Grande Plano MancheteCarlos Melancia (1927-2022) – O fim de um capítulo Andreia Sofia Silva - 25 Out 202225 Out 2022 DR Antes da pandemia, em 2019, Carlos Melancia deu uma das suas últimas entrevistas ao HM. Em Castelo de Vide, onde se fixou para conduzir negócios e gozar a reforma, o homem que foi Governador de Macau entre 1987 e 1990 vivia numa casa de estilo clássico com vista para uma paisagem que podia ser descrita como um quadro representativo do Alentejo. Em relação ao seu mandato à frente do Governo de Macau afirmou: “Gostava de ter feito mais” Falecido no domingo aos 95 anos, Carlos Melancia fez, no entanto, muito, liderando a maioria dos dossiers fundamentais para o processo de transição de Macau, que se iniciou com a assinatura da Declaração Conjunta, em 1987, ano em que tomou posse como Governador. Arnaldo Gonçalves, que trabalhou com Melancia como assessor, recorda esses tempos. “Era um homem encantador, extraordinário, de uma simpatia e amabilidade pessoal absolutamente notáveis. Tinha uma enorme capacidade de liderança. Desenhou todos os grandes projectos de Macau, o aeroporto, o porto de águas profundas, a nova ponte sobre Macau, a integração de Macau no Delta do Rio das Pérolas, a transição, a localização dos quadros e das leis. Foi ele que geriu todos esses dossiers e deu um pontapé em frente para a transição de Macau de uma forma muito positiva, com grande visão. Ele é um dos grandes responsáveis pelo sucesso da transição de Macau.” Carlos Melancia deslocava-se, nesses tempos, por Macau “sem segurança pessoal” e coleccionava louçaria chinesa que comprava nos tintins, misturando-se com a população local. “Foi um homem que dignificou Portugal por aquelas paragens e deixou um projecto de sobrevivência e progresso de Macau com autonomia que, nos anos mais recentes, tem sido abandonado”, destacou Arnaldo Gonçalves. Outro dossier importante da transição foi a presença da língua portuguesa no território após 1999. Ana Paula Laborinho, actual directora da Organização de Estados Ibero-americanos para a Educação, Ciência e Cultura, estava por Macau nessa altura e passou por entidades como o Instituto Cultural e a Universidade de Macau, assistindo depois à criação do Instituto Português do Oriente. “Tive uma excelente relação com ele. A memória que tenho dele é do seu apoio a tudo isto de que hoje beneficiamos e de que não temos a exacta noção em que momento foram estes pontos discutidos e foram dados os passos para que tenhamos um conjunto de instituições [de português] que se mantém. Temos de agradecer ao Governador Carlos Melancia o apoio que deu e à perspectiva positiva que sempre teve, favorecendo uma transição o melhor possível, mas acreditando que era necessário preservar uma presença além de 1999”, defendeu ao HM. Numa entrevista recente à Lusa, Melancia falou do seu contributo para aquilo que o território é hoje. “Negociei isto tudo, mas quem acabou por os concluir [os projectos] foi o Rocha Vieira. Não fui eu que inaugurei o aeroporto, mas a negociação do aeroporto com Hong Kong e Pequim foi comigo”, sublinhou. O polémico Fax O mandato de Carlos Melancia ficaria marcado pelo polémico caso do Fax de Macau, divulgado pelo semanário O Independente, em 1989, e que levou o Governador a demitir-se no ano seguinte. Na entrevista que concedeu ao HM, Carlos Melancia recordou o caso que disse ter manchado a sua reputação. “Em termos pessoais foi [o mais difícil em Macau]. Houve um grupo de pessoas que foi julgado em paralelo sobre este assunto e que foi condenado. Essas pessoas devolveram os 50 mil contos à Wideplan [a empresa alemã interessada na concessão das obras do aeroporto e envolvida no processo] e confessaram que tinham tido a iniciativa [de oferecer dinheiro para ficar com a concessão] e com que intenções. Houve condenações, mas juridicamente a sentença não foi executada, e disso ninguém fala”, contou. Arnaldo Gonçalves não tem dúvidas de que este caso veio de dentro do Partido Socialista (PS). “Era uma pessoa que galvanizava, muito positiva, mas foi