O Ocidente dividido

“Make no mistake, the normative authority of the United States of America lies in ruins. The decision to go to war in Iraq, without the explicit backing of a Security Council Resolution, opened up a deep fissure in the West which continues to divide erstwhile allies and to hinder the attempt to develop a coordinated response to the new threats posed by international terrorism”.
The Divided West
Jürgen Habermas

 

O ataque do Hamas a Israel a 7 de Outubro de 2024 não deriva da invasão da Rússia à Ucrânia a 24 de Fevereiro de 2022. Confirma que a introversão americana solicita as ameaças que o caos representa para o Ocidente dividido e as oportunidades de quem usa o caos para se expandir. É o caso do Irão. A dimensão estratégica do “pogrom” do Hamas no interior do Estado judaico desafia a disputa Irão-Estados Unidos-Israel. O jogo dá-se no “Grande Oriente Médio”. Este estende-se desde a intersecção do Mar Negro, do Mar Cáspio e do Cáucaso, da encruzilhada do império russo, turco e persa, para leste até ao Paquistão e ao Afeganistão, para oeste através dos estreitos do Suez, de Babelmândebe e de Ormuz.

O Sul da Europa, atento ao seu próprio destino, verá ameaçados os seus interesses (um Mar Mediterrâneo livre e aberto), (evitar uma colisão com o caos) e (estabilização dos vizinhos estrangeiros). Confirmando a urgência de estabilização dos vizinhos estrangeiros (Euroquad), o núcleo ocidental do Mar Mediterrâneo, o menor denominador comum para se afirmar na luta em expansão descontrolada. O futuro da zona, pois falar de região é não perceber o seu interior, depende do resultado do confronto entre o par Estados Unidos-Israel e o Irão, que se apoiam em clientes seleccionados. O objectivo americano e israelita é conter a expansão do império russo e proibir-lhe por todos os meios o acesso à “bomba atómica”.

O sonho iraniano é obrigar os Estados Unidos a recuar para a linha Egipto-Chipre e isolar Israel. Não destruí-lo, pois é o inimigo perfeito, útil para legitimar o “eixo de resistência”, o suporte da sua esfera de influência entre o Afeganistão Ocidental e o Oriente, com clientes árabes xiitas e sunitas. Entretanto, a Turquia afirma o seu peso decisivo, pronta a lançá-lo sobre este ou aquele prato da balança, enquanto os sauditas e os petromonarcas do Golfo se adaptam a qualquer acto de equilíbrio para não serem esmagados por concorrentes superiores. A Rússia aproveita a “distracção” americana, que deixa a Ucrânia numa situação desesperada.

A China, que, ao contrário da América, extrai da região recursos energéticos essenciais e aí desenvolve os portos de escala das “Rotas Marítimas da Seda”, ostenta uma ligeira honestidade, treinando os seus músculos diplomáticos com vista a um possível futuro hegemónico.

No Médio Oriente, Washington encontra-se, portanto, na encruzilhada clássica, a de encurtar as frentes, retirando-se entretanto do Iraque e da Síria, onde é um alvo fácil para as milícias pró-Irão, correndo o risco de agravar a crise em Israel, facilitar o castigo da Rússia e a influência da China. Ou reentrar nela em estilo feroz, admitindo o fracasso do desengajamento gradual disfarçado com o paradoxo de “liderar por trás”, postulado após os desastres da “guerra contra o terrorismo” no Afeganistão e no Iraque.

Nesse caso, a sobre extensão das estrelas e das riscas revelar-se-ia monstruosa, pois a guerra quente com a Rússia, morna a ferver contra o Irão, fria mas decisiva contra a China para não falar da Coreia do Norte. Compromissos de intensidade militar inversamente proporcionais às vagas prioridades estratégicas actuais de Washington. Enquanto a única fronteira que realmente interessa à opinião pública americana é a do “Vale do Rio Grande”, onde talvez se decida a corrida para a Casa Branca. Como se isso não bastasse, o eixo com Israel está rachado.

Em aparência, porque Biden considera Netanyahu um inimigo pessoal em casa como se fosse um dos líderes do Partido Republicano, bem como o primeiro-ministro mais desastroso da história do Estado judaico. No fundo, isso provoca uma clivagem entre as estratégias e as tácticas de um casal em crise de nervos. Washington tinha a ilusão de poder gerir o Médio Oriente à distância, contando com o entendimento entre Israel, parente e não aliado e o Golfo liderado pelos sauditas, serpentes e não parentes.

