Visita | Macron recebido com todas as honras, Ursula von der Leyden em tom muito menor

Uma visita, duas atitudes. Emmanuel Macron trouxe consigo a presidente da Comissão Europeia, que Pequim praticamente ignorou, enquanto proporcionava ao presidente francês uma visita cheia de sucessos e com grande cobertura mediática. No fim, Macron distanciou-se das posições americanas face a Pequim e considerou que a Europa deve alcançar “autonomia estratégica” e tornar-se no “terceiro pólo”

 

O presidente francês Emmanuel Macron recebeu o tratamento completo de tapete vermelho a semana passada em Pequim: foi-lhe oferecido um banquete estatal, foi saudado por desfiles militares, tiros de canhões na Praça Tiananmen e, quando o seu avião aterrou, o Ministro dos Negócios Estrangeiros da China deu-lhe pessoalmente as boas-vindas. Já quando a Presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen chegou à China foi recebida pelo ministro da Ecologia, na saída regular de passageiros no aeroporto de Pequim.

Durante os dias da visista, a agenda de Macron esteve sempre a transbordar, já a de Ursula von der Leyen foi minimal. Enquanto Macron assistia a um banquete de estado na quinta-feira à noite com o Presidente chinês Xi Jinping, von der Leyen dava uma conferência de imprensa na sede da própria delegação da UE. Enquanto os meios de comunicação social chineses relatavam a relação sino-francesa com notas positivas, demonizavam von der Leyen como um “fantoche americano”.

A estratégia chinesa começou na quinta-feira, quando Xi desceu os degraus do Grande Salão do Povo para saudar o presidente francês com sorrisos e um aperto de mão. Abaixo de uma linha de bandeiras vermelhas, os dois líderes trocaram saudações com uma reunião que incluiu alguns dos conselheiros de Macron. Quem não estava presente era von der Leyen. Ela juntar-se-ia mais tarde às reuniões, subindo sozinha as escadas do Grande Salão.

Convite falhado

A decisão de Macron de convidar von der Leyen para a viagem pretendia ser uma demonstração da unidade europeia. Mas o resultado foi tudo menos isso. Embora os funcionários da Comissão antes da viagem tivessem salientado que von der Leyen seguiria um calendário diferente do presidente francês – e não participaria na sua visita de estado – o resultado foi desarticulado.

Os meios de comunicação estatais chineses fizeram as suas opções. Na página inicial da agência Xinhua, grande parte do foco centrou-se inteiramente em torno de Macron e dos laços da China com a França, deixando a UE como um assunto quase invisível. Noutros meios de comunicação social, von der Leyen foi vilipendiada – um tema que se acelerou desde que o chefe da UE proferiu na semana passada um discurso relativamente agressivo sobre a China.

“A viagem de Macron tem a expectativa de que a China dará um impulso à França … mas ao trazer von der Leyen, parece que falta um pouco de sinceridade a Macron”, lê-se num artigo publicado por uma plataforma de comunicação social afiliada ao Ministério da Defesa. E continua: “Von der Leyen, uma conhecida personalidade pró-EUA, vende a Europa para lucrar com os EUA, que não se poupa a esforços para empurrar a Europa a confrontar a Rússia. Conseguiu chegar à China apenas por se ter agarrado a Macron”.

Vários comentadores com enormes seguidores nas plataformas de comunicação social chinesas dizem que a visita de von der Leyen foi realizada “com má fé”. “O seu objectivo está longe de ser simples”, de acordo com um comentador com um relato com um quarto de milhão de seguidores. “Os americanos podem tê-la encarregado de vigiar Macron”.

Mas não foram apenas os comentadores chineses que apreenderam a discórdia projectada pelas comunicações desencontradas da viagem. As diferenças políticas de Macron e von der Leyen quando se trata da China – Macron, um líder ansioso por trabalhar com Pequim; von der Leyen, com uma perspectiva mais aguerrida – surgiu durante a visita.

A necessária distância

Horas depois de ter aterrado na China na quarta-feira, já o presidente francês se distanciava do discurso principal de von der Leyen na semana passada. Questionado sobre o assunto durante uma reunião com a imprensa, Macron recusou-se a comentar o discurso e, em vez disso, disse que a UE “tem uma estratégia que foi definida no Conselho Europeu; esta estratégia é clara e definida, e é essa que é a nossa referência”, retirando assim peso à Comissão Europeia e à sua presidente.

