O declínio do Império Americano

“The rise and fall of great powers is, thereby, the central dynamic of international politics”.

The Rise and Fall of the Great Powers – Paul Kennedy

A causa principal de uma possível guerra em grande escala deve-se ao rápido declínio do Império Americano. A pretensão global corroeu a nação. Põe em causa a sua existência. E revela o seu lado maníaco-depressivo. Doença dos impérios, oscilando entre o delírio de omnipotência, com a sua excitação psicomotora, e a depressão catatónica, manifestada pela abulia e pela distimia. Em nada menos de trinta anos, a potência número um passou do unipolarismo geopolítico ao bipolarismo psíquico. O pêndulo de Washington oscila entre a expansão ilimitada e a contracção descontrolada.

Considerando as invasões e outros envolvimentos militares, de todos os Estados, apenas Andorra, Butão e Liechtenstein não experimentaram a presença de forças armadas dos Estados Unidos no seu território. Os americanos podem estar a aproximar-se da sua concha, a Ilha da América do Norte constituída pelos Estados Unidos mais o Canadá, mas sem o México, um veículo de infecção migratória. É difícil que o descanso seja poupado à festa dos Estados Desunidos. A melancolia que aflige os americanos desencadeia no resto do Ocidente, a Europa atlântica à cabeça, síndromes de abandono desordenado.

Em contrapartida, no duplo inimigo sino-russo, par improvável gerado pela palidez visível das estrelas e riscas, como nos outros adversários declarados, do Irão à Coreia do Norte, prevalece o sentimento de poder esbofetear o antigo poder hegemónico sem arriscar a pele. No caso Iraniano, pagando direitos limitados, enquanto na família Kim o limiar da dor parece mais elevado. Talvez se trate apenas de uma encenação. Se assim não fosse e o sumo-sacerdote do Juche (a ideologia oficial do regime de Kim Jong-un) descongelasse o jogo coreano ao fim de mais de sete anos, a III Guerra Mundial rebentaria por fusão das peças evocadas pelo profeta Papa Francisco quando afirmou que a “terceira guerra mundial foi declarada” e que o conflito na Ucrânia “talvez tenha sido provocado”.

A possível guerra espalha-se de diferentes formas. À frente quente na Ucrânia juntou, desde 7 de Outubro de 2023, Israel e o Médio Oriente. Teatros que adquirem uma dimensão mundial graças ao envolvimento dos Estados Unidos e aos ataques do Outono no Mar Vermelho, confluência entre o Atlântico e o Indo-Pacífico. No antigo Terceiro Mundo, curiosamente rebaptizado de Sul Global, os tabus da superpotência e a fragilidade das antigas nações imperiais europeias excitam vontades de vingança dispersas após séculos de colonização ocidental. A “Terra do Caos” está a expandir-se à medida que se torna mais caótica. Entre colisões de poderes e convulsões nas zonas de baixa pressão geopolítica que rodeiam a Europa, todas as linhas vermelhas se esbatem simultaneamente. Vista de Bruxelas, esta deriva representa o pior cenário possível que é a negação dos interesses vitais europeus.

O catálogo de desgraças traduz uma tempestade na América, virada sobre si e convencida de que está a apostar tudo em jogo na luta com a China; uma crise no império euromediterrânico dos Estados Unidos, do qual a Europa é uma província importante; uma tensão entre o Ocidente colectivo (slogan de Putin) e o Sul global (imprecisão homologada pelos meios de comunicação), ou seja, entre um oitavo da população mundial, conservadora porque rica e de idade média, e os restantes sete, adolescentes precários e inquietos, revolucionários muitas vezes imaginários e, portanto, imprevisíveis; a guerra semi-directa contra a Rússia na fronteira oriental, com Moscovo a penetrar no mar mediterrâneo para criar os seus portos de escala e fortalezas entre o Levante e a África; o oportunismo neo-imperial turco, uma lição para aqueles que ainda acreditam na santidade das alianças; a ingovernável diferença e desfaçatez francesa à Europa do Sul (correspondida), com Paris em modo predatório face ao que resta da indústria avançada daquela zona da Europa e a rotação da Alemanha sobre si.