O ataque do Hamas a Israel e a reacção de Jerusalém, surda aos apelos da administração americana de “não repetir os nossos erros”, ou seja, nada de “guerra contra o terrorismo”, quebraram a confiança e como resultado, mais desordem na “Terra do Caos”. O único grande Estado da região que parece ter sido poupado à ofensiva da desintegração é a Turquia. Todos os outros, incluindo o Irão e Israel, lutam pela sobrevivência. Uma roleta russa mortal, com Ancara a ser a porta giratória entre as entropias ucranianas e do Médio Oriente que se alimentam mutuamente. O Sul da Europa conta muito pouco num espaço que já o viu importante no início do século XX, e depois também durante a Guerra Fria.

Será um caso de reaprender algumas lições esquecidas dos nossos antepassados levantinos, capazes de tecer relações oblíquas com potências locais, mais ou menos otomanas. Por exemplo, a economia e o comércio não valem por si, mas são meios necessários para ganhar peso geopolítico, que por sua vez abre novos mercados. O objectivo estratégico é contribuir para evitar o choque de civilizações entre o Ocidente e o Oriente, do qual nós europeus seríamos uma das primeiras vítimas. Neste caso, estamos ao lado dos Estados Unidos e de Israel, mas, juntamente com muitos outros, sabemos que uma guerra potencialmente atómica contra o Irão incendiaria o nosso quintal.

E tornaria intransitáveis as águas que nos abrem as rotas oceânicas. A crise do Mar Vermelho, com os Hutis a bloquearem selectivamente o tráfego ao longo do corredor Suez- Babelmândebe e vice-versa, é uma proclamação moderada do que aconteceria em caso de guerra total na região. Seria equivalente a um bloqueio naval. Um desastre a ser evitado com a ajuda de amigos e aliados clássicos. E menos clássicos, como os turcos. Nem que seja pelo facto de serem activos e ambiciosos em toda a nossa vizinhança externa, da Tripolitana aos Balcãs do Adriático, passando pelo Oriente e pelos centros do Mar Mediterrâneo. Que desce do Adriático e do Jónico em direcção ao sul, com a parte ocidental plantada na antiga Líbia e a oriental entre o Suez, Israel e o Oriente. Pontos fulcrais do sistema em que se situa o centro da Europa do Sul e que dão sentido e enfoque ao projeto euro-mediterrânico.

Em Israel, com outros europeus, para além do interesse geopolítico, existe uma responsabilidade histórica para com o Estado judaico que fala muito mal dos sul europeus. A esta realidade afastada ou, pior ainda, algebricamente ritualizada, junta-se a maldade oferecida aos palestinianos sob ocupação, que disputam com os israelitas um espaço que ambos sentem como seu. Até 7 de Outubro de 2023, havia um acordo não escrito entre os dirigentes israelitas e palestinianos segundo o qual ninguém tentaria solucionar um problema que só poderia ser resolvido através da aniquilação de um ou de outro povo. Ou de ambos. A simetria entre o poder de Israel e a fraqueza dos palestinianos divididos e sem Estado deixava a Jerusalém uma margem de manobra muito grande para interpretar esta limitação, expandindo entretanto as colónias na Judeia e na Samaria (Cisjordânia).

E a subcontratação de Gaza aos Hamas, regulando a entrada de dinheiro do Qatar para manter a sobrevivência precária da “Faixa”. No entanto, continua separada da Cisjordânia, aproximada ao fantasma da “Autoridade Nacional Palestiniana”, portanto controlada por Israel. Com o 7 de Outubro de 2023, este equilíbrio foi quebrado. E a ânsia de uma vitória decisiva, palavra de ordem dos estrategas israelitas, ressoa.

Não sabemos até que ponto o Hamas, ou melhor, a sua ala militar, tinha sofrido as consequências do ataque aos “kibutzim” e aos postos militares israelitas em torno da “Faixa”. Mas a ferocidade desse massacre totalmente falhado produziu um tal choque em Israel que este recaiu na armadilha de Gaza, da qual se tinha emancipado em 2005, pensando sufocar a questão palestiniana sob uma eterna borbulha. Irritado com os avisos dos americanos e de uma parte da cúpula militar, Netanyahu desencadeou o castigo colectivo dos habitantes de Gaza, comparados ao Hamas, apelidados de “animais humanos” pelo ministro da Defesa Yoav Gallant. (continua)

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