A senhora – 6

E o fato sempre novo, por estrear guardado para um dia. Novo e velho cada vez mais velho também. Velho de tantos anos, quantos tinha de residente.
De lapelas estreitas e subidas. Guardado, embrulhado em papel, sempre o mesmo. Muito direito e dobrado pelos mesmos vincos. No baú de laca limpo e tornado a limpar e com aquele cheiro a bolor incontornável. E os livros. A desaparecer ano após ano nas necessidades, até restarem oito. Para sempre, nem que a fome vencesse todos os dias. Tudo pensado e repensado repetidamente. Dois para cada manga, dois para as bandas das lapelas, dois para os bolsos. Os mais amados. Sobre os bolsos. Tinham que ser aqueles. Sobre os bolsos em sinal de riqueza. O seu tipo de riqueza. Para fazer peso, para no dia em que fosse, fosse como engomado. Já só estes. Oito. A sobrar de rendas em atraso. Lidos, relidos e decorados sem querer. Sobre a enxerga escrupulosamente esticada de roupas e de frio a sobrar porque poucas. Ensaiado o momento ao longo dos anos, para correr como sonhado. As calças do fato, dobradas em duas pelos vincos quase cortantes, sob a almofada. E uma camisa branca, de tão guardada e dobrada, amarelada sem uso nas dobras. Para um dia.
E nos outros sempre a outra roupa em tudo igual mas mais puída e indefinida na cor. Vestígios de corrosão – ratos. Só a mala das figurinhas de sombra e dos cenários, sempre verificada e protegida como podia. Miserável. Como tudo se tornara. Quando deixou de acreditar. Que poderia vencer aquele bolor insano que sempre retomava o seu curso, resistente, forte em aroma e colorido difícil, cada vez mais difícil de desenraizar das roupas. Da cama, da casa. Se assim se podia chamar. A humidade a ressumar de todas as matérias e a chorar em veios que chegavam a escorrer como lágrimas. Mas todos os dias limpava escrupulosamente tudo o que havia e era pouco. Tudo sempre ao longo dos anos a pensar no dia. E no rigor do fato. Isso não podia falhar.
O homem velho que já só precisava de ganhar um mínimo. Mergulhado no caudal humano do Leal Senado, fechava mais cedo os painéis de pano de seda muito descorada e envelhecida, com a figurinha da senhora sem nome, cujo elemento distintivo era uma certa diferença no recorte do nariz, uma inclinação diferente da nuca, bem arrumada e entalada entre os painéis de tecido de seda antiga e grossa, já muito deslavados de sol chuva e bolores, e, tudo numa mala antiga de couro, resistente e gasta, que já começava a pesar em si, independentemente do conteúdo. Como uma idade. Ali. Poisada no chão. Ou uma vida. Ao lado do banquinho de fórmica castanha de abrir e fechar. De perna magra cruzada sobre perna magra, o cotovelo ossudo apoiado no joelho de cima e um olhar vago de resignação para todas aquelas pessoas que escorrem da rua da Palha para o largo. Iguais às outras de minutos antes.
No seu silêncio o homem velho sabia que todas as palavras se tornam nítidas por contraste e por se fazer a vida avançar. Correr ou estagnar no passado.
Pensou e sem concluir, limitou-se a fechar os três painéis de pano muito descorado, com a figurinha da senhora delicadamente protegida. Como filha.

E um dia foi. Atravessou a fronteira e soube que estavam ali à espera de o ver chegar. Próspero e saudoso. Imaginado. O ritual dos livros, dias antes, pesos a alisar o fato. E no dia que era, entristeceu nele uma coisa difusa e sem sentido e foi assim mesmo, deixando o fato para trás. Viu-os. Não de imediato. Mas algo simplesmente no arredondado da nuca da senhora muito velha. Muito pequena, muito enrugada e de olhos míopes. A senhora muito velha cujo único sinal distintivo era a curvatura da nuca enfeitada de um rabo – de – cavalo curto. Tingido de negro. Ele, magro e franzino de ombros, óculos de sol e bolsa marsupial na cintura baixa, a contrabalançar a ligeira curvatura das costas. Fato completo de poliéster. Devia ser ele. O menino que sobrara. Cujo sinal distintivo era um telemóvel no cinto das calças e um relógio grande, no pulso magro.
Olhou para si próprio de dentro e, ainda de longe, para eles. Estranhando como as coisas mudam, a realidade a tornar-se outra coisa, sem disso se fazer missão de vida. Como invisíveis obreiros, zelando. À espreita de sinais de alarme. Prévios. Aquele olhar duro. A segunda menina que não chegou a ver e que ela dera sem hesitar. Talvez isso. Ficando – sem o saber ainda – envolto numa pele de silêncio e, nessa melancolia irremediável, impedido de se ligar a um lugar e, agora, a um caminho.
Olhou. Num longo momento em que uma sucessão de décadas, sacrifícios e sonhos se esfumaram na simples visão do que esperara. De si e deles. De si que não estava ali, e deles que não sabia. Virou-se lentamente de costas e parou para sentir a eternidade pequena daquele movimento. E continuou a andar. Mas de regresso. Não o reconheceram, ou fizeram menção de lhe tornar fácil o momento. Um assomo de alegria e seria diferente. Qualquer coisa faria perigar este virar de costas. Mas não. Seguiu. Agora em frente. Afastando-se para sempre do que – soube no momento – nunca fora a cor, mas o sonho.

Percorreu ruas em cinzentos. Pensou no fato em cima da cama. Chegou. Os oito livros em rumo de desagregação de tanto resistirem às manchas do tempo. Da memória. Para o dia. Que foi um dia diferente do que era para ser. Retirou os livros e devolveu-o cuidadosamente às folhas de papel quase a rasgar nos vincos de muitos anos. Como um mapa de rios sinuosos a rasgar uma terra inóspita. Embrulhou como sempre. Desembrulhou.
Deitou-se pensativo à espera de um resto de sono que atravessasse outros dias até ali. Fazia contas aos anos. Dele, dos livros, do fato para o dia do encontro que passou sem ser.
(continua)

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