António Duarte Mil-Homens, fotógrafo:  “Não tenho tempo para envelhecer”

António Duarte Mil-Homens comemora 70 anos no ano que vem, os mesmos que a República Popular da China. O fotógrafo quer fazer uma exposição que celebre a efeméride, à qual se junta o vigésimo aniversário da RAEM. Ao HM, Mil-Homens falou da início de carreira e das dificuldades numa área cada vez mais acessível a qualquer um

[dropcap]T[/dropcap]eve a sua primeira câmara no dia 25 de Abril de 1974. O que é que aconteceu?
Tinha o bichinho da fotografia desde miúdo. O meu pai era fotógrafo amador e durante muitos anos, em que vivíamos numa casa em que existia um quarto interior, o meu pai transformou aquele espaço numa câmara escura onde eu era admitido sob uma condição: só saía de lá quando ele terminasse e não mexia em nada. Ao mesmo tempo era uma espécie de tortura porque assistia, ali, àquela magia da revelação e não podia experimentar. Mas a semente foi ficando. O meu pai também não abria mão das máquinas dele e eu não tinha direito a pegar em nenhuma. Por volta dos meus 16, 17 anos, costumava pedir uma máquina fotográfica a um amigo. Entretanto casei, fui parar a Angola ainda em plena guerra colonial convencido de que lá conseguiria comprar uma máquina para mim por serem substancialmente mais baratas. Não existia o chamado imposto de luxo sobre este tipo e produtos – que na altura era de 60 por cento. Também é verdade que ninguém precisava de uma câmara para comer com batatas, ou seja, era um luxo. Mas o certo é que nem em Angola consegui ter uma. Depois de regressar a Lisboa, em Julho de 73, escolhi uma máquina numa loja de material fotográfico em segunda mão e fiz um acordo com o senhor. Paguei metade do custo que na totalidade era de 6500 escudos e acordámos um dia, quando pudesse pagar o resto, a fosse levantar. Combinámos para o dia 25 de Abril. Acordei com as notícias, ainda fui trabalhar e a determinada altura mandaram todos embora para casa. Fui a correr à loja e por pouco não a conseguia apanhar aberta. Lá consegui trazer a máquina, cheguei a casa, peguei em dois rolos e fui fotografar para a rua. Consegui fazer fotografias que são históricas.

Mas só as apresentou muito tempo depois em Macau. 
Embora tenha publicado duas destas imagens num jornal regional, na altura, só as expus, conjuntamente com as do primeiro de Maio em Liberdade, aqui em Macau. precisamente em 2014, 40 anos depois.

Porquê um intervalo de tanto tempo?
Isso é complicado e tem que ver com a minha postura relativamente a pedir patrocínios e subsídios. A esmagadora maioria das exposições que fiz até hoje foram a expensas próprias. De qualquer forma, parece-me que tendo sido no quadragésimo aniversário daquele dia, foi uma boa data para o fazer.

Era funcionário público. Como é que passou a ter a fotografia como profissão?
Começaram a aparecer amigos que perceberam que tinha herdado o princípio do meu pai, ou seja, o rigor naquilo que fazia em termos fotográficos. Então começaram-me a pedir algumas encomendas. Em 81 resolvi, para estabelecer contactos com mais gente ligada a esta área, inscrever-me num curso na Associação Portuguesa de Arte Fotográfica onde mais tarde vim a fazer o curso profissional. Fiz a minha primeira participação numa colectiva de fotografia integrada neste curso. Isto é um pouco como aquela história da bola de neve que depois de começar a rolar pela encosta vai arrastando mais neve e crescendo. Em 84 recebo um desafio que implicava uma mudança radical na minha vida, para ir fazer fotografia de publicidade. Pedi a minha primeira licença da função pública e fiz a minha opção. Abracei a fotografia por inteiro, até hoje. Depois, com 17 anos trabalhei como fotógrafo na faculdade de agronomia, onde tinha o meu estúdio e também fazia a minha fotografia.

Como é que foi a sua passagem do analógico para o digital?
Acho piada ao facto de hoje em dia, haver gente aí no mercado de arte fotográfica que faz abrir bocas de espanto por estar a usar máquinas analógicas e de grande formato. Foram as minhas ferramentas durante 20 anos. Aquilo que se faz agora com muito espanto, era aquilo que tinha que fazer sistematicamente. Fui forçado a aderir ao digital. Em termos de fotografia de publicidade fui obrigado autenticamente. Embora o digital, de início, fosse em termos de qualidade incipiente, comparando com aquilo que era possível com o analógico. Lembro-me, por exemplo, que estive em Macau para fazer a cobertura da transferência de administração e na cerimónia estava ao meu lado um fotógrafo de Hong Kong com uma Nikon D1 que era assim o supra-sumo da fotografia digital e tinha uma resolução de dois megapixéis. Mas o digital permitia o imediatismo. Quando acabou a cerimónia, ficaram nas bancadas uma meia dúzia de fotógrafos japoneses que tinham a mesma máquina e que traziam o seu portátil e antenas parabólicas. Portanto, de imediato, transmitiram para o Japão fotografias que tinham tirado minutos antes. E esta possibilidade é muito importante. Os clientes também começaram a achar piada à possibilidade de ver logo a imagem. Fui forçado a avançar para o registo digital. Depois comprei o meu primeiro Mac em 2000, comecei a investir moderadamente e a tentar perceber o que é que o digital ia dar.

