Mara Bernardes de Sá, autora de “Senhor da Chuva” | O poeta que abraçou Timor

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Lançado primeiro em Díli, no passado mês de Maio, o livro “Senhor da Chuva” é apresentado hoje ao público português em Lisboa na Fundação Oriente. A obra de Mara Bernardes de Sá conta a história do poeta Ruy Cinatti, que carregou Timor no coração quase toda a vida, ao ponto de ter celebrado pactos de sangue com duas famílias de chefes tradicionais, os “liurais timorenses”. A autora falou com essas pessoas

 

Como surgiu a oportunidade de fazer este livro?

Em 2005, quando fui para Timor ofereceram-me o livro do padre Peter Stilwell [ex-reitor da Universidade de São José], intitulado “A Condição Humana em Ruy Cinatti”. Foi esse livro que me deu a conhecer o autor e Timor-Leste. Como ele [Ruy Cinatti] escrevia muito sobre os sítios por onde passava, fui conhecendo-os também através dos seus escritos. A partir daí esteve sempre presente, e muitas vezes quando viajava em Timor pesquisava o que ele tinha escrito sobre esse sítio. Muitas vezes escrevia poemas e fui a certos sítios por causa dos poemas dele. Conheci as famílias que fizeram o pacto de sangue com Ruy Cinatti. Tenho uma filha que, quando tinha cinco anos, na sala de aula na Escola Portuguesa Ruy Cinatti, em Díli, disse que a mãe era amiga do Cinatti e que tinha fotografias dele. Acabei por ir falar do autor aos alunos e percebi que os encantava. As histórias dos pactos de sangue não são assim tão comuns, e quando falava disso com timorenses percebi que estava a falar de uma lenda que lhes interessava. Como Ruy Cinatti era uma pessoa tão completa e contribuiu tanto para Timor, fez sentido escrever a história dele de uma forma concisa, clara, com história, mas transmitindo um pouco a poesia dele e a intensidade de vida com que ele abraçava os dias.

Como classifica este livro, uma vez que não o considera uma biografia de Cinatti?

[A obra representa] o universo pessoal e a ligação dele a Timor. Esse é o ponto principal. O livro do padre Peter Stilwell já abraça todas as dimensões de Ruy Cinatti. Peter Stilwell, que o conheceu em pequeno, escreveu sobre momentos como quando Ruy Cinatti se vestia de fantasma e aparecia atrás das crianças, na brincadeira. O meu foco foi ouvir as pessoas que ainda são memória viva do que ele viveu lá, nomeadamente os pactos de sangue. Como disse atrás, não é coisa que se faça regularmente em Timor, e muito menos com estrangeiros. São uma prova da relação de intimidade e confiança que Cinatti criou no país. Há um respeito, porque os timorenses percebem que não é uma coisa que se faça diariamente. Fui ao encontro dessas famílias, ouvindo as memórias vivas. Percebi que não é só uma história registada no livro “A Condição Humana”, mas ficou em Timor também. Estas pessoas consideram Ruy Cinatti um familiar.

Apesar de não serem comuns, os pactos de sangue persistem na sociedade timorense nos dias de hoje?

Ainda acontecem, mas é algo silencioso, de que não se fala sempre. Creio que acontece com menos frequência nos dias de hoje.

O que Ruy Cinatti deixou a estas famílias, que mensagens, que sentimentos?

Ele tinha uma relação pessoal e de convivência com eles. São duas famílias diferentes. A história que ficou neles é o facto de o considerarem como familiar querido e também respeitam o contributo que deu e o registo que deixou, como, por exemplo, o livro “Arquitectura Timorense”. Havia uma casa consagrada para Ruy Cinatti escrever e desenhar, e eles tinham noção que o autor abraçava a sua cultura. Um dos filhos [do líder da família] é Ruy Cinatti Ximenes, porque Ruy Cinatti fez esse pedido.

E o que Ruy Cinatti lhe deu a si?