Para os apocalípticos, a III Guerra Mundial foi anunciada, tendo em conta o ponto de partida das duas primeiras. Nas dobras da possível guerra está o confronto fatal entre os Estados Unidos e a Alemanha. Existe uma má visão que a América está a tentar seguir na guerra da Ucrânia, pois cada golpe da América na Rússia é também um golpe na Alemanha e vice-versa. O mesmo se aplica à China. A Europa foi avisada e meio salva, porque se voltasse a negociar em grande escala com os russos e chineses com os alemães no meio, como fizeram durante décadas nos domínios da energia, do comércio, da indústria e outros, a retaliação seria pesada. A cadeia Pequim-Moscovo-Berlim, que a América sente apertar-se à volta do seu pescoço, não poderia e não poderá envolver a península central do Oceano, um semi-protectorado das estrelas e das riscas.

O confronto entre os Estados Unidos e a Alemanha, uma constante da I Guerra Mundial, da II Guerra Mundial e, eventualmente, da III Guerra Mundial, é totalmente assimétrico. Uma coisa é o número um, que luta pela sobrevivência. Outra bem diferente é ser o antigo aspirante a potência hegemónica, esmagado em 1945 e submetido a uma lavagem cerebral tão lenta que lhe distorceu as feições e o meteu no casulo da grande Suíça. De tal forma que convenceu muitos alemães da replicabilidade do paradigma suíço. Neutralização de facto insustentável depois de 24 de Fevereiro de 2022. Tal, é apercebido, talvez antes dos alemães que ainda se debatem com os efeitos secundários do excesso de hipnóticos que lhes foram administrados pelos vencedores. Os americanos entram, os russos saem, os alemães caem.

Os Estados Unidos continuam a tratar a Alemanha como um sujeito impróprio. Inimigo latente. Como o reflectido na ameaça do Presidente Biden ao Chanceler Scholz na conferência de imprensa conjunta na Casa Branca em 7 de Fevereiro de 2022 onde é afirmado que se a Rússia voltar a invadir a Ucrânia, não haverá “Nord Stream 2” (que é uma cadeia de gasodutos que transportam gás natural pelo Mar Báltico e da Alemanha, uma grande parte do gás é redistribuído para outros países da Europa). É perguntado ao Presidente Biden como iriam fazer, uma vez que o projecto está sob controlo alemão? Tendo este respondido sem tergiversações de que o fariam e o Chanceler alemão perante tal resposta não esboçou qualquer sinal de oposição. O caso do “Nord Stream 2” é apenas o mais impressionante dos infortúnios que se abateram sobre a Alemanha desde o fatídico 24 de Fevereiro de 2022.

A lista de desastres sofridos até à data é longa. A começar pela perda do gás russo, substituído pela Noruega numa quota-parte de necessidades (60 por cento) quase igual à anterior, com um mínimo de diversificação. Seguida da contracção do comércio com a China, de que sofre sobretudo a indústria automóvel, despreparada para a agressão dos carros eléctricos no mercado chinês e não só. Mais uma vez, a Alemanha perde o controlo sobre o seu império geoeconómico informal, a Mitteleuropa alargada ao Leste de França e ao Norte de Itália, com a Polónia a empurrar-lhe para a cara a factura das reparações devidas pelo tratamento dado pelos nazis no valor 1,3 mil milhões de euros.

A Polónia nunca os verá, mas o gesto impressiona. A face geoestratégica desta crise reside na afirmação da Polónia como o parceiro europeu privilegiado pelos Estados Unidos numa função anti-russa. E na tentativa americana de descarregar sobre a Alemanha e, portanto, sobre os outros europeus, os milhares de milhões de euros que foram calculados para pôr a Ucrânia de pé. A recessão, até agora modesta (-0,3 por cento), não é apenas conjuntural. Na verdade, exprime uma paragem estrutural do motor económico do continente devido à falta de combustível. O motor terá de ser reconstruído e o combustível terá de ser mudado. Isso levará muitos anos. A repercussão política da crise reside na queda vertiginosa do prestígio e da influência da Alemanha na Europa e no mundo.

Se houvesse uma votação agora, o governo estaria em minoria. A estrela neo-nacionalista da “Alternativa para a Alemanha (AfD) ” brilha na antiga RDA, de tal forma que as autoridades sugeriram a sua ilegalização por “migração” neo-nazi. Um quinto do eleitorado seria desqualificado. Não há vestígios do rearmamento anunciado pelo Chanceler alemão. As forças armadas alemãs continuam a ser o menos eficaz dos exércitos dos principais países europeus. Enquanto se espera que a terapia reparadora faça efeito, há quem pense em deitar a mão à bomba atómica. Opção impensável ontem, debatida hoje. Porque o guarda-chuva americano não está lá, apenas com Trump na Casa Branca. Há os que evocam a europeização do arsenal francês, tabu para qualquer inquilino do Eliseu, e os que acrescentam uma bomba para cinco que são a França, Alemanha, Itália, Polónia e Espanha.

