A riqueza e os seus deuses

Desde os tempos mais recuados houve quem na China desprezasse a riqueza. Podemos encontrar entre estes os seguidores mais fiéis das filosofias confucionista, daoísta e budista. O cavalheiro confucionista ou o sábio daoísta pouco ligam aos bens materiais. Para estas filosofias, mais importante do que a riqueza material, são os bens espirituais, que cada um vai desenvolvendo como pode: os valores morais, no caso confucionista, e os existenciais, impregnados de espiritualismo, no caso daoísta. Também aos budistas interessa, sobretudo, a libertação dos desejos materiais, a fim de escapar à terrível roda das reincarnações.

Mas, o certo é que, desde os tempos mais recuados muitos, muitíssimos, mesmo, têm sido os que, entre os chineses, amam devotadamente a riqueza. Estes situam-se a um nível mais popular, são a grande maioria da população. Não obstante, neles se incluem muitos dos eruditos, capazes de suspender, no dia-a-dia, com admirável facilidade, os preceitos filosóficos que vão transmitindo nas aulas, conferências e outros momentos teóricos das suas actividades.

Enfim, para a maioria, a riqueza é um bem inestimável. Há até um deus, o da riqueza, ou vários, dependendo das versões, a que as pessoas prestam culto de modo a enriquecer rápida e prolongadamente.

A riqueza, na China, tem uma dimensão religiosa e, por vezes, até mística. Este povo adora com fervor religioso certos bens materiais, como o dinheiro, o ouro, e todos os metais preciosos, as pedras, também preciosas e, em suma, todos os objectos vulgarmente catalogados como tesouros materiais.

A relação dos chineses com a riqueza abre-nos as portas ao estudo de uma religião materialista, onde este mundo e os seus bens são o verdadeiro modelo para um mundo sobrenatural, que só é superior na medida em que copiar, sem quaisquer alterações, a ordem estabelecida na terra.

Nesta mundividência, há uma mensagem bem clara a reter: não basta actuar no mundo laico para se ser rico, é preciso ter fé e procurar o auxílio e a protecção das divindades ligadas à riqueza, caso contrário a sorte não será favorável.

O deus da riqueza, Cai Shen, desdobra-se, em muitas versões, em dois: um militar, representado por Guandi, também conhecido por deus da guerra, e um civil que, não raro, aparece representado pelo ministro da antiguidade, Bi Gan. Este no livro da História é descrito como um servidor leal e justo, que sofreu martírios inenarráveis às mãos de um monarca cruel.

O deus, ou os deuses da riqueza, são adorados com fervores redobrados entre os mais desfavorecidos, como é natural. São-lhes erguidos vários templos e altares, onde abundam oferendas, como vinho, frutas e bolos. As divindades são, também, muito apreciadas em zonas e cidades comerciais, como Cantão e afins.

O deus civil é venerado por pessoas ligadas a profissões, carreiras e negócios que nada tenham a ver com o mundo militar. Já o deus militar é o protector de todos os indivíduos que, de algum modo, se relacionem com a guerra, como cutileiros, ferreiros, militares…

Estes deuses vivem, como já se disse, segundo o modelo da existência terrestre. Têm mulher, família, riquezas sem fim e uma corte poderosa. Despertam um fervor intenso nos seus fiéis tanto eles, como os seus acólitos.

Entre estes, um dos mais conhecidos é Liu Hai, habitualmente figurado por um menino com um colar de moedas à volta do pescoço. O rapaz faz-se acompanhar por uma criatura fabulosa: um sapo de três pernas, que devora moedas. Liu Hai é muito importante, do ponto de vista simbólico, pois mostra bem como, para a mentalidade chinesa, se interligam os desejos de riqueza e descendência masculina.

Outros acólitos da divindade da riqueza são os gémeos da harmonia: He He Er Xian. Estes revelam mais uma característica importante da maneira de pensar dos descendentes do dragão – o espírito familiar. A verdadeira riqueza não surge com indivíduos isolados, mas em união e, especialmente, em família.

A história do par de gémeos chega-nos através de uma lenda. Esta fala-nos de dois irmãos, nascidos de pais diferentes (nessa altura ainda não eram gémeos!), que deitaram mãos à obra, lançando-se ao negócio. Fizeram uma grande fortuna. Com a riqueza a aumentar, acabaram por se desavir. Separaram-se e só na oitava geração os descendentes se voltaram a unir, recuperando todos os bens de que os ancestrais tinham sido senhores.

A harmonia e a união trazem a riqueza e, também, a longevidade e felicidade. Esta última é, muitas vezes, simbolizada num morcego, que congrega, por homofonia, a riqueza e a felicidade.

Associada aos deuses da riqueza e seus acólitos, costuma surgir uma panela preciosa, que terá sido pescada por um homem de Nanjing, no rio Yanzi. O pescador pensou que o utensílio vindo às redes, seria útil para fazer a comida do cão, de modo que resolveu ficar com a panela. Para grande surpresa dele e da mulher, o objecto era mágico, logo tudo o que se punha lá dentro multiplicava-se indefinidamente. Assim sucedeu com a comida do cão, mas, também, com o gancho dourado da mulher, que, inadvertidamente, lhe escorregou da cabeça.

Outros símbolos ligados ao culto da riqueza são: um cavalo precioso, provavelmente de origem budista, de cuja boca se escapam jade, moedas de todos os tipos e outros bens valiosos e que, além disso, transporta um taça repleta de jóias; um dragão-moeda, já que o seu corpo é formado por um longo cordão de moedas; uma carpa, que, por homofonia, representa a abundância, além de inúmeros cestos e caixas a transbordar de tesouros.

Este mundo religioso da riqueza, repleto de seres e objectos sagrados, dá acesso ao crente a todo o tipo de bens preciosos: lingotes de ouro e prata, pedras preciosas, árvores mágicas, donde também saem moedas, e riquezas sem fim. Um grande número de frases auspiciosas, de inegável eficácia mágica, remata e coroa este cenário.

Os possuidores das belas frases caligrafadas podem estar certos de obter o que elas indicam. Para citar algumas, “longa vida, riqueza e posição social”, ou, apenas, “riqueza e posição social, ou “a visita do Deus da Riqueza”…

Na China, e um pouco à semelhança do espírito que anima certas filosofias cristãs do Norte da Europa, para se ser rico há, antes de mais, que acreditar. Em seguida, deve-se cultivar, incessantemente, as relações com os deuses, seus acólitos e nunca esquecer de ter sempre à mão a vasta gama de amuletos aqui referidos. Estes tanto produzem efeito a duas como a três dimensões.

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