Fascinou-me a poesia dele, mas também os episódios que fui conhecendo, bem como a forma intensa como vivia a vida e a entrega que tinha à poesia, não apenas na poesia como nos actos. Recordo-me de um episódio que ele conta, quando entrou mar adentro depois de se “apaixonar” por um fim de tarde. Depois chegou ao palácio do Governo encharcado. Essa intensidade e entrega aos dias fascina-me. Há também o lado humano dele, o respeito pela cultura e pelo outro. Em 1951 foi proibido as pessoas irem a Díli com os trajes tradicionais e ele escreveu sobre o que considerava uma injustiça, sem respeito pela cultura e tradições.

O livro tem ilustrações. Neste sentido, pretende chegar a todas as idades?

Sim, tenho esse objectivo. Pedi para que fossem feitas duas ilustrações, uma do Ruy Cinatti em criança, intitulada “Rui menino”, e outra seria uma tela que expusesse as várias componentes daquilo que o autor gostava em Timor, como as montanhas ou as casas sagradas. Há ainda uma terceira ilustração sobre os pactos de sangue e uma quarta imagem de Ruy Cinatti nas montanhas e no seu silêncio. O Bosco Alves abraçou o projecto e transmitiu mesmo [o que era pretendido]. Ele disse-me que, quando começou a pintar a primeira ilustração [de Ruy Cinatti em criança, antes de chegar a Timor], que percebeu que Timor já estava com ele, daí ter pintado tantos elementos do país. Timor já estava à espera de Cinatti.

De todas as figuras vindas de Portugal para a antiga colónia, Ruy Cinatti foi a que melhor compreendeu a sociedade timorense?

Sim, sem dúvidas. Compreendeu, sentiu, abraçou e respeitou.

 

Agrónomo e poeta

Ruy Cinatti nasceu em Londres em 1915, foi agrónomo e poeta, dividindo-se entre as ciências humanísticas e as ciências naturais. Chegou a Timor-Leste, pela primeira vez, em Julho de 1946, como secretário do então Governador Oscar Ruas, e no ano seguinte, com o país a recuperar da invasão japonesa, percorreu o território, realizando um primeiro estudo. O estudo sobre Timor englobou temas tão diversos como botânica, meteorologia, etnologia e arqueologia, tendo no pacto de sangue, alcançado uma ligação eterna aos rituais mais sagrados do país. Cinatti, que nunca deixou de viver essa ligação de “irmão” timorense, é autor do que se pensa ser o primeiro plano de fomento agrário do país e deixou uma vasta obra ainda hoje referência essencial para estudiosos de Timor-Leste. Vencedor de vários prémios literários, incluindo o Prémio Nacional de Poesia, viveu uma forte ligação com Timor-Leste. Em 2015, num evento alusivo ao centenário de Cinatti, na Escola Portuguesa de Díli, a que ‘emprestou’ o nome, os herdeiros dos dois ‘liurais timorenses’, Cornélio Ximenes (Mau-Nana), filho de Adelino Ximenes, e Saturnino Barreto, bisneto de Armando Barreto estiveram presentes.

Agentes culturais

A autora de “Senhor da Chuva” nasceu em Chaves, em 1976. É agente cultural em Timor-Leste desde 2005 e membro do Conselho da Sala de Leitura Xanana Gusmão desde 2011. A primeira publicação de poemas na antologia “Mouth Ogres” foi editada por Oxmarket Press, Frinch Festival e University College Chichester em 1999. Por sua vez, Bosco Alves, ilustrador, nasceu em Díli, Timor-Leste a 26 de Março de 1965, tendo feito a primeira exposição em 2000. Inaugurou no Centro Cultural Português – Embaixada de Portugal em Timor, a 5 de Maio 2019, a exposição de pintura “Alfabetização” integrada no dia da Língua Portuguesa e da Cultura da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Participou como ilustrador no livro “Contos Tradicionais da CPLP”, representando Timor-Leste numa equipa de artistas de todos os países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.

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