surpreendido com o caso do fax, que foi uma coisa urdida contra ele com a colaboração de gente próxima de Mário Soares. Quem criou aquilo foram socialistas próximos de Soares, pessoas que ele mandava para Macau para meter cunhas sobre contratos, processos de adjudicação. Recordo várias pessoas, mas não vou dizer nomes”, acusa. Quem também recorda este polémico processo é Carlos Monjardino, presidente da Fundação Oriente (FO). À Lusa, este disse que Melancia foi “um bom homem” que acabou por ser “apanhado num turbilhão”, cuja origem não estava nele. Monjardino sublinhou que “sempre disse que aquela história do fax de Macau tinha mais a ver, porventura com a ‘entourage’ dele [Carlos Melancia] do que com ele, e que ele tinha sido apanhado naquilo”. Lamentando o desaparecimento do antigo Governador de Macau e ministro de vários governos socialistas, o presidente da FO considerou que Carlos Melancia, durante o tempo que esteve no território, “teve pessoas à volta dele que não deveria ter tido” e foi “muito prejudicado por isso”. “Poderia ter tido um mandato um pouco mais sossegado se fosse um bocadinho mais severo na avaliação das pessoas que apareciam”, acrescentou. Na opinião de Carlos Monjardino, “a certa altura, devido às fraquezas do Governo dele, por razões que não tinha nada a ver com a China, tinham que ver com razões internas, [Carlos Melancia] acabou por se chegar um bocadinho à China. Mas isso, também o Rocha Vieira o fez”. Homem de visão, projectou o futuro Leonel Alves, ex-deputado e advogado, disse à Lusa que Melancia “foi o Governador da transição, que projectou o futuro de Macau com as novas infra-estruturas importantes”. Desta forma, o antigo governante “deu o pontapé de saída para um Macau mais moderno”. Foi graças a Carlos Melancia que Portugal avançou com “projectos que estavam em cima da mesa e em relação aos quais havia uma grande urgência”, disse à Lusa o economista e presidente do Instituto de Estudos Europeus de Macau, José Sales Marques. A saída de cena na sequência da polémica “não foi benéfica para Macau”, lamentou Leonel Alves. Por sua vez, Sales Marques frisou que “ficámos sempre com a impressão de que tudo isto foi muito injusto (…). Até porque ele tinha um passado técnico e político de grande valia”. “Política é política e às vezes a política come as pessoas. Neste caso, a política comeu um bom dirigente”, disse Leonel Alves. Também a Fundação Jorge Álvares (FJA) expressou, num comunicado, “profundo pesar” pela morte de Carlos Melancia, que era curador da instituição, assim como antigo administrador e presidente. A “dedicação e espírito empreendedor” de Carlos Melancia “muito contribuíram para a consolidação e afirmação” da FJA, “quer na área cultural quer na área educativa”, defendeu a fundação. Amante do património, Carlos Melancia criou em 1997 em Marvão, distrito de Portalegre, a Fundação Cidade de Ammaia, que tem como objectivo a preservação da Cidade Romana de Ammaia. Em comunicado, a entidade manifestou o seu “mais profundo pesar” pela morte do criador e fundador, que deu “uma dedicação ímpar” ao projecto e dedicou-lhe “um enorme esforço pessoal” desde o seu início, considerando-a como um dos seus “projectos de vida”, há mais de 25 anos. “Era sobre a Ammaia que contava a todos os que o ouviam, algumas das histórias da grandiosidade das suas ruínas e o que a cidade romana poderia significar no futuro da nossa região”, pode ler-se no documento. Também a Casa de Macau em Lisboa emitiu ontem uma nota de pesar pelo falecimento do antigo Governador do território. Carlos Melancia morreu no domingo à noite no Hospital de São José, em Lisboa. Licenciado em Engenharia, foi governador de Macau de 1987 a 1990 e ministro com as pastas da Indústria e Tecnologia, do Mar e Equipamento Social em vários governos socialistas. Em 1990, demitiu-se na sequência do designado Caso do Fax de Macau, que envolvia financiamentos partidários do PS, um processo de que foi ilibado em 2002. O velório realizou-se em Lisboa, na Igreja de São João de Deus, na segunda-feira.