EntrevistaJorge Prado, músico chileno: “A nossa democracia é imperfeita” Andreia Sofia Silva - 25 Abr 2024 Era adolescente quando o referendo no Chile deu o “Não” à ditadura de Pinochet, instaurada com o golpe de Estado de 1973. Meses depois, a 25 de Abril de 1974, Portugal ficava livre desse regime. Na luta dos dois países foram muitas as influências. Hoje, Jorge Prado considera-se um precursor da guitarra portuguesa e do fado no Chile, tendo musicado para fado poemas de Gabriela Mistral Optou pela música em vez do futebol. O que havia na música que lhe despertou mais a atenção? Tinha de ter muita disciplina para fazer as duas actividades, até pelo momento que vivíamos no Chile, os anos 80. Aí a música era algo distinto, e gostava da música que os chilenos faziam no exílio. Tinham uma mensagem, e aí comecei a explorar os instrumentos que tocavam. O resultado de fazer música era distinto do resultado de jogar futebol. Tinha mais prazer a fazer música. Claro. Se a minha decisão tivesse passado por ser jogador do futebol, depois dos 35 anos não poderia continuar a jogar. Provavelmente teria muito dinheiro. Nunca me arrependi da decisão. A sua decisão de se tornar músico profissional foi muito influenciada pela situação política no Chile. Viveu o período do referendo para acabar com a ditadura de Pinochet. Foi fundamental essa politização? Claro. Antes disso eu ouvia música inglesa pop, gostava muito de grupos como os Queen, por exemplo. Gostava de ouvir, mas não de tocar. E depois quando conheci a canção de intervenção, queria cantar e tocar. Foi assim que decidi fazer esse caminho. Encontra semelhanças entre as canções de protesto portuguesas e chilenas? Há muitas coisas em comum. Muitos músicos e grupos chilenos gravaram a “Grândola, Vila Morena” depois de 1974. Depois tive a sorte de os conhecer quando regressaram ao Chile do exílio. Eram os meus super-heróis e agora são meus amigos e colegas. Tenho um grande amor por Portugal e conhecíamos José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, José Mário Branco. Os cantores portugueses de protesto tinham muita solidariedade com o que se passava no Chile. O que é que uma boa canção de intervenção tem de ter? A letra é muito importante e deve ter poesia também, não deve ter só a parte do protesto. Também gosto que tenha metáforas. Se for directa é bom, mas tem de ter sempre algo artístico. Claro que os arranjos também são importantes. Tem de ter lindas melodias. Como foi o início da sua carreira? No momento em que tomei a decisão de ser músico estava ainda na escola e tinha um grupo. Fazíamos música juntos e foi assim que começámos. Vivia em Talca e para estudar música a única possibilidade era ir para Santiago, e eu não queria. Não queria deixar o meu grupo porque tinha fé de que iríamos conseguir fazer coisas importantes. Então fiquei mais um ano em Talca. Estudei durante um semestre algo que não tinha nada a ver com música e depois vim para Santiago para estudar música. Deixei os meus companheiros com muita dor, mas a vida é assim. A minha ideia sempre foi trabalhar em torno dos instrumentos, ser um intérprete. Não sabia era de quê, mas o destino quis que fosse multi-instrumentista. Consegui ser polígamo na música. Começou no tango? Não. A música que fazia na adolescência tinha uma grande ligação à canção de protesto, mas tinha mais raízes da zona do norte do Chile, semelhante ao do sul do Perú e da Bolívia, a chamada música altiplânica, com instrumentos de sopro feitos de bambu, por exemplo. Já em Santiago queria continuar a fazer esse tipo de música e tocava flauta. Comecei por estudar música clássica, mas o caminho não era por aí, queria explorar outras linguagens musicais, e entrei numa escola chamada “ProJazz”. Esse caminho levou-me ao tango, porque não queria tocar jazz, mas