Como veio para Macau?
Por questões de coração. Por paixão, se calhar mais por loucura. Vim para Macau sempre pela mesma razão. A primeira vez foi em 1996. Cheguei a 2 de Fevereiro. Vinha para ficar. Trazia entre bagagem e carga aérea mais de 300 quilos. Na altura, trazia todo o meu material de grande e médio formato, 35mm, tripés, iluminação, etc. Mas a situação era tão complicada do ponto de vista emocional que regressei Portugal ao fim de cinco meses e meio. Este regresso deu-me a possibilidade de partilhar com a minha mãe os últimos meses da vida dela. Falo nisto porque acredito que nada acontece por acaso. Pela mesma razão, mas desta vez arranjei um “argumento” ou uma almofada financeira. Estive cá um mês e meio na altura da transferência de administração. Vim fazer a cobertura para a Revista Macau, na altura sob a direcção do Rogério Beltrão Coelho. Vinha também fazer fotografias para um projecto que também já estava em marcha: o livro do José Pedro Castanheira, “Macau, os cem últimos dias do Império”. Só volto a Macau em Outubro de 2006, pela mesma razão – a pancada era muito grande – e para ver como é estavam as coisas por aqui. Em 2007, passo cá três períodos de um mês até chegar em Novembro desse ano para ficar, e cá continuo, não sei muito bem até quando.

Como é que e ser fotógrafo em Macau?
Já foi melhor. Já foi bastante mais fácil e bem mais lucrativo. Neste momento, é muito complicado, principalmente quando se é freelancer. É uma angústia permanente sem se saber muito bem como vai ser o mês seguinte. Há também uma concorrência cada vez maior, que o digital veio agravar exponencialmente. Hoje em dia é extremamente fácil uma pessoa que goste de fotografia, comprar a  sua primeira máquina, umas objectivas e um flash e começar a fazer trabalho na área, especialmente se oferecer, linearmente ou quase, esse trabalho. Infelizmente, pelo facilitismo do digital, os próprios clientes e responsáveis dos órgãos de comunicação social, acham que agora toda a gente faz fotografia, até com telemóvel, e o fotógrafo passou a ser dispensável.

Teve um projecto para um espaço multicultural no seu estúdio. O que foi feito dessa ideia?
Não me renovaram o contrato de arrendamento. Fiz obras e um ano depois de ter tudo pronto, disseram-me que  não podia ali continuar. Neste momento, vou partilhar um espaço com mais duas pessoas da área da moda e que pode entrar em funcionamento ainda esta semana. Além de ser concebido para o meu trabalho, pode estar disponível para quem precisar de o usar para fotografia de estúdio com a opção de ser com ou sem equipamento.

Também gosta de poesia. 
Desde muito cedo que escrevo poesia. Os meus primeiros poemas, dignos talvez desse nome, datam dos meus 14 anos. Gosto de escrever, permite-me achar que tenho um domínio razoável da minha língua materna. A poesia surge como uma forma mais fácil de síntese daquilo que me vai na alma. Quando escrevo poesia, as palavras saem de uma vez e já saem na sua forma final. O meu livro “Vida ou morte – de uma esperança anunciada” é o único livro que tenho publicado, e dada a minha aversão a pedir patrocínios, até porque odeio o dinheiro, só o peço pelo meu trabalho. E, entretanto, tenho sete livros feitos em casa prontos a serem editados e que incluem fotografia, sendo que um deles tem como título “Poemografia de Macau “ e já está traduzido em chinês e em inglês.  Também na fotografia tenho três projectos que têm que avançar de Setembro até ao final do ano que vem, e ainda não sei como. O primeiro projecto, já está aprovado e é uma exposição a ser apresentada no Casino Lisboa, em Portugal. O segundo é um projecto que está parado à seis anos e tem como título “Bicicletas de Macau”. Tem o prefácio escrito pelo José Luís Sales Marques. Tenho outro em que levei a estúdio para fotografar 188 pessoas que andam de mota em Macau. Mais uma vez acho que nada acontece por acaso. Para o próximo celebra-se o quadragésimo quinto aniversário da compra da minha primeira máquina fotográfica, são os meus 45 anos de fotografia. Para o ano também será o meu septuagésimo aniversário e também o da República Popular da China, que é oito dias mais velha do que eu. É ainda o vigésimo ano da RAEM. Quero fazer uma exposição que tenha em vista todos todas esta efemérides.

Quais são as suas referências na poesia e na fotografia?
Na poesia são muitos: O Ary dos Santos, a Sophia de Mello Breyner, a Natália Correia ou o David Mourão Ferreira. Na fotografia, e indiscutivelmente, o Henry Cartier Bresson. Num estilo completamente diferente, o Ansel Adams, e claro o Sebastião Salgado, mas há muitos mais.

Vai fazer 70 anos de idade. Qual é o elixir da juventude?
Costumo dizer muito na brincadeira: não tenho tempo para envelhecer. Cuido-me na medida do possível. Fumei o meu último cigarro no dia 28 de Abril de 75. Um ano e quatro dias depois da revolução. Foi a minha revolução pessoal. Penso que deixar de fumar é quase metade do segredo. Tenho também cuidado com a alimentação. Depois recuso escadas rolantes e subo escadas a pé, por exemplo. Faço o exercício que o dia-a-dia me possibilita e recuso ginásios. Se tenho o meu ginásio particular, é a mochila com 10 ou 20 quilos que tenho de carregar para um trabalho fotográfico, se tenho cinco andares para subir em minha casa porque é que vou levantar ferro?

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