h | Artes, Letras e IdeiasConvívio com vinho chinês José Simões Morais - 12 Abr 2022 Ganbei! Palavra em voz alta pronunciada em uníssono a significar esvaziar o copo, mais propriamente secá-lo num único trago, antes de se brindar com ele cheio de vinho. Bebe-se todo o líquido e como prova vira-se para baixo, de onde não deve cair um único pingo. De pé repetimos o que vemos fazer. Uma volátil fragância perfuma toda a sala e o sabor forte anestesia a boca e um ardor escorre garganta abaixo. O anfitrião enche-nos então o copo de chá e em pequenos golos este líquido vai dissolvendo e aligeirando o teor de álcool, que segundo a garrafa atinge os 57º. Nova rodada é servida, variando o copo de tamanho mediante a latitude e se no Sul da China o cálice é pequeno, já no Norte os copos bem maiores por três vezes são cheios e entornados de um só trago para aquecer o ambiente. Ganbei!… (pelo melhor) e de pé, por respeito, com as duas mãos erguem-se os copos chocando com os das pessoas ao redor da mesa e sendo esta grande, então o toque é feito no redondo e rotativo vidro, onde se encontram os pratos de comida partilhada. No restante redondo tampo da mesa exterior estão os objectos de uso pessoal, guardanapo, os pauzinhos muitas vezes de bambu a retirar as mãos da comida, a pequena colher de porcelana, sem nunca haver garfo e muito menos faca. Já sobre um pequeno prato, para onde se deita o que não se come, está uma tigela a servir de suporte a proteger os alimentos quando retirados das travessas até chegarem à boca, ou a arrefecerem à espera de serem comidos e para beber, aí está o copo de vinho e do chá. A sopa vem numa terrina e o empregado traz as tigelas para servir a cada um dos presentes o delicado e refinado líquido, após cozer durante horas peixe ou carne, legumes e leguminosas, apresentados num prato ao lado. Já a tigela do arroz, também individual, nos banquetes só aparece no final da refeição, caso haja ainda fome. O chá está sempre presente, tanto no restaurante a acompanhar o vinho, ou em casa durante a visita, desde as boas vindas até à despedida. Na China, quando se fala de vinho, apesar de existir o de uva, está-se a referir ao Bai jiu, vinho transparente feito por destilação de cereais ou de arroz e alcoolicamente muito forte. Por vezes a poder passar os 50°, é o usado sobretudo para os preparados medicinais, ou a libertar a essência aos poetas e artistas. Mas também há com um teor alcóolico mais baixo, a ficar nos 30° e 15° para se beber moderadamente em convívio. Por vezes amarelado, esse é o huang jiu feito através da fermentação do arroz. Servido em pequenos cálices, o vinho é esvaziado num só trago. Ao lado, para dissolver o ardor, o chá deitado quente do bule na chávena sem asas. Ganbei! À saúde de todos os presentes e de pé, num pequeno gesto eleva-se o copo cheio e mediante o respeito para com a outra pessoa, ou por hierarquia confucionista, se toca no outro copo com a borda do nosso mais alto, qual superior, ou ao mesmo nível, ou por baixo, em posição inferior, não significando isso inferioridade, sem sentido, pois tem a direcção do ritual. De um trago bebe-se todo o vinho. Após o terceiro Ganbei, a porta abre-se para o mundo do espírito, onde despidos do racional controlo se expõe como somos e quem se é, visão do grau de educação, momento propício para iniciar amizades e negócios. Li Bai (701-762) escreveu a maioria dos poemas sob o efeito do vinho e o também poeta Du Fu (712-770) refere-o com uma frase, cuja livre tradução diz: “Cem poemas por cinco litros” e justifica-o acrescentando, Li Bai bebia imenso vinho de arroz para se aquecer do frio que fazia ao ar livre no mercado de Chang’an (Xian) onde muitas vezes dormia. Vinho na refeição Em Beijing atravessávamos a Rua Dazhalan quando, numa casa térrea de portadas vermelhas, alguém ao sair nos dá a ver o interior de uma taberna antiga. Entramos e nas paredes de madeira estão dependuradas tabuinhas de bambu a referir os pratos do dia e os produtos da loja. Olhando para as mesas de banco corrido, reparamos todos a comer em tigelas e a acompanhar a refeição com uma pequena garrafa. Por gestos, apontámos para uma mesa e pedimos o mesmo. Assim ocorre o nosso primeiro contacto com o vinho chinês, sendo-nos servido como vinho da casa o destilado “er guo tou” para acompanhar a sopa de massa em fitas com uma peça de carneiro. A rudeza do sabor e aroma do vinho assemelha-se ao bagaço, tal como na transparência. O “er guo tou” é um vinho destilado feito em Beijing e quando mais tarde falando com um habitante de Sichuan sobre a nossa experiência de vinho chinês, logo ele se apressa a ir buscar uma garrafa e faz-nos provar o licor “Wuliangye”, de Yibin. Produzido na sua terra como faz questão de sublinhar, enquanto o vai servindo em pequenos cálices explica ser o “er guo tou” do mesmo tipo de vinho mas de uma qualidade muito inferior. Na recepção de outro restaurante, dois enormes potes com dragões esculpidos guardam o vinho de arroz, aperitivo para as lautas refeições servidas no primeiro andar. Chegado à enorme sala de jantar, séries de pequenos potes de vidro com diferentes tipos de vinho dão a escolha para acompanhar os múltiplos pratos de comida, que vão sendo colocados ao centro da larga mesa redonda, sob uma placa de vidro, também redonda, que gira e de onde as pessoas se servem, desde o carneiro de Harbin, ao agridoce de Guangzhou. Das portas dos privados, íntimos compartimentos para reuniões e festas, a algazarra sobe ao tom do jogo de dedos, ritmadamente gritando um número a duas vozes. A garrafa de vinho jogada ao copo esvaziadamente bebido por quem perde. O copo é repetidamente enchido e lá recomeça o jogo dos dedos num embriagado alarido a denunciar o estado dos intervenientes. Relacionado com a Teoria dos Cinco Elementos (Metal, Madeira, Água, Fogo e Terra), representantes de forças cósmicas que se promovem e reprimem uns aos outros, num jogo de intuição nenhum é mais forte nem mais fraco que os restantes. Assim como o polegar perde para o indicador, o indicador para o médio, o médio para o anelar, o anelar para o mindinho e este para o polegar, também o Metal corta a Madeira, a Madeira a Terra, a Terra a Água, a Água o Fogo e o Fogo o Metal. Ponbei é quando se brinda sem tilintar os copos e se saboreia o perfumado vinho bebendo-o em pequenos golos a ensedar a boca. No tropical calor do Sul da China, a ementa mostra uma variedade de pratos que alimentam o gosto de estar à mesa em animadas conversas, enquanto se intercala o petiscar com o bebericar em delicados travos o vinho de um pequeno cálice, onde pelos sentidos se aprecia os mais leves pormenores. De seguida, um golo numa pequena taça de chá. Enche-se depois o bule com água fervida guardada no termo, por vezes colocado por baixo da mesa, e fechando as rodadas de vinho, o chá para limpar, pois quente ajuda a dissolver as gorduras. Em procura, como significava o antigo carácter para chá, primeiro dilui o teor alcoólico, servindo no dia seguinte para limpar a ressaca. Daqui passamos à História do Vinho na China.