Um condomínio decididamente heterogéneo. É também uma forma de habituar a opinião pública a considerar a alternativa por defeito. Alguns sugerem uma aproximação à Rússia e à China, quase como se o perigo viesse do exterior. O AfD é mais do que favorável, pois se a OTAN não nos protege, protejamo-nos com os seus (e não nossos) inimigos. É melhor estar à mesa do que na ementa. Por baixo da pele, os velhos laços com a Rússia e as relações de interesse com a China estão à espera que o massacre ucraniano seja reavivado. A começar pelo canal do Báltico, talvez reduzido a metade. Se, na Alemanha, há um vale-tudo, o AfD propõe o Dexit, um divórcio ao estilo britânico da família da União Europeia, enquanto a América mantém tudo sob controlo, e para os europeus o cenário escurece.

Sobretudo se tivermos em conta a interdependência industrial entre os países do Sul da Europa e a Alemanha, a “segunda fábrica europeia”, o orgulho nacional, é, na realidade, o “único bis”, porque respira a pulmões teutónicos (e, em menor grau, vice-versa). O sentido profundo da crise alemã é que tudo na Europa parece estar a estacionar. Paradoxalmente, a principal razão pela qual a guerra continua é precisamente a de que os termos das longas tréguas que se seguiriam – a verdadeira paz não é para este século – são bastante previsíveis, a menos que a Rússia, a Ucrânia ou ambas desapareçam do mapa geopolítico (e nós Europeus, eventualmente, com elas) com Kiev a trocar a cessão de territórios ocupados por Moscovo por rigorosas garantias de segurança do Ocidente amigo, bem como da Rússia inimiga e de outras potências, sobretudo a China.

Mas como fazer com que os povos beligerantes cheguem a um tal entendimento? Quando Putin e Zelensky ou quem quer que seja encontrarem uma forma de não perderem a face e em lugar de assinarem o acto de tréguas, assinarão talvez um acordo de quatro etapas. Primeiro, um cessar-fogo por tempo indeterminado, com a interposição de um contingente internacional de manutenção da paz, para o qual teriam contribuído os Estados Unidos, França, Reino Unido, Canadá, Polónia, Itália, Israel, Turquia e outros. Também teríamos querido a China, mas Washington estava preocupado com o facto de Pequim se intrometer na fronteira armada entre o seu império e a Rússia. Este grupo de países também teria promovido os passos seguintes. Por esta ordem, a de uma Ucrânia neutra protegida pelas garantias internacionais das grandes potências, com o início imediato das negociações para a entrada na União Europeia; a confirmação dos acordos ucranianos feitos aquando da independência em troca de um governo autónomo para as zonas da Geórgia, com o entendimento não escrito de que a Crimeia e Sebastopol continuariam a pertencer a Moscovo; finalmente, o ponto decisivo seria o início das negociações para um tratado internacional entre os Estados Unidos, a Rússia e as potências europeias para a paz e a segurança na Europa.

Putin fez saber à diplomacia europeia que apreciava este último ponto, que abriu a porta ao entendimento pan-europeu reclamado por Moscovo. Em conformidade com a aspiração secular da Rússia de participar no equilíbrio de poderes na Europa. Mas Biden e sobretudo Johnson, que tinham acabado de sabotar o acordo de cessar-fogo negociado e parafraseado pelos russos e ucranianos na Turquia, não tencionavam discutir o assunto. O que resta dessa iniciativa, apresentada com um eufemismo nostálgico como um “conceito aberto”? Muito, se a interpretarmos à luz dos interesses nacionais primários e da urgência, não só europeia, de apagar o fogo antes que destrua a Ucrânia, totalmente dependente de uma ajuda externa cada vez menor.

Estado falhado a reconstruir. Mas também um aviso de que as acrobacias europeias, espremidas como estão entre a Cila do alinhamento com a América sem linha e a Caríbdis da pressa para encerrar decentemente este conflito antes que ele nos domine, corremos o risco de cair entre duas cadeiras. Manobras diplomáticas que nos excluirão do clube dos co-decisores, que só se lembrarão de nós quando tivermos que pagar a conta do renascimento ucraniano, hoje estimado em cerca de milhares de milhões de euros. Na Ucrânia há muito cansaço de todos os lados e aproxima-se o momento em que todos compreenderão que é necessário uma saída.

