h | Artes, Letras e IdeiasTerceiro Acto – Cena 4 Gonçalo Waddington - 17 Fev 2022 Valério pega num cigarro e vai à lareira. Pega num toro de azinho com uma tenaz e junta-o às brasas incandescentes. Valério Ainda sonho acordado… Traz de volta uma brasa e acende o seu cigarro com ela. Deixa-se ficar a olhar para a madeira a pegar fogo. Valério Acho que nunca tinha dito isto a ninguém. Gonçalo Porquê? Valério Porque é que sonho acordado? Gonçalo Não, porque é que nunca disseste a ninguém? Valério Sei lá… [pausa] Vergonha, talvez. Gonçalo [imitando uma mãezinha] Já não tens vinte anos, filho…! Valério Pois não, mas ainda assim… Gonçalo Sonhas com o quê? Valério Coisas parvas… Gonçalo Isso já percebemos. [pausa] Dá-me um exemplo. Valério É difícil… [pausa longa] Se estiver a ouvir música, fico a imaginar que sou eu que a estou a tocar, ou a cantar… ou as duas coisas. [pausa] Acho que acontece o mesmo quando vejo um quadro… ou se vejo um jogo de ténis na televisão… Gonçalo Imaginas-te o tenista? Valério Sim… [pausa] A questão é… se calhar não é questão nenhuma… Gonçalo Desembucha, jovem! Valério A questão é a duração… e a quantidade que vezes que me acontece o mesmo Gonçalo O sonhar acordado? Valério Sim… e o facto de me acontecer com esta idade. [imitando uma mãezinha] Já não tens vinte anos, filho…! Gonçalo Pois não. Valério Pois não… mas a verdade é que acho que já não há remédio. [pausa] Mas não me acontece o mesmo quando leio um livro. Gonçalo Não? Valério Não. E olha que leio cada vez mais… deve ser da velhice. Gonçalo Ou seja, queres brilhar como músico, pintor ou tenista, mas não como escritor. Valério Já não vou brilhar em nada. Gonçalo No entanto, já escreveste algumas coisas brilhantes. Valério Que ninguém leu. [pausa] Mas é qualquer coisa mais profunda do que isso… Gonçalo Do que quê? Valério Do que o querer brilhar… Gonçalo Senta-te no divã e aprofunda lá isso. Valério regressa à sua cadeira, perto de Gonçalo, e leva o seu milionésimo copo de vinho à boca. Valério Escapismo? Gonçalo Estás perguntar? Valério Estou a falar para o ar. Gonçalo Pronto… Valério [pausa] Ou então é uma maneira de me manter activo, com vontade de fazer coisas… [pausa] se não desisto. Gonçalo Estás a conjecturar ou é já uma sentença? Valério Não estás a ajudar. Gonçalo Desculpa, continua… Valério A verdade é que é coisa de adolescente, o resto é conversa. Gonçalo Julgas que não há outros quarentões a sonhar acordados? Valério Não deve haver muitos. Gonçalo Se te ajuda achares que és único, tal como te ajuda sonhares acordado, ainda bem para ti. Valério Certo. O que não deve faltar por aí é quarentões adolescentes… Gonçalo [imitando uma mãezinha] Já não tens vinte anos, filho…! Valério Pois não… [pausa] Mas é uma coisa que eu procuro… é parecido com a depressão. Gonçalo Depressão? Valério Não falo de depressão profunda, nunca padeci de tal coisa, felizmente… [pausa] Mas há qualquer coisa naquela depressãozinha ligeira… [pausa] Um prazer qualquer quando me deito no sofá e começo a descer na horizontal… pelo poço abaixo… tudo a escurecer à minha volta e a luz a ficar lá em cima… [pausa] Até acho que as duas coisas estão ligadas. Gonçalo A depressão…? Valério [abrupto] Zinha! Gonçalo A depressãozinha e o sonhar acordado? Valério Sim… Gonçalo E é qualquer coisa que buscas, tu próprio? Valério Activamente, sim… se estiver em casa, então, é o meu desporto preferido. [pausa] Felizmente, já não me masturbo tanto como dantes. [imitando uma mãezinha] Já não tens vinte anos, filho…! Gonçalo Pois não. Valério Posso até ter à disposição um manancial de coisas para me entreter… filmes, livros… A verdade é que, a maior parte das vezes, ponho música e me deito a olhar para o tecto… [pausa] E… ou aguardo a descida ao poço, activamente, deixo o corpo relaxar, começam as lágrimas a correr… [com uma ponta de vergonha] Mas não me comovo, atenção, não tem nada que ver com comoção… é uma espécie de abandono… Gonçalo Isso é quase erótico. Valério olha para Gonçalo, desagradado com o comentário aparentemente despropositado. Gonçalo Falo a sério! Parece que… Valério Eu percebo, sim… Sim, é esse abandono. [pausa] Ou então a música eleva-me e eu imagino que sou eu o músico… Gonçalo Para fora do poço… Valério Não é que estivesse no poço quando me deitei, mas sim… eleva-me… [pausa] para fora do poço, sim. Gonçalo [pausa] E também procuras isso… essa elevação? Valério [inabalável] Bem como a descida. Gonçalo [pausa] Parece-me que tens isso tudo já muito bem dominado… parece a tua hora do ginásio. Valério Pois parece. Gonçalo E gostas. Valério parece não saber o que responder, mas também não parece abalado com a afirmação que acabou de ser proferida. Gonçalo Cada um com o seu desporto… Valério [acanhado] Já vivo com isto há tanto tempo que já nem penso muito no assunto, confesso. Gonçalo O desporto em si não tem nada de errado, se é isso que estás a pensar. Mas é uma droga, mais do que um desporto… sabe-lo bem. Uma droga pesada. [pausa] Há que saber dominá-la… um deslize e já foste. Valério Sim… [pausa longa] Se calhar está na hora de terminarmos a consulta, não?