Via do MeioOs desterrados de Cai Jia Paulo Maia e Carmo - 10 Nov 2022 Zhong Kui, o terrível sufocador de demónios que transita entre a cultura erudita e popular como protector contra o mal, foi sendo sempre representado em pinturas com a sua temível expressão furiosa de olhos protuberantes. No século dezoito nota-se uma intrigante representação da mítica figura, olhando a sua estranha face num espelho. Os espelhos apareciam em muitas pinturas desde a dinastia Song, mas caracterizando a compreensão do lugar da mulher no gineceu: o reconhecimento da beleza e elegância feminina que em excesso revela a vaidade ou apenas a nostálgica percepção da passagem do tempo. Na história da pintura, pessoas mirando-se ao espelho podem ver-se logo no memorável rolo de Gu Kaizhi (345-406) Advertências da instructora da corte para as senhoras do palácio, que na sua sexta cena é acompanhada das palavras: «Todos sabem como embelezar as suas faces, ninguém sabe como adornar o carácter.» Algo dessa ideia da moldagem do carácter poderá passar para o retrato de Zhong Kui olhando a sua face num espelho. Numa pintura de Cai Jia (1680-1760) que está no Museu de Arte de Santa Bárbara (Califórnia), feita na horizontal mas que se apresenta montada num rolo vertical (tinta e cor sobre papel, 88,9 x 121,9 cm), ele está sentado numa embarcação, a sua cabaça de viajante pendurada negligentemente num mastro evocando o seu trágico destino de condenado à errancia e à sua frente numa jarra, um arranjo de flores, símbolizando empenho na educação, evoca o seu passado de estudante diligente. Olhando as suas feições grotescas, motivo da sua condenação, o guardião da paz contra demónios inquietantes não parece incomodado. Na sua figura duplicada de cruzador de fronteiras entre o mundo dos vivos e o dos condenados, entre o fantástico popular e a literatura erudita interroga-se um obscuro desígnio na confrontação com o mal. Cai Jia teve uma formação inicial de ourives, tendo vindo para a grande metrópole de Yangzhou para se dedicar à pintura como pintor profissional sendo por vezes associado ao grupo dos chamados «Oito excêntricos» (Yangzhou baguai) que se distinguia pela sua originalidade e liberdade de atravessar limites entre a pintura dos amadores e dos profissionais. No rolo vertical Visitando um eremita nas montanhas do Outono (tinta e cor sobre papel, 110,8 x 38,8 cm, no Museu de Arte de Indianapolis), ele figura essa ultrapassagem de limites reflectindo sobre a concepção budista do «eu vazio», silencioso e condicionado pelas forças externas do mundo em redor, tal como se pode ler em poemas de Wang Wei (701-761) escrevendo: «A montanha vazia está cheia de árvores, tocada por uma gloriosa luz que vem de longe. Os eremitas encontram-se face a face, esquecendo os problemas mundanos. Agora mesmo se tivessemos a fermentação de xingfeng, soltaríamos um longo grito e completamente ébrios, regressariamos a casa.»