sabia que a sua linguagem é importante para toda a música, nomeadamente a improvisação e a harmonia. Depois estudei com dois maestros de jazz em Buenos Aires, no tempo em que a Argentina estava numa crise como está agora. Foi um momento lindo da minha vida. Além de aprender jazz fazia um caminho próprio na composição, gostava muito de escrever música instrumental. Com a linguagem do jazz queria potenciar esse tipo de música e ter um trabalho distinto. Só depois é que comecei no tango. Depois há uma altura em que se apaixona pela cultura e língua portuguesas, tendo vivido um período no país. Em 2008 tive a oportunidade de acompanhar um grande músico chileno, Patrício Castilho, que não voltou do exílio, tendo ficado em França. Fez um concerto em Barcelona nesse ano e tive a sorte de o acompanhar fazendo o que sabia fazer, tocar flauta traversa. Aproveitei para trabalhar como músico de tango na Catalunha, onde estive dois meses. Depois tive um convite de um amigo chileno para ir à Galiza, mas não gostei da Galiza. Não estava a acontecer nada, não estava animado, até que recebi um convite para ir a Guimarães da parte de um guitarrista, e fui. Essa é a magia da minha vida. E aí tudo mudou. Decidi viver em Portugal depois disso. Comecei a pesquisar onde se podia tocar tango e, finalmente, escrevi para Lisboa. Responderam-me que contavam comigo para tocar às sextas e sábados. E fui viver para uma pensão na Praça do Chile. Comecei depois a tocar todas as noites. Isso em 2009. Foi aí que começou a ouvir fado. Sim, e foi amor à primeira vista. Adorava. Terminava de tocar tango e, no Bairro Alto, havia sempre algum lugar onde conseguia ouvir fado. Perguntava a amigos onde podia ouvir fado tradicional. Tango e fado têm algo em comum? A melancolia, por exemplo? Claro. Têm muitas semelhanças, mas como Amália disse uma vez, o tango é uma tristeza de desamor, e o fado é uma tristeza de vida. Ambos têm muita melancolia e são também semelhantes na harmonia. Como descreve o português e a sua cultura? O português é muito alegre, mas claro que tem momentos de melancolia. Conheci a Europa e acho que os portugueses são os mais sul-americanos de todos. Culturalmente, Chile e Portugal são países de poetas. Quais os seus poetas portugueses favoritos? Além de Pessoa, conheci e gosto muito da poesia de Florbela Espanca. Penso que é uma poesia parecida com a de Gabriela Mistral, que também estava atrás de um homem importante e não era reconhecida. As temáticas da Florbela e Gabriela são ambas profundas e intensas. No Chile, até aos dias de hoje, existe uma grande dívida para com Gabriela Mistral e há quem defenda que Florbela Espanca deveria ter maior reconhecimento no Chile. A ligação entre as duas poesias poderia ser um ponto de partida para esse maior reconhecimento. Musicou poemas de Gabriela Mistral com fado. Como foi esse projecto? Foi algo muito intenso e lindo. No Chile só os estudiosos conhecem bem a história de Gabriela Mistral, sobretudo como diplomata. Conheci a história dela em 2009, tendo-me deparado com a frase dela de que em Portugal conheceu a felicidade. Também encontrei. Soube que ela também não gostou de Espanha, saiu de lá de forma meio escandalosa devido a declarações que fez sobre os espanhóis. Em 2009 voltei ao Chile, até porque em Portugal a situação não estava boa. A minha dúvida era se comprava ou não uma guitarra portuguesa. Pensei que no Chile ninguém conhecia o fado, mas cheguei cá e todos me diziam que o fado era lindo e que o devia tocar. Comecei a conhecer a comunidade portuguesa em Santiago, pequena, e também a tocar guitarra portuguesa. Comecei a aprender sozinho. Em 2014 dei início ao projecto “Fado al sur del mundo”, com quatro músicos chilenos de estilos distintos. Depois surgiu a oportunidade de desenvolver um projecto para