Nada está perdido – Terceiro Acto | Cena 3

Terceiro Acto | Cena 3

Gonçalo tira uma mancheia de tremoços e apaga o cigarro com a outra mão. Lá fora o vento começou a soprar de mansinho, indiferente à galhofa dos pássaros que se ouve através da janela. Valério volta a folhear o texto do amigo.

Valério

Devias acabar o livro…

Gonçalo

Já tinhas dito isso… Ou não?

Valério 

Acho que não.

Gonçalo

Se dissesses história…

Valério

História?

Gonçalo

Em vez de livro.

Valério

[sorrindo]

Por amor de Deus…

Gonçalo

É verdade… [pausa] Se dissesses história, não me fazia comichão nenhuma. “Sim, vou acabá-la em breve”… Mas livro… Já pesa na consciência.

Valério acende novo cigarro e levanta-se. Vai até à janela e perscruta a escuridão sonora que acontece lá fora. Dobra-se e pousa os cotovelos no parapeito. Dá uma longa passa no cigarro.

Valério

Chega uma altura que tens de assumir…

Gonçalo

O livro?

Valério

[agastado]

O que quiseres…  livro ou não-livro. [exalando o fumo] Assume, toma uma decisão.

Gonçalo olha-o, estranhando aquela súbita mudança de humor. Depois pega na garrafa de vinho e deita-o no copo. Valério fecha a janela e vem sentar-se outra vez ao pé do amigo.

Valério

[procurando as palavras]

Talvez não sejas escritor.

Gonçalo

Ó diacho…

Valério

Vais escrevendo umas coisas… coisas boas, claro… mas não és um escritor. [pausa] Daqui a nada tornas-te um “poderia ter sido”…

Gonçalo

[curioso]

Como é isso?

Valério

Aquele de quem toda a gente falava… o que poderia ter sido um grande escritor. [pausa] Há tantos assim, cheios de talento… escreveram uns contos, umas críticas, publicaram alguns poemas numa revista qualquer… e depois, quando chega a hora H, “ah e tal… morreu a minha mãezinha”… “a tecla A no computador saltou…”, “ando inseguro”… “tenho tido muitas traduções”… ou “ainda estou a pesquisar”… tudo serve para fugir do “não consigo, ponto final”.

Gonçalo

[melindrado]

Mas eu começo sempre assim, caramba!

Valério

[divertido]

Assim como?

Gonçalo

A achar que não consigo.

Valério

Mas uma coisa é um textículo de umas páginas, outra é um livro. Se te serve a manigância, ainda bem… mas para coisas de fôlego não podes ser tão infantil.

Gonçalo

[irritado]

Mas qual infantil… estás a falar de quê!

Valério

[sorrindo]

É um truque infantil, desculpa… vou dizer à mamã que não consigo andar de triciclo, a mamã vai dizer que o menino consegue, o filho, com a lágrima no olho, diz que não consegue de todo, a mamã insiste…

Gonçalo

[interrompendo]

Que estupidez!

Valério

[continuando]

O menino tenta, anda três metros… Ena, vês, a mamã não tinha razão?! Toma um miminho, meu amor… 

Gonçalo

Já percebi.

Valério

Mas com o Paris-Dakar já não resulta.

Gonçalo

[interrompendo]

Já tinha percebido!

Valério

Tens de arranjar truques mais adultos… ou então, fazes-te homenzinho e acabas já com o assunto: ou escreves, ou não escreves.

Gonçalo

[imitando uma mãezinha]

Já não tens vinte anos, filho…!

Valério

Pois não… nem eu tenho pachorra para putos.

Gonçalo

De onde é que veio esse azedume todo?

Valério

[sorrindo]

Dos trinta copos de vinho?

Gonçalo aquiesce e os dois deixam-se mais uma vez ficar em silêncio. Valério começa a sorrir.

Gonçalo

[curioso]

O que foi?

Valério

Já viste que temos sempre o mesmo intervalo de tempo entre os tópicos… [serve-se de mais vinho] Há aqui um padrão, meu caro. Há aqui uma tese a caminho, vais ver! [emborca o copo e serve-se outra vez] Se gravássemos as nossas conversas e as botássemos num software de edição de som, ias ver que as ondas sonoras das nossas vozes, as pausas, os isqueiros, os cigarros, o vinho a ser servido, o gargalo a bater no copo… ias ver… Aliás, ainda melhor…! Mandávamos imprimir o gráfico sonoro… ias ver… um padrão perfeitamente descodificável.

Gonçalo

Somos previsíveis.

Valério

De certa maneira, sim. Mas para nós próprios… Já temos o nosso ritmo. [pausa] Deve ter a ver com o espaço, também. [pausa] Agora não tenho bem presentes as nossas conversas noutros lugares, mas parece-me que esta casa [faz um círculo com o indicador], o sítio onde está, a montanha onde foi edificada, o material com que foi construída e blá, blá, blá influencia o ritmo… o padrão.

Gonçalo

Também não tenho presentes as nossas conversas. Mas reconheço o padrão, sim. E reconheço o padrão nos meus hábitos de escrita, agora que falaste disso. [pausa] A procrastinação… se bem que a domino bem. E sim, há sempre um muro qualquer que aparece à minha frente quando começo qualquer coisa… aliás, esse muro está sempre presente, mesmo quando não estou a escrever. Sobretudo quando não estou a escrever! Antes de dormir, lá estou eu “Não sou capaz! Não sou capaz!” [pausa] Mas ao contrário do que disseste, que eu uso esse muro imaginário como desculpa para justificar a minha incapacidade, talvez eu o use como combustível… [pausa] E olha que é altamente inflamável, deixa-me que te diga. Alimenta-me. Faz parte. Agora… será que eu alimento este hábito? Não sei, confesso. Mas resulta. Tenho é de fazê-lo resultar em coisas mais ambiciosas, para te poder esfregar na cara e mostrar que resulta. 

Valério

“It aint bragging if you can back it up!”

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