António Mil-Homens, fotógrafo e artista: “Comunidade portuguesa deveria ser mais unida”

É mais uma das figuras da comunidade portuguesa que deixa Macau ao fim de um punhado de anos. Depois de dar cartas nas áreas da fotografia, arte e poesia, António Mil-Homens regressa a Portugal onde pretende desenvolver workshops e residências artísticas. Para trás deixa inúmeras exposições e projectos culturais, lamentando que a comunidade portuguesa não dê mais apoio às associações de matriz portuguesa

 

Deixa Macau ao fim de 15 anos, onde se afirmou como fotógrafo e artista. Foram anos fundamentais na construção de um percurso criativo?

Sem dúvida. Aqui as possibilidades são diferentes em relação ao que se consegue fazer em Portugal. Na prática, não tive apoios, além da cedência de espaços. De todas as exposições tive o apoio efectivo, em 2009, por altura do 10º aniversário da RAEM, quando a Amélia António decidiu a vinda para Macau da minha exposição “Macau para Sempre” e a edição do livro. As outras exposições saíram-me do bolso, mas eu tenho uma má relação com os pedidos, porque as poucas vezes que pedi apoios foram-me recusados ou tiveram respostas tardias. Macau foi importante, mas está na hora de inverter a lógica dos últimos 15 anos.

Regressa a Portugal, onde já tem projectos culturais pensados. 

Sim, tenho condições para os desenvolver e virei a Macau sempre que se justificar. Desde 2018 que tenho casa própria no Alto Alentejo e investi em infra-estruturas que me vão permitir desenvolver projectos na área cultural e ecológica. O cerne será a organização de workshops nas mais variadas áreas, irei convidar pessoas para ministrarem esses workshops nas áreas que não domino e disponibilizo alojamento. Pretendo também criar condições para fazer residências artísticas nas áreas da pintura e da escultura, por exemplo. O meu regresso tem também a ver com uma série de factores, o facto de estar aqui sozinho e de o trabalho na área da fotografia ter caído quase para zero.

A fotografia tem evoluído em Macau de forma positiva?

Houve uma evolução incrível, em prejuízo da fotografia como profissão e modo de vida. Entraram mais fotógrafos no mercado e o digital causou uma certa depreciação que o digital trouxe à forma como a fotografia é olhada, veio democratizar a fotografia. Aponto, o ano passado, a criação da associação Halftone que está a angariar cada vez mais associados, além da existência de outras associações chinesas.

Quando foi para Macau já tinha planos definidos na área cultural?

Tinha estado cinco meses e meio em Macau em 1996, antes da transição. Tinha voltado para fazer a cobertura da transição para a Revista Macau, que na altura era dirigida por Rogério Beltrão Coelho, e também colaborei com um outro projecto, o livro de José Pedro Castanheira, “Os Últimos Cem Dias do Império”. As fotografias não são todas minhas porque quando me juntei ao projecto ele já estava em marcha. Já tinha uma certa ideia de Macau em termos culturais. Claro que nunca me passou pela cabeça que seria em Macau, já numa fase recente, de desenvolver as valências da pintura e da poesia. Em 2010 decidi que os projectos poéticos que tinha na gaveta iam começar a sair, e foi quando editei o meu primeiro livro, uma edição de autor. Em 2020 comecei a pintar, sem qualquer formação ou experiência na área. Foi um processo que sinto como estranho, pela forma e intensidade como aconteceu.

Como foi fotografar a transferência de soberania de Macau? Foi desafiante?

Sim, na medida em que as situações que foram acontecendo eram as mais diversificadas. O projecto implicava que José Pedro Castanheira escrevesse um texto por dia, nos últimos cem dias da Administração portuguesa, e era necessária uma imagem para ilustrar cada texto, e aí foi um desafio. Mas sem modéstia digo que foi fácil na medida em que, odiando a rotina, nunca me especializei num determinado tipo de fotografia. Isso dá-me a capacidade de analisar qualquer tipo de fotografia que me seja solicitado. Foi exaustivo na fase final, pois estavam cá centenas de fotógrafos.

Esperava a permanência desta cultura de matriz portuguesa no território? As iniciativas culturais que acontecem são representativas dessa cultura portuguesa? 

Diria que sim, embora mais pudesse ser feito. Não digo da parte da Casa de Portugal em Macau, que tem desenvolvido um trabalho ímpar, apesar dos apoios que cada vez são menores e dos encargos cada vez maiores. Mas falo da comunidade em si e das pessoas que a compõem. Teria sido importante essa demonstração de vitalidade cultural fosse ainda mais vincada. Esta é uma crítica construtiva, pois há muita gente que tem muito para dar e remete-se ao seu cantinho e não deita cá para fora a sua capacidade criativa.

A pandemia está a mudar profundamente a comunidade portuguesa, mesmo em termos culturais? 

Sim. Nós, humanidade, nos chamados países desenvolvidos, habituámo-nos a um certo facilitismo no dia-a-dia, do que fazemos e não fazemos, do que gostamos ou não. Quando surge algo com impacto, como é o caso da pandemia, as pessoas perdem a capacidade de reagir pela positiva e de entender todas as implicações, a mudança que tem de passar a haver para encararmos o dia-a-dia e a relação com os outros. À conta dos direitos individuais esqueceram-se os deveres colectivos, a solidariedade, o respeito. Temos de aprender a virar a moeda e, com os olhos da esperança, podemos tirar lições destes maus momentos e descobrir algo positivo, apesar de tudo.

O trabalho das entidades de matriz portuguesa está mais dificultado?

Penso que sim, mas muitas vezes o trabalho diplomático, sobretudo se as pessoas não têm uma personalidade mais dinâmica ou para o exterior, passa despercebido ou nem é considerado. Colocamos o voto na urna e achamos que a nossa parte está feita, mas acho isso errado como cidadão, pois todos temos um papel no dia-a-dia. O mesmo se passa com a comunidade portuguesa, que deveria ser mais unida e dar mais apoio às instituições que a representam. Ficámos com um certo comodismo.

Para os próximos anos como será a divulgação cultural a nível local? Haverá espaço para uma maior aproximação entre comunidades? Poderá haver a profissionalização de algumas áreas, por exemplo? 

Penso que sim, assim as pessoas consigam perceber as oportunidades e as dificuldades também. É aquilo que na maior parte das vezes não acontece. Houve uma transição em Macau, temos um período até 2049, mas quem pensaria que este seria um período imutável e que só 50 anos depois é que se viraria a página, é não conhecer minimamente a cultura chinesa. Esta é uma cultura de preparação e programação a longo prazo. É isso que temos de entender. Macau já não vai ser como era antes da pandemia, nem nenhuma outra parte do mundo. Aqui, com a queda acentuada do peso do jogo, que não vai voltar mais ao que foi, com a abertura para a Grande Baía, vão surgir desafios muito maiores, mas imensas oportunidades também. A competitividade será cada vez maior, pois vamos competir com Cantão, Hong Kong ou Shenzhen, e isto tem de obrigar a uma mudança de postura e de actividade.

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