa espanhola tentou esconder até onde foi possível. Espanha estava mais preparada para acolher a proposta de viagem de Magalhães? A Portugal não lhe interessava esta viagem, porque o que Magalhães propunha era viajar para as Molucas [Oriente] e nunca para o Ocidente. Os portugueses podiam chegar às Molucas pelo Oriente, que era mais perto. Ainda por cima, para irem pelo Ocidente, seria por território espanhol, pelo que era uma viagem que não lhes interessava de todo. Fernão de Magalhães entrou em conflito com o rei D. Manuel I, pediu-lhe um aumento do seu subsídio, à mercê dos trabalhos que tinha feito para a Coroa portuguesa até então, e isso foi recusado. Então aceitou a sugestão do seu amigo Francisco Serrão, que ficou nas Molucas e fez lá família, para apresentar a proposta a Espanha, dizendo que, assim, poderia enriquecer se o desejasse. Estas cartas enviadas por Serrão tiveram um grande peso na proposta de Magalhães. Como descreve a figura de Fernão de Magalhães? Sabe-se muito pouco sobre a figura humana dele. O que se sabe é através de relatos benignos de António Pigafetta, que tinha uma enorme admiração por Magalhães. Do lado espanhol só se disse mal do navegador. Nem se sabe bem onde ele nasceu, provavelmente terá sido no Porto. [A Circum-navegação] foi uma viagem importante para a cartografia e o conhecimento do mundo. Sabia-se há muito que a terra era redonda, mas não se sabia que era circum-navegável e isso foi fundamental para pôr os povos em contacto. O facto de Fernão de Magalhães ter conseguido comandar com êxito aquela que foi, provavelmente, a mais extraordinária viagem marítima de todos os tempos diz muito sobre as qualidades de liderança e de conhecimento técnico que tinha. Teve persistência na descoberta de uma passagem para o Pacífico e, pela primeira vez, atravessou-o em frágeis navios de madeira, as naus.