o programa de actividades do Centro Cultural Gabriela Mistral e pensei em fazer algo com o meu grupo de fado, mas relacionado com a poesia melancólica de Gabriela e Portugal. Pensei que a sua poesia poderia ficar bem com o fado. Foi então aprovada a ideia de um espectáculo de fado com poemas de Gabriela Mistral. Mas a pandemia trocou-lhe as voltas. E não só. O concerto foi cancelado devido à agitação social que aconteceu no Chile em 2019. Houve recolher obrigatório, os protestos eram muito violentos. O que espoletou os protestos foi o aumento do preço do metro, mas depois as manifestações passaram a ser sobre todo o sistema. O Chile é um país muito desigual, com um péssimo sistema de saúde, em que quem não tem dinheiro não tem tratamento. Era um momento histórico. A polícia foi muito repressiva. Foi nessa altura que o projecto ganhou forma, mas o concerto teve poucas pessoas. Queria continuar quando as coisas acalmassem, e aí chegou a pandemia. Não havia trabalho e pensei em dar continuidade ao projecto, porque conhecia muitos músicos. Falei com o meu grande maestro da guitarra portuguesa, José Manuel Neto, sobre a possibilidade de gravar um disco. Concorri a um concurso ao Ministério da Cultura do Chile e ganhei, mas o financiamento era muito limitado para o orçamento. Aí falei com a Embaixada de Portugal no Chile e consegui o apoio para gravar “Saudades de Gabriela – Mistral y el Fado”. Sabia que se falasse com os melhores músicos portugueses o resultado seria espectacular. Considera que é um dos grandes dinamizadores do fado no Chile? Acho que sim. Quando tenho de fazer algum comentário sobre mim digo que sou o precursor do fado no Chile, porque dez anos depois de ter começado não há mais ninguém que toque guitarra portuguesa. Sinto da parte da comunidade portuguesa um grande respeito porque sabem que sou um chileno que tem amor pela sua cultura e gentes. Os artistas chilenos continuam a trabalhar muito em torno do passado político do país e da ditadura. Sente que não foram feitas as pazes com esse passado? Claro. São 50 anos. Penso que nunca haverá uma resolução. Os filmes têm sempre a temática do golpe de Estado. É como uma ferida aberta. Penso que isso acontece porque não tivemos justiça. O ditador [Augusto Pinochet] não cumpriu uma pena, ficou em casa até ao dia da sua morte. O que impede que consigamos virar a página é o facto de continuarmos a ter um sistema económico deixado pela ditadura. Se isso não mudar é difícil, porque a desigualdade é o centro das injustiças. Hoje temos pessoas novas de direita que dizem que Pinochet foi importante. Viveu o referendo que deu a vitória ao “Não”. Recorde-me esse momento. Parecia um filme. Tínhamos muita fé de que o “Não” pudesse ganhar. Tinha 14 anos, tinha já muita consciência do que significava viver em ditadura, e o que poderia significar voltar à democracia. Nasci um ano depois do golpe de Estado e não tinha nenhuma experiência de vida em democracia. Nesse dia fui jogar futebol e voltei depois a casa da minha mãe, sabendo depois o resultado na rádio, que Pinochet tinha sido derrotado, e fiquei muito feliz. A nossa democracia é muito imperfeita, por causa da desigualdade social e injustiça política, mas para mim esse período [revolucionário, associado à ditadura] acabou. Os chilenos viram acontecer à distância a revolução em Portugal a 25 de Abril de 1974. Houve sempre uma influência desse momento na luta chilena. Sim. Falava com a minha mãe outro dia porque nasci uma semana depois da Revolução dos Cravos, e perguntei-lhe o que se falava cá sobre isso. Não vivíamos em Santiago e as informações eram poucas. Em Portugal criou-se o grupo musical Brigada Victor Jara, por exemplo. Sim, há essa influência. Quase na mesma altura em que Portugal acabou com a sua ditadura o Chile começou a sua.