Como se fosse parceiro

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Depois da colaboração, a parceria: o mundo do trabalho vai-se fazendo destas metamorfoses e pouco subtis mudanças na designação das relações e categorias profissionais: à precarização e individualização crescentes no capitalismo contemporâneo correspondem novas palavras que sugerem autonomia, equilíbrio, emancipação, enfim, uma certa justiça entre quem trabalha e quem emprega – ou entre a classe trabalhadora e o patronato, como se dizia em tempos não muito longínquos.

“Parceria”, aliás, já teve outras utilizações dominantes no universo económico, ou no campo específico das relações empresariais, referindo-se a alianças tácticas ou estratégicas que, por conveniências várias, ocasionais ou duradouras, empresas supostamente orientadas para a competição sistemática podem assumir em determinados momentos. Também se faz de colaboração, afinal, a livre concorrência nos mercados capitalistas.

Ganharam também manifesta notoriedade, frequentemente por maus motivos, as famigeradas “parcerias público-privadas”, que muitas vezes se revelaram como subterfúgios ou manobras de ilusionismo sofisticado para disfarçar processos de corrupção em pequena ou larga escala, ou pelo menos de manifesta distorção – e até eliminação – dos alegados mecanismos de concorrência dos mercados, para afinal se assegurar que os benefícios de investimentos massivos se deslocavam para as grandes empresas, enquanto os riscos e prejuízos eram assumidos e cobertos pelo Estado.

Assim se construíram grandes e pequenas infraestruturas de maior ou menor utilidade e se promoveram grandes operações urbanísticas, frequentemente associadas a processos de gentrificação de grandes e atractivas zonas urbanas, com a decorrente expulsão e substituição de populações residentes por outras, residentes ou não, mas com poder de compra mais adequado à voragem dos negócios contemporâneos.

“Partner” é a designação que encontro hoje inscrita nas costas das pessoas que fazem as entregas de refeições através da plataforma digital que costumo utilizar nos dias em que falta o tempo para preparar o jantar. Não se trata da plataforma mais conhecida internacionalmente, a tal que transformou abruptamente os direitos e regulações do transporte público em viaturas automóveis privadas – ou táxis, como são universalmente reconhecidos – passando o trabalhador a ser também responsável pelo investimento e reprodução do capital: o condutor que além de conduzir precisa de ser o proprietário do automóvel, pagar o seguro e assegurar a respectiva manutenção, a troco de um trabalho pago à tarefa, sem horários, sem férias pagas, sem protecção contra doenças e outras desventuras, enfim, com muito poucos dos direitos laborais que se foram conquistando lenta e brutalmente ao longo do século 20.

Esta é outra plataforma, que eu saiba a operar exclusivamente nas entregas de refeições a domicílio, simpaticamente orientada para pequenos restaurantes locais, que aqui encontraram uma solução bastante razoável para a sobrevivência económica em tempos de covid-19. A consumidores como eu garantiu-se um acesso fácil e confortável a uma série bastante diversa e alargada de simpáticos restaurantes: basta clicar agora e abrir a porta do prédio pouco tempo depois, que a comida é trazida à porta de casa, evitando até desnecessários contactos pessoais, que o vírus anda solto. E daí nunca ter reparado na tal designação escarrapachada nas costas de quem me traz a comida na sua bicicleta ou motorizada: “partner”.

Não é inocente nem inconsequente esta substituição sistemática da palavra “trabalhador”.

Por outras que sugerem uma relação mais equilibrada e entre iguais, como “colaborador” ou “parceiro”. Este é o resultado de um longo, persistente e global processo de isolamento de cada pessoa no exercício da sua profissão, de individualização permanente, destruição sistemática de laços de solidariedade, destruição máxima da representatividade de sindicatos e outras organizações da classe de quem trabalha e que só se pode defender dos abusos e da exploração máxima se tiver outra plataforma – a da auto-organização e resistência colectiva.

Este é o contexto em que os salários deixaram de crescer ou crescem muito pouco, em que o desemprego se mantém convenientemente alto, em que a estabilidade do emprego é cada vez menor ou em que os direitos extra-salariais à qualidade de vida e de trabalho são sistematicamente reduzidos.

A linguagem tem então essa função branqueadora e, à falta de justiça, a cada vez maiores desigualdades correspondem novas terminologias: aumentam os bilionários e o número de pessoas que passa fome mesmo estando a trabalhar – ou até a acumular vários empregos precários e miseráveis – mas as novas palavras sugerem harmonia, equilíbrio de poderes, relações entre iguais, justiça, enfim, num mundo de pessoas emancipadas.

Primeiro colaboradores e agora parceiros, sempre sem contrato, sempre à jorna, sempre sem direitos, sempre imprescindíveis nas tarefas que fazem mover o mundo todos os dias mas descartáveis porque há desemprego suficiente – há sempre outra parceria ou outra colaboração inevitável o lucro máximo de quem engorda com este sistema económico que deixa o planeta em decomposição acelerada.

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