O apoio militar a Kiev deve ser aliado a uma “acção diplomática incisiva” para parar a guerra. Resta compreender porque é que a quantidade de sabedoria depositada na diplomacia europeia e americana não se expressa de uma forma suficientemente profunda, mas em formas involuntárias ou semi-clandestinas, entre auto-censura, conversas fúteis e notícias falsas para orientar a opinião pública.

O tempo está a esgotar-se. Este ano saberemos se o conflito ucraniano será resolvido ou descarrilado. É pouco provável que se desenrole de forma linear durante muito tempo. A guerra de fricção que a Rússia e o Ocidente impuseram simultaneamente à Ucrânia, por razões opostas mas convergentes, está a esgotar os recursos humanos e materiais do país atacado. A caça aos tesouros que lhe restam está a decorrer. Para Putin, humilhado pelo assalto falhado a Kiev, a redução drástica mas temporária das ambições, em que o objectivo da operação continua a ser restabelecer a Ucrânia como um tampão, se não mesmo a fronteira ocidental do império impõe paciência.

O Kremlin apostou na distracção gradual do Ocidente (facto), na resiliência do complexo militar-industrial russo (outro facto) e no patriotismo exaltado na propaganda que pretende que a Santa Rússia seja a antemuralha dos valores tradicionais contra o Ocidente desperto (funciona, mas não demasiado). Até que ponto é que este esquema se aguenta? Para Biden e os seus apoiantes que hoje, em seu nome, tentam evitar que a América se afunde e que amanhã se dedicarão a sabotar o eventual regresso de Trump à Casa Branca, trata-se de “anular” a Rússia (falhou, por agora), aguentando a resistência ucraniana à custa de a sangrar até à exaustão (feito) e, com ela, a fachada da unidade atlântica (não há tinta que o simule). Os estrategas de Washington estão divididos entre os que gostariam de negociar uma trégua longa e suja com os russos, segundo o modelo coreano, possivelmente antes de o modelo explodir, e os que estão dispostos a sacrificar o último ucraniano para manter a Rússia sob pressão, na esperança de que o regime imploda. O princípio partilhado por quase todos é que a guerra não deve ser travada contra a Rússia em caso algum. Para isso, há os ucranianos. Estamos em guerra por dupla representação, russa e americana.

Os americanos estão a tentar a todo o custo (ucraniano) evitar o colapso de Kiev. Até ao ponto de arriscarem a desertificação do país de que se dizem protectores, mas que, uma vez terminada a guerra, entregarão aos europeus para que cubram os custos da reconstrução. E contar com a substituição de Zelensky pelo general Valerii Zaluzhnyi, ex-chefe das Forças Armadas e, portanto, seu potencial sucessor, ou por quem mais subscrever a mascarada coreana. O festival dos jogos duplos, ou melhor, múltiplos, conta com a participação dos europeus, que querem abrir as portas da União Europeia a Kiev, enquanto empatam a ajuda financeira e militar, também por falta objectiva de recursos.

Em Bruxelas, calcularam em cento e oitenta e seis mil milhões de euros a ajuda que Kiev receberia em sete anos dos cofres da União Europeia em caso de adesão. Esse montante subiria para cerca de duzentos e cinquenta e sete mil milhões de euros no caso de um alargamento que incluísse a Moldávia, a Geórgia e os seis Estados dos Balcãs Ocidentais na fila de espera em frente aos cofres da União Europeia. Para os Europeus, cada dia que passa agrava o dilema de como garantir que a agressão russa é recompensada sem destruir totalmente a Ucrânia e desestabilizar a Europa para o conseguir? Se a guerra de fricção continuasse, teríamos de lidar com um enorme buraco negro na junção com a cortina de aço anti-russa, guardada pelas vanguardas atlânticas do Nordeste.

Para lá da costa adriática, teríamos de viver com a constelação recortada dos Grandes Balcãs, incluindo o que restará da Ucrânia, a começar pela quantidade de armas enviadas para Kiev e depois dispersas, das quais até os americanos perderem o rasto. De todas as ameaças ao quarteto dos nossos interesses primários, a balcanização da Ucrânia é a pior. Porque sancionaria a fractura quebrada do Ocidente e ameaçaria sugar uma parte dele para a “Caoslândia” total. Mesmo que nada aconteça, seria importante para levar a opinião pública a pensar positivamente. A catástrofe não é uma consequência da catástrofe, é uma premissa da catástrofe.

Feliz Páscoa!

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Naogostei
Naogostei
30 Mar 2024 04:47

Toda essa escrita para dizer o quê?!!