Enquanto funcionários franceses sublinharam que Macron não estava interessado em levantar a questão de Taiwan com os seus anfitriões, von der Leyen discutiu o estatuto da ilha com Xi. “Ninguém deveria alterar unilateralmente o status quo pela força nesta região”, disse ela. “O uso da força para alterar o status quo é inaceitável e é importante que as tensões que possam ocorrer sejam resolvidas através do diálogo”.

Ucrânia sem nuclear, obrigado

Depois das conversações entre os presidentes, China e a França asseguraram apoiar “todos os esforços para restaurar a paz” na Ucrânia, ressalvando a sua oposição face a ataques armados contra centrais nucleares. A posição foi expressa num comunicado conjunto, citado pela agência Xinhua.

Os dois países defenderam ainda a procura por “soluções construtivas, tendo por base o direito internacional, para os desafios e ameaças ao nível da segurança e estabilidade global”. Para Pequim e Paris, as disputas devem ser assim resolvidas “pacificamente e através do diálogo”.

Na reunião com o seu homólogo chinês, Xi Jinping, Macron disse saber que tem o apoio da China para “fazer a Rússia ver a razão e trazer todas as partes para a mesa de negociação”. O Presidente francês assinalou ainda que a “agressão da Rússia pôs fim a décadas de paz na Europa”, acrescentando estar confiante de que Pequim irá ajudá-lo a estabelecer as negociações tendo em vista “uma paz duradoura que respeite as fronteiras internacionalmente reconhecidas e evite” a escalada do conflito.

Por sua vez, Xi Jinping afirmou que, em conjunto com França, exorta a comunidade internacional a evitar actos que agravem a crise. Os dois países vão ainda aprofundar o entendimento sobre as questões de segurança e fortalecer o diálogo entre as várias potências.

Desde que o Presidente chinês se encontrou com o seu homólogo russo, Vladimir Putin, para apresentar as suas propostas de paz, Macron é o segundo líder europeu a viajar para a China, depois do espanhol Pedro Sánchez.

Autonomia estratégica

Mas o grande resultado político da viagem de Macron a Pequim talvez possa ser resumido na recomendação do Presidente francês, Emmanuel Macron, segundo a qual a Europa deve estabelecer a sua própria “estratégia de autonomia” fora do padrão estabelecido pelos Estados Unidos e China, para evitar ser arrastada pelas tensões entre as duas potências.

“O pior que pode acontecer é que os europeus acreditem que têm que se tornar seguidores e adaptar-se ao ritmo americano e às reações exageradas da China”, disse o chefe de Estado francês em entrevista ao jornal Les Echoes, publicada no regresso da sua visita à China.

Macron fez essa consideração à luz das actuais tensões entre Estados Unidos, China e Taiwan, neste momento palco de um exercício militar chinês sobre um bloqueio à ilha, em retaliação à visita da líder da ilha, Tsai Ing Wen, aos Estados Unidos.

“Por que devemos ir no ritmo escolhido por outros? Em algum momento, devemos perguntar-nos quais são os nossos próprios interesses”, afirmou. O Presidente francês explicou que a Europa pode acabar como uma “pinça” entre os Estados Unidos e a China se esse conflito se agravar. “À medida que o conflito entre este duopólio se acelera, não teremos tempo nem meios para financiar a nossa autonomia estratégica e ficaremos vassalos”, alertou.

Em vez disso, Macron defende a transformação da Europa num “terceiro polo” internacional, embora tenha advertido que a sua construção levará um tempo que talvez não haja.

“A autonomia estratégica deve ser a luta da Europa. Não queremos depender dos outros em questões críticas, porque no dia em que ficarmos sem margem de manobra em questões como energia, defesa, redes sociais ou inteligência artificial, o dia em que ficarmos sem a estrutura necessária sobre essas questões, ficaremos fora do ritmo da história”, concluiu.

