Livraria Portuguesa | Livro sobre letras como expressão artística apresentado hoje

De uma conversa ocorrida em São Paulo, Brasil, 2018, nasceu a obra “A letra como elemento de expressão artística: Das artes plásticas à poesia visual”, de Cláudio Rocha e Flávio Tonetti, que será apresentado hoje na Livraria Portuguesa. A ideia é mostrar que o desenho de letras em livros, cartazes e outros formatos é, ao mesmo tempo, uma forma de expressão artística, transmitindo percepções e mensagens ao leitor

 

Sempre que lemos uma palavra ou uma frase não é apenas a mensagem que lá está numa determinada língua, mas também uma expressão artística espelhada na forma como as letras foram desenhadas. Um jornal com determinado design de letras transmite uma determinada ideia ou conceito, tal como cartões de contactos, convites ou currículos.

A fim de chamar a atenção para o lado artístico da letra desenhada, é lançado hoje, às 18h30, o livro “A letra como elemento de expressão artística: Das artes plásticas à poesia visual”, da autoria do académico Flávio Tonetti, actualmente a fazer uma investigação de pós-doutoramento na Universidade de Macau, e Cláudio Rocha, artista visual, tipógrafo e type designer.

Esta obra nasce de uma conversa entre os dois autores decorrida em 2018 na Casateliê em São Paulo, Brasil, reproduzida, com as devidas correcções e alterações, nas páginas do livro. “O nosso livro e a nossa conversa contribuem para que as pessoas possam apreciar essa experiência estética acessível a todo o mundo”, contou ao HM Flávio Tonnetti.

“Gravei, na altura, o encontro e decidimos transcrever a conversa visando estabelecer um texto que apresentasse novamente as imagens e as discussões sobre elas. Quisemos manter o sabor da oralidade, porque é um livro pensado para que outras pessoas se aproximem do campo da tipografia, do ‘type design’ e do uso das letras como matéria formal para as artes plásticas. Exploramos um pouco como é que esse conhecimento se espalha e revela em outras linguagens. Quisemos criar uma linha narrativa mostrando para um público em geral como é que podemos ver a letra como forma e não apenas como conteúdo”, acrescentou.

Ao longo da história têm sido vários os exemplos do desenho de letras, que foi evoluindo à medida que evoluíam as próprias expressões artísticas. Temos, por exemplo, um lado mais clássico e pesado da letra aquando do surgimento da impressão em papel, para mais tarde, no século XX, encontrarmos letras despojadas de floreados em áreas como a publicidade, por exemplo.

Comic e Times New Roman

Na era digital surgiu o desenho de letras para o uso em computadores. Flávio Tonnetti dá exemplos de letras que fazem parte do nosso dia-a-dia e da percepção que elas criam em nós, como é o caso do estilo “Times New Roman”, “uma letra desenvolvida para ser impressa num papel cinza de baixa qualidade, que não reflecte tanto a luz e que tem rugosidade”.

“Hoje em dia usamos essa letra para imprimir em papel liso, cem por cento branco, e a impressão que temos é que a letra não é bonita o bastante, e isso acontece porque ela não foi desenhada para esse suporte”, adiantou.

Há ainda o caso da “Comic Sans”, desenhada “por um artista e designer muito importante para banda desenhada”. “Um acaso da história fez com que ela tenha sido incorporada no pacote de fontes do Microsoft Word e se popularizou muitíssimo. Todos a usam, sobretudo quando fazem convites para festas de crianças, por exemplo.”

Tonnetti explica que, com este livro, a ideia é que “as pessoas passem a olhar o desenho das letras como uma obra de arte”, incluindo quando lêem mensagens urbanas ou cartazes nas ruas. No caso de Macau e Hong Kong, essa experiência ganha uma outra dimensão, graças à existência dos néons e caracteres chineses.

“Estar em Macau fez com que eu tenha passado a ter um campo de apreciação mais aberto [das mensagens e letras nas ruas]. A escrita chinesa sempre foi compreendida como um gesto artístico. A caligrafia sempre foi a arte dos bem-educados, os poetas caligrafam, os artistas, as autoridades. Então as letras sempre foram entendidas como um símbolo de beleza. [Ver caligrafia] sempre foi um acto contemplativo”, adiantou o académico.

O lugar da publicidade

Cláudio Rocha fala da evolução histórica no desenho da letra. A maior mudança surgiu com a Revolução Industrial, “porque antes disso a palavra impressa e a forma das letras eram orientadas para a produção do livro”. Depois surge a publicidade a muito produtos de consumo, o que criou “um novo aspecto a letras que precisavam de ser vistas, mais do que serem lidas”.

Surgiram, assim, “os cartazes, uma comunicação à distância, com apelo emocional e publicitário”. “Criou-se uma nova categoria de letras com mais personalidade, porque antes havia o pensamento de que as letras não deveriam chamar a atenção para si mesmas. Abriu-se aí uma nova perspectiva”, frisou o co-autor ao HM.

Mais tarde “as vanguardas europeias começaram a perceber na palavra um recurso expressivo, ao serviço da arte e da poesia, os primeiros elementos da poesia visual, com os ‘ready-mades’ do Marcel Duchamp”.

Em Itália, há o exemplo dos futuristas, que criaram um movimento filosófico em torno da palavra livre. Depois, “o resto é história”, assume Cláudio Rocha. “As editoras começaram a valorizar o livro como objecto, produzindo letras específicas para os próprios livros. Chegamos à era digital onde o recurso de criar letras permitiu que os designers criassem as suas próprias letras sem depender dos que vendiam para as indústrias gráficas. O próprio designer passou a ser o autor.”

Para Cláudio Rocha, apresentar este livro em Macau constitui “um desafio”, levando o co-autor a pensar nas “diferenças em termos da estrutura da escrita, porque na China a escrita é ideogramática, então a estrutura é completamente diferente”.

“Escrevemos, no Ocidente, com a escrita romana, temos o grafema que representa o fonema, o que não ocorre no idioma chinês. A beleza, a complexidade e a estrutura do idioma chinês, com signos, faz com que quem não entenda chinês seja obrigado a olhar para as palavras como imagens.”

À semelhança do que afirma Flávio Tonnetti, Cláudio Rocha entende que a caligrafia “é considerada, na China, como uma forma de arte, tão valorizada como a pintura ou gravura, o que não acontece no Ocidente, onde a escrita e a tipografia têm um carácter utilitário”. Desta forma, “apresentando o livro em Macau para um público que já sabe a diferença na forma de tratar a escrita, pode ser o início de uma boa reflexão”.

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