Desmascarados

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Quase três anos depois, voltei a fazer uma viagem internacional, a minha segunda travessia aérea do Pacífico: por inusitados motivos profissionais vi-me pela primeira vez – e última, provavelmente – no famigerado arquipélago do Havai, que até parece estranho escrito assim, com a grafia portuguesa, mas que é globalmente promovido e reconhecido como oásis para férias de verão, paraíso prometido na terra, areia, mar, palmeiras, bom clima e todos os confortos para viajantes que apreciem os prazeres do estio e os decorrentes modos de vida, de recreio e de consumo.

Foi naturalmente a minha primeira visita a um destes lugares que se vão designando como “pós-covid”, não porque o vírus tenha desaparecido ou porque se tenha desenvolvido uma qualquer forma de imunidade colectiva, mas porque deixou de ser obrigatório o uso de máscaras de protecção e se voltou a uma convivência “cara a cara”, sem as barreiras higiénicas que o vírus impôs em todo o mundo – e ainda impõe no Japão, onde vivo.

Na realidade, são muito semelhantes os números de novos casos diários na cidade onde resido e na cidade de Honolulu, onde passei uma pacata semana. A diferença está nas cautelas que ainda se seguem ou já se deixaram de seguir: em Hiroshima, toda a gente, sem excepção, continua a usar máscara de protecção; em Honolulu, nem sequer quem trabalha em cafés, restaurantes ou pequeno comércio utiliza (com poucas excepções). Nas ruas, além de mim, foram raríssimas as pessoas que vi com máscara.

Pela parte que me toca, dispenso o risco, ainda que fosse certamente mais agradável voltar a fazer parte desse mundo desmascarado que se vai recompondo. O regresso a casa pressupunha a apresentação à chegada de um teste-covid negativo, além dos problemas acrescidos de uma eventual infecção num sítio onde não sou residente.

Por isso me mantive entre esses certamente menos de 1 por cento da população que usava máscara. Diga-se que nem por isso senti qualquer tipo de pressão ou condicionamento por não estar a seguir o padrão social dominante.

Esse padrão dominante tem outras características: como na generalidade dos sítios com localização costeira e fortes tradições balneares, vive-se num território ultra urbanizado, com um modelo urbano que se vai repetindo ao longo da costa com formas diversas mas com estruturas e funções muito semelhantes: praia, hotéis, centro comercial, mais lojas, cafés. Com ligeiras variações ao longo dos 3 quilómetros da praia de Waikiki, foi por aqui que me entretive à beira mar, mais interessado nas águas mornas do Pacífico do que nas multidões turísticas na sua voragem consumista.

Os preços, aliás, não enganam: o custo do alojamento, o dos cafés e restaurantes, o das lojas e até o dos supermercados estão muitíssimo acima daquilo que é o meu padrão quotidiano. As mais destacadas marcas do universo da moda contemporânea têm também aqui as suas lojas e assinalam um certo padrão de consumo ao qual não é fácil escapar: pode não se comprar roupa nestes estabelecimentos mas em algum sítio se terá que comer, por preços altos ou muito altos, mas nunca por menos que isso.

Há, no entanto, um pormenor que é semelhante ao do comércio, restauração e hotelaria em outras destinos turísticos com características estivais semelhantes, mesmo que tenham menos prestígio e gabarito internacional (como seja, por exemplo, o Algarve): em quase todas as lojas, restaurantes, hotéis e centros comerciais se encontram anúncios a anunciar postos de trabalho disponíveis. Conclui-se facilmente que têm dificuldades, estes diligentes empresários, em encontrar pessoas para trabalhar.

Não havendo especiais notícias sobre escassez de população e de mão-de-obra no Havai e tratando-se de uma área comercialmente tão atractiva e dinâmica, surpreende esta generalizada procura de pessoas para trabalhar, que percorre quer os estabelecimentos mais luxuosos, quer os de gama média que por ali se encontram. Ocorre então perguntar, como se estivéssemos em Portugal: então e se pagassem salários decentes?

Ficamos sem saber, naturalmente, o que aconteceria nessa economia da decência: sabemos é que aqueles empregos, com os salários que se praticam, são manifestamente desinteressantes para a população local. Não é um problema de subsídio-dependência ou de preferência por um qualquer rendimento mínimo garantido: é a rejeição possível do trabalho sem condições que se vai oferecendo, sabendo-se que há sempre alguém que o vai aceitar – é a chantagem sistemática da ameaça do desemprego e não uma qualquer forma de dependência de parcos subsídios.

Basta passear pelas ruas mais próximas da famigerada praia de Waikiki, abarrotada de fregueses com generosas carteiras e magníficos cartões de crédito, para se ver que as soluções que se encontram para os postos de trabalho necessário são as mesmas que se encontram – e que na realidade se procuram cada vez mais – em Portugal e noutras paragens: pessoas imigrantes, neste caso do sudoeste asiático, para quem os parcos salários recusados pela juventude norte-americana constituem generosa compensação que não encontrariam nos lugares de onde partiram. Vivem certamente mal, longe da praia e do conforto da massa de turistas que abarrota os hotéis e os espaços públicos – mas ainda assim é uma vida melhor do que a que tinham antes.

É também disto que se vai fazendo a globalização: circulam os capitais por circuitos mais ou menos opacos para se valorizarem em mercados especulativos diversos; recusam-se salários decentes; explora-se a miséria de quem procura vida melhor onde for possível; acumulam-se riquezas cada vez maiores em cada vez menos pessoas.

Podem até as ruas sugerir um certo ar de prosperidade e modernidade mas basta olhar para quem trabalha para se verificar a habitual e ancestral brutalidade da exploração. São negócios facilmente desmascarados.

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