Na sexta-feira à tarde, Xi Jinping encontrou-se com Emmanuel Macron no Songyuan de Guangzhou, onde manteve uma reunião informal com o líder francês. Xi disse que nos últimos dois dias, os dois lados tiveram “intercâmbios aprofundados e de alta qualidade em Pequim e Guangzhou, que aumentaram a compreensão e a confiança mútua, e clarificaram a direcção para a futura cooperação entre a China e a França a nível bilateral e internacional”.

“Estou satisfeito por partilharmos muitas opiniões comuns ou semelhantes sobre as relações China-França, China-UE, bem como muitas questões internacionais e regionais, reflectindo o elevado nível e a natureza estratégica das relações China-França”, disse Xi, observando que está disposto a continuar a manter a comunicação estratégica e a fazer avançar a parceria estratégica abrangente China-França para um nível mais elevado.

Macron disse que a visita foi muito bem sucedida e produziu resultados frutuosos, que ajudarão a fazer avançar as relações França-China para um maior progresso. O líder francês disse estar disposto a manter uma comunicação estratégica estreita com Xi, e congratula-se com a visita de Xi a França em 2024.

Os dois lados também divulgaram uma declaração conjunta na sexta-feira, prometendo reforçar os diálogos políticos e aumentar a confiança mútua política, promover conjuntamente a segurança e estabilidade globais, fazer avançar as trocas económicas e reiniciar os intercâmbios entre as pessoas e enfrentar conjuntamente os desafios globais.

“A recepção de alto nível a Macron durante a sua visita mostrou a nossa cortesia diplomática e que os nossos actos correspondem às nossas palavras”, disse Cui Hongjian, director do Departamento de Estudos Europeus do Instituto de Estudos Internacionais da China. “A China valoriza a tradição de independência da França e o seu importante papel no avanço do mundo multipolar, e esse respeito foi sublinhado pela hospitalidade que recebeu na China”, disse Cui.

“A visita não só resultou em negócios frutuosos nos domínios dos transportes, energia, agricultura, cultura e ciência, como também forneceu orientação para a futura direcção das relações China-França e China-UE, uma vez que os líderes de ambos os lados procuraram uma forma mais razoável de coexistir na era pós-pandémica e no meio da crise da Ucrânia, apesar das diferenças e competições”, afirmaram os especialistas.

A cooperação continua a ser prioritária

“É muito raro ver altos funcionários da UE a visitar a China no prazo de um mês (seguem-se Joseph Borrel, comissário para os Negócios Estrangeiros da UE e a MNE alemã), o que também mostrou que a Europa tem uma forte vontade de salvaguardar e desenvolver as suas relações com a China, embora haja algumas vozes diferentes dentro do bloco”, disse Cui, observando que é importante estabilizar as relações através dessas interacções de alto nível e redefinir alguns princípios de cooperação, transformando esses consensos em prática este ano.

Durante a reunião de sexta-feira, Xi delineou o esforço de modernização da China e deu as boas-vindas ao lado francês para participar activamente na Feira de Cantão, na China International Import Expo e na Feira Internacional de Comércio de Serviços da China para explorar melhor o mercado chinês.

“Embora haja cooperação e concorrência, existem diferenças essenciais entre as relações China-UE e China-EUA. A China e os EUA procuram a cooperação em rivalidade, mas a China e a UE precisam de lidar adequadamente com a sua concorrência em cooperação. A visita de Macron e von der Leyen enviou um sinal de que apesar do aumento da concorrência e das diferenças, a cooperação continua a ser a prioridade”, disse Wang Shuo, professor na Escola de Relações Internacionais da Universidade de Estudos Estrangeiros de Pequim. “Ambos os lados esperam construir um ambiente externo relativamente favorável, que é a principal razão para se chegar ao consenso e ao acordo”, disse Wang.

“As relações China-UE haviam sido prejudicadas pelo conflito Rússia-Ucrânia e pela questão de Taiwan, mas agora descartamos alguns mal-entendidos e dissipamos algumas preocupações durante as reuniões com os líderes europeus”, disse Wang Yiwei, director do Instituto de Assuntos Internacionais da Universidade Renmin da China.

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Filipa Palhavã
Filipa Palhavã
14 Abr 2023 14:11

